PUBLICIDADE

“O Cerrado não pode ser uma zona de sacrifício para a proteção da Amazônia”, alertam cientistas, que destacam ameaças e perdas do agronegócio

A falta de valorização do Cerrado por políticas ambientais tem resultado em impactos irreversíveis para o clima e o abastecimento de água, que já começam a prejudicar o agronegócio, uma das principais atividades econômicas do país. 

Este é um dos alertas de cientistas em carta publicada ontem (2) na revista científica BioScienceBrazil’s Cerrado cannot be a sacrifice zone for the Amazon: financial assistance and stricter laws are needed (leia a carta, na íntegra, no final deste post).

Para os pesquisadores, desde que o governo Lula assumiu o poder, em janeiro de 2023, tem obtido bons resultados na diminuição das taxas de desmatamento na Amazônia – queda de 23% em comparação com 2022 –, mas não tem dado a devida atenção ao Cerrado.

Em 2023, o desmatamento no bioma amazônico foi de 9 mil km2, enquanto no Cerrado foi de 11 mil km2 de floresta no mesmo período. Com um detalhe: a Amazônia tem o dobro do tamanho deste bioma.

PUBLICIDADE

O texto é assinado por integrantes do Centro de Conhecimento em Biodiversidade da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e da Universidade Internacional da Flórida, nos EUA.

Para Philip Fearnside, pesquisador do Inpa, especialista em mudanças climáticas e coautor da carta, “o menor esforço de proteção é, em parte, devido à aparência menos imponente da vegetação do Cerrado, com estatura muito inferior à da floresta amazônica”.

Mas o “desprezo” vai além do apelo estético. Para os pesquisadores, ele está ligado, principalmente, a interesses econômicos, em especial da agropecuária, que incessantemente pressiona contra as restrições ambientais no bioma para poder substituir a vegetação do Cerrado por pastagens e plantios de soja. 

Fearnside destaca que ceder a essa pressão é um tiro no pé já que as consequências são graves. “A perda do Cerrado é irreversível na prática e terá repercussões na estabilidade de parte da Amazônia, nos países vizinhos e no agronegócio, que depende das águas desse bioma”. Na verdade, já está afetando a todos.

O pesquisador acrescenta que a destruição do bioma pode até resultar em benesses de curto prazo para os grandes produtores, em especial os sojeiros, mas focar apenas nisso é falta de visão já que a perda de vegetação vai contra os interesses do setor. 

“O aquecimento global é uma ameaça para todo o Brasil, incluindo o agronegócio. Por exemplo, a região do Matopiba, considerada a grande fronteira agrícola nacional, deixará de existir como área para agricultura se esse fenômeno escapar do controle”, alerta Fearnside. 

Em junho de 2023, o Mapbiomas Brasil lançou Relatório Anual do Desmatamento (referente a 2022), que apontava que, nesse ano, essa região concentrou 26,3% de todo o desmatamento no Brasil. A reportagem que publicamos em novembro de 2023 denunciava que o desmatamento no Cerrado   cresceu mais de 3% em um ano

Como consequências, já se observa a estação seca mais longa no norte do Mato Grosso, que chegou praticamente um mês antes do habitual. “E a seca não só ameaça o trunfo do Brasil de obter duas safras de soja na mesma área todos os anos, mas também favorece a savanização do sul da Amazônia. A savana que substituiria a floresta amazônica não seria biodiversa como o Cerrado”, salienta Fearnside.

Por onde começar? 

Na carta, os pesquisadores são bastante claros: o governo brasileiro é o principal ator nesse cenário e precisa tomar decisões urgentes para preservar o Cerrado. E fazem algumas recomendações como a criação de um fundo e esforços para aumentar a visibilidade internacional do bioma

“A atenção internacional pode influenciar as decisões do governo brasileiro. Além disso, pode incentivar possíveis restrições ambientais de países que importam commodities como a soja, o que impacta diretamente nos interesses sobre o bioma”, finaliza Fearnside.

De qualquer forma, é importante não esquecer do papel dos governos estaduais e municipais nesse panorama. Em setembro de 2023, Ibama foi “peitado” por governos estaduais e municipais. Na época, o Observatório do Clima contou, em notícia que publicamos aqui no site, que “estudos de especialistas e relatos de fiscais no campomostra que as autorizações têm sido emitidas “a toque de caixa”, em volume e velocidades que impossibilitam o monitoramento pelos órgãos ambientais, sem transparência nem controle social.

