Por Ariene Susui
Da comunidade indígena Truaru da Cabeceira, em Roraima, Joenia Wapichana foi a primeira a se formar como advogada indígena no Brasil. É também dela o pioneirismo em ser a primeira indígena a fazer uma sustentação oral no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2008, no processo de julgamento da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e esteve por 22 anos à frente do departamento jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR).
Como liderança de seu povo (que ela carrega em seu sobrenome), Joenia ganhou amplitude internacional e, em 2018, ganhou o prêmio de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), um dos mais importantes do mundo. Em 2018, tornou-se a primeira mulher indígena a ser eleita como deputada federal (REDE-RR) no país, um marco para os povos indígenas.
Sua trajetória é marcada por diferentes pioneirismos. O mais recente e significativo é a sua escolha para assumir a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Desde 1967, ano de sua criação, nunca o órgão foi presidido por uma pessoa indígena.
Hoje, 3 de fevereiro (sexta-feira), Joenia toma posse como presidenta da Funai (NOTA DO CONEXÃO PLANETA: é hoje, dia em que publicamos este texto, da Amazônia Real, em nosso site).
A mudança do nome do órgão indigenista foi uma das primeiras medidas de Joenia, como resultado de uma decisão conjunta do Grupo de Transição dos Povos Indígenas e de uma demanda do movimento indígena para combater a estigmatização do nome “índio”, sempre associado ao preconceito e à colonização.
Joenia concedeu entrevista à Ariene Susui, que também pertence ao povo Wapichana, para a Amazônia Real, em dois momentos.
No primeiro, falou sobre sua perspectiva de assumir o órgão federal, um dos mais atacados pelo ex-presidente Bolsonaro. Ela tem plena consciência que assumirá um órgão com estrutura e orçamento enfraquecidos, e terá pela frente um imenso desafio para reconstruir a Funai. “Na verdade, não tem quase nada. A Funai está totalmente sucateada”, contou.
Em um segundo momento, Joenia recebeu novamente a reportagem para falar sobre a tragédia humanitária entre os Yanomami, de repercussão global, após a divulgação da emergência de saúde e sanitária entre este povo. A seguir, a entrevista.

Deputada, você foi a primeira a se formar no país como advogada indígena, parlamentar e agora presidenta da Funai. Como você enxerga esse novo espaço?
Eu enxergo como uma realização de um plano. Um planejamento que muitas lideranças indígenas fizeram para, naquela época, indígenas pudessem acessar diversos espaços e diversos direitos, como a universidade e, a partir daí, também ser uma ferramenta transformadora que mostrou o preparo e a capacidade indígena para assumir cargo, assumir espaço, assumir representatividade.
Então, me vejo dessa forma, que é um avanço em termo da representatividade dos povos indígenas. E isso se deu a partir do acesso aos nossos direitos, como a educação, saúde e principalmente o reconhecimento de direitos constitucionais, que é o direito territorial e direito ambiental.
Quais serão os principais desafios de sua gestão?
Assumir a Funai como um órgão indigenista federal, que esteve parado muitos anos, é uma missão desafiadora, pois sequer os povos indígenas entravam naquele ambiente. Então, pouco se tinha uma realização de sua missão institucional, não se cumpria a obrigação de demarcar e proteger terras indígenas.
Existia uma má vontade política por causa do governo [do ex-presidente Bolsonaro] que foi um governo anti-indígena, que deixou desmantelado, sucateado por muitos anos. Sem ter qualquer investimento tanto para realizar a sua obrigação institucional, como para atender os povos indígenas, defender políticas públicas e fazer o papel de demarcar, mas também seu investimento em seu corpo técnico de seus servidores, do seu quadro, que é justamente quem faz acontecer lá na ponta.
Então, vamos ter que reconstruir este espaