Há mais de 30 anos, fotografo os povos indígenas pelo Brasil e acompanho as transformações que ocorrem em suas aldeias, influenciadas pelo contato com nossa sociedade e, consequentemente, pela urgência de manter sempre fortes sua cultura, tradições e identidade.
E, desde o início desses contatos, percebi o grande prazer que as imagens que faço causam nos indígenas retratados.
Ao contrário do que ainda acontece em algumas etnias – a ideia de que a câmera rouba a alma de quem é fotografado (escrevi sobre isso neste blog, em 2016) -, tanto homens, como mulheres e crianças ficam admirados e felizes ao ver sua própria imagem no visor da câmera ou, mais tarde, impressa em papel.
Vez ou outra, também identifiquei o interesse de alguns jovens pela fotografia, pela arte de registrar momentos em suas aldeias, que se revelam com a observação e perguntas curiosas. Entendi que se trata de um interesse genuíno pela minha profissão.
Alguns, hoje, já são grandes profissionais da imagem como Takumã Kuikuro, Kamikia Kisedje (que trabalha na Mídia Índia) e Yanahin Waurá.
Outros, ainda testam suas habilidades como apaixonados pela imagem que são – muitas vezes com câmeras doadas por visitantes de suas aldeias – e já demonstram grande talento, como Piratá Waurá, que vive no Alto Xingu.
É só apreciar os retratos que ele faz de seu povo no dia a dia – e que apresento aqui, neste post – para identificar que Piratá vai longe e já sabe muito bem contar histórias guiado por seu olhar curioso e cheio de cuidado e afeto, e também pelas lentes de sua velha e surrada Canon.
Em breve, ele deve vir me visitar na Aldeia dos Ipês, em Carmo do Rio Claro, Minas Gerais, onde voltei a morar desde o início da pandemia da covid-19.
Piratá quer aprofundar seus conhecimentos, testar seu talento fora de sua aldeia e compreender melhor o trabalho que tenho desenvolvido com os indígenas e sua cultura. Quer fazer uma imersão fotográfica nesta aldeia mineira.
E, assim, sem saber, este jovem Waurá me inspirou a desenvolver um novo projeto com minha agência, a Imagens do Brasil: orientar e agenciar novos talentos da fotografia indígena.
Isso, não só para que possam ingressar no mercado da fotografia com sua arte e seu olhar, mas também para que possam registrar, com ainda mais força, a importância da luta de suas etnias e de seus parentes pela proteção e demarcação de seus territórios.
Assim, com este post, lanço este novo projeto, que me anima demais. E me coloco à disposição para colaborar com a formação dos integrantes desses povos que amo e que se interessam por fotografia.
Conversei estes dias com Piratá, por telefone, e ele me contou um pouco mais sobre seus pais e suas habilidades, sobre a identidade de seu povo e de sua paixão pela imagem. É o que reproduzo a seguir, na forma de depoimento.
Origem e desejo
“Meu nome é Piratá Waurá. Sou da etnia Waurá e moro na aldeia Piyulaga no Território Indígena do Xingu, que se localiza no nordeste do Estado de Mato Grosso.
Meu pai se chama Kamo Waurá. É ex-lutador de huka-huka, luta tradicional muito antiga e que continua sendo praticada pelo meu povo.
Meu pai é pajé e se comunica com os espíritos da floresta, da água, dos animais e cuida da saúde das pessoas da aldeia.
Minha mãe se chama Yakakumalu Waurá. É uma mulher que tem o dom de fazer panela de cerâmica, um conhecimento milenar e tradicional do nosso povo, que vem sendo repassado de geração em geração.
Eu gosto de fotografar. A paixão que sinto pela fotografia começou quando me apaixonei pela minha própria cultura.
Observava as vivências do meu povo, como os rituais da nossa cultura, que são uma forma de comunicação com os espíritos. É muito importante registrar os sentimentos, o conhecimento e a história do meu povo.
Através da fotografia posso mostrar a intensidade emocional de nossa cultura. A diversão, a alegria e a tristeza que caracterizam os momentos captados pela imagem, registram nossas tradições e as mudanças que ocorrem todos os dias, em nosso cotidiano”.
Agora, veja o talento de Piratá nas demais imagens que selecionei para este post, entre as que ele enviou logo depois de nossa conversa. E contou:
“Tirei algumas fotos no ano passado. Outras foram feitas entre abril a agosto, já na pandemia. Nossa liderança pediu para fazermos nossas festas tradicionais para que ninguém saísse da aldeia. Era pra ficarmos na aldeia fazendo festa”.
Nada como celebrar a vida! Cenário perfeito para Piratá revelar a potência de seu olhar.
Texto e Edição: Mônica Nunes
Fotos: Piratá Waurá
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