Lei da UE e o desmatamento no Cerrado

Vale lembrar que, em dezembro de 2022, antes do início da COP15 da Biodiversidade, em Montreal, a União Europeia aprovou a Lei AntiDesmatamento para proteger a Amazônia, mas deixando outros biomas brasileiros mais vulneráveis, como o Cerrado (contamos aqui). 

A seguir, veja algumas questões abordadas por esse texto.

A Europa é o segundo maior mercado consumidor de commodities do Brasil, e um regulamento rígido sobre desmatamento por parte do bloco pode ser usado como referência por outros importadores, como China e Estados Unidos. 

Na época, a tal lei animou alguns ambientalistas, que acreditavam que a medida facilitaria o cumprimento da meta do governo de “zero de desmatamento até 2030” e ainda “enviava um sinal importante para as negociações de uma meta global de proteção dos ecossistemas naturais da Terra”. Mas deixou outros de cabelo em pé.

“Com a nova lei, 74% do Cerrado brasileiro ficará desprotegido. E isso é especialmente grave porque o Cerrado é o bioma onde se produz a maior parte das commodities exportadas para a UE”. É como se a nova regulamentação provocasse um “vazamento” do desmatamento para o Cerrado, ampliando sua destruição. Dito e feito!

A carta dos cientistas, na íntegra

O Cerrado do Brasil não pode ser uma zona de sacrifício para a Amazônia: assistência financeira e leis mais rigorosas são necessárias

Em 1975, Robert Goodland e Howard Irwin sugeriram que “há uma pressão crescente para explorar a Amazônia; grande parte dessa pressão poderia e deveria ser desviada para a região contínua do Cerrado” (Goodland e Irwin 1975, p. 37; veja também Goodland e Irwin 1977).

A ideia era que o Cerrado (savana central brasileira) seria o que é conhecido no Brasil como boi de piranha, ou o mito de que se pode jogar uma vaca em um riacho para ser devorada por piranhas para permitir que seu rebanho de gado atravesse o riacho com segurança a alguma distância. A subsequente devastação desenfreada do Cerrado biodiverso levaria Goodland a se arrepender dessa sugestão.

A administração presidencial brasileira de 2023–2026 de Luiz Inácio Lula da Silva reduziu as taxas de desmatamento na Amazônia após as políticas ambientais desastrosas do antecessor de Lula, Jair Bolsonaro, mas o desmatamento aumentou no vizinho Cerrado.

A Amazônia brasileira, com uma área duas vezes maior que o Cerrado, perdeu 9.064 quilômetros quadrados (km2) de vegetação em 2023, representando uma queda de 23% em comparação com o ano anterior, enquanto o Cerrado teve um aumento de 3%, com o desmatamento anual atingindo incríveis 11.011 km2 em 2023 (INPE 2024).

As projeções para 2024 indicam uma perda ainda maior: 12.000 km2. Essa destruição assustadora no Cerrado se deve à legislação ambiental historicamente frouxa, às políticas governamentais que estimulam o agronegócio e à falta de apoio internacional para controles ambientais no Cerrado.

Apenas 8% da área original do Cerrado é protegida em unidades de conservação (figura 1) (Pereira e Fernandes 2022), e o Código Florestal do Brasil exige que uma porcentagem menor de terras privadas seja protegida no Cerrado (35% em áreas adjacentes à Amazônia e 20% no restante do Cerrado) do que na Floresta Amazônica, onde 80% devem ser protegidos (Metzger et al. 2019).

A soja e outros produtos de áreas sendo desmatadas no Cerrado não devem ser aceitos por países que importam essas commodities.

Leia mais:
– Desmatamento no Cerrado cresce mais de 3% em um ano, principalmente em Matopiba, a ‘nova fronteira agrícola’
– Desmatamento bate recorde no Cerrado e cai na Amazônia Legal, revela Inpe

_____

Acompanhe o Conexão Planeta também pelo WhatsApp. Acesse este link, inscreva-se, ative o sininho e receba as novidades direto no celular.

Com informações da Agência Bori

Foto (destaque): Moisés Mualen/WWF-Brasil

Comentários
guest

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Notícias Relacionadas
Sobre o autor
PUBLICIDADE
Receba notícias por e-mail

Digite seu endereço eletrônico abaixo para receber notificações das novas publicações do Conexão Planeta.

  • PUBLICIDADE

    Mais lidas

    PUBLICIDADE