
Nos últimos anos, o Brasil vem sofrendo retrocessos e tentativas de retrocesso constantes em relação à política de saúde mental que foi instituída a partir da luta antimanicomial.
Tenho escrito aqui, no Conexão Planeta, de modo constante sobre esse movimento, que vem sendo combatido pela sociedade civil e pelos grupos que trabalham com saúde mental e economia solidária.
A notícia de hoje é mais uma no caminho de retrocessos.
O Ministério da Saúde revogou, por meio da Portaria 596, de 22 de março, o chamado Programa de Desinstitucionalização para reinserção de pessoas com problemas de saúde mental e decorrentes do uso de álcool e outras drogas que estão internadas em hospitais psiquiátricos há mais de um ano. O documento revogou também o mecanismo de financiamento desse programa.
Dias depois, o Ministério da Cidadania colocou na rua o Edital de Chamamento Público 3/2022 para financiar projetos de hospitais psiquiátricos, o que o Programa de Desinstitucionalização justamente busca restringir ao máximo possível.
O que isso significa?
A atual Política de Saúde Mental brasileira – reconhecida, admirada e modelo para o mundo – é fruto da atuação da sociedade civil a partir da chamada Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica, que trouxe um modelo de atuação em que o cuidado com pessoas com sofrimento ou transtorno mental e necessidades decorrentes de uso de drogas tenham atendimento humanizado, integral, com acolhimento, acompanhamento e vinculação à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), vinculada ao Sistema Único de Saúde (SUS).
No processo de implementação da Política de Saúde Mental e da RAPS, foram avaliados os hospitais psiquiátricos e fechados aqueles que eram inadequados, e foram criados Serviços de Residência Terapêutica para receber pessoas que vinham de instituições psiquiátricas.
Antes disso, a política de saúde mental no país esteve centrada em uma lógica de segregação de pessoas em hospitais psiquiátricos. Nem é preciso lembrar em nossa história a quantidade de abusos e maus tratos e torturas cometidos em muitos deles, para onde eram enviadas inclusive pessoas sãs, por motivos os mais diversos possíveis.
Em 1978, nascia no Brasil o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental, organizado para denunciar a violência institucional praticada nos hospitais psiquiátricos e vocalizar reinvindicações.
Em 1987, foi criado o Movimento da Luta Antimanicomial, que reuniu trabalhadores, usuários de serviços de saúde mental e familiares e militantes do movimento pela reforma sanitária no país. E veio, então, a constitucionalização do direito à saúde e as reformas sanitária e psiquiátrica.
O novo modelo de saúde mental, consolidado pela Lei 10.216/2001 e complementações posteriores, estimula o convívio com a diferença e o reconhecimento da diversidade. E, assim, nascia a RAPS, que tem, entre seus eixos de atuação, ações intersetoriais para reinserção social (entre as quais está a economia solidária), reabilitação, prevenção, redução de danos, entre outros.
Desrespeito à Política de Saúde Mental continua
Apesar de tudo isso, uma inspeção nacional realizada em dezembro de 2018 em 40 hospitais psiquiátricos localizados em 17 estados brasileiros, em todas as regiões do país – cerca de 1/3 daqueles que ainda se encontravam em atividade naquele momento – demonstrou que as violações perpetradas por hospitais psiquiátricos ainda são presentes no país.

Realizada em parceria pelo Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Ministério Público do Trabalho, a inspeção gerou um relatório que recomendava o fechamento das instituições visitadas, apontando que, apesar da Política de Saúde Mental, elas continuavam não apenas existindo, mas recebendo mais recursos para manutenção e financiamento do que a RAPS.
Todas apresentaram características de privação de liberdade, e várias delas praticavam imposição autoritária de tratamento, castigos, isolamento, uso excessivo de medicação, violação de direitos de crianças e adolescentes.
É sobre ampliar essa realidade macabra e absurda, de violação de direitos, que já deveria ter sido abandonada no país desde a Reforma Psiquiátrica, que o governo federal se mostra favorável ao publicar a Portaria 596 do Ministério da Saúde e o Edital 03 do Ministério da Cidadania.
Senado debate os retrocessos
Uma audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal em 18 de abril abordou a questão.
Na ocasião, o presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Leonardo Pinho, entregou à Comissão uma nota técnica produzida pela Associação, em conjunto com a Plataforma Brasileira de Política de Drogas e dezenas de organizações da sociedade civil, demonstrando como as medidas do governo federal são contrárias à legislação vigente no país.
Pinho destacou que esses dois instrumentos não são exceções, mas estão inseridos em um processo mais amplo e continuado de contrarreforma psiquiátrica no Brasil:
“A Política de Saúde Mental que consolidamos com a Lei 10.216 é uma política de estado, não de um governo, construída em governos de matrizes ideológicas diferentes na pós-democratização. Todos eles contribuíram para implementar a Reforma Psiquiátrica, que buscou tirar os recursos investidos nos manicômios e construir uma rede de base comunitária espalhada por todos os estados do país. Foi ano a ano, com a contribuição de vários governos, que a RAPS foi se consolidando no país. O atual governo, no entanto, optou por uma política de regressividade dos direitos humanos”.
O presidente da Abrasme destaca, ainda, que o Brasil está substituindo progressivamente os equipamentos públicos da RAPS pelo financiamento de equipamentos privados, as chamadas comunidades terapêuticas, que reproduzem as características e modos de operação dos antigos manicômios.
A nota técnica apresentada à Comissão de Direitos Humanos do Senado aponta a necessidade imediata de sustar a Portaria 596, que contraria a legislação vigente no país, e do cancelamento do Edital 3, que destina R$ 10 milhões a 33 manicômios.
“O atual governo faz uma nova ofensiva contra a legislação e toda a construção de uma política de estado que constituiu a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Isso já vinha avançando com financiamento, com as regulamentações em torno das comunidades terapêuticas, e agora a Portaria 596 acaba com o Programa de Desinstitucionalização e o seu custeio mensal. O governo lança, ainda, o Edital 3, que dá R$ 10 milhões para 33 manicômios em todo o Brasil. É o retorno da política manicomial para o nosso país. Infelizmente, trata-se de mais uma política que viola a legislação e todos os acordos e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário”.
Estamos em um momento de país em que o retrocesso em relação aos direitos conquistados desde a redemocratização e Constituição de 1988 se espalham por todas as áreas, e é preciso que estejamos atentos.
O que podemos fazer por hora? Acompanhar e nos mobilizar contra esse retrocesso. O deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP) lançou uma petição contra a Portaria 596 e pela aprovação do Decreto Legislativo 66/22, apresentado por ele, que anula os efeitos da portaria.
Não à contrarreforma manicomial! Sim à manutenção e ampliação dos direitos duramente conquistados!
Edição: Mônica Nunes
Foto: Yoshino Ai/Unsplash
Olá aqui é a Ana Vitória, eu gostei muito do seu artigo seu conteúdo vem me ajudando bastante, muito obrigada.
Parabéns por nos deixar atentos para com o q está acontecendo poucas são as pessoas que tem conhecimento sobre as barbaridades q vem acontecendo na área mental mesmo em pleno o século 21 é no ano 2022 parece até q estamos andando para trás com tantas injustiças para com a saúde mental😢
Obrigada por abordar sobre este retrocesso é muita crueldade#AVANTE
Excelente artigo e poucos conseguem ter essa informação correta e relevante. Obrigado e vou compartilhar no meu facebook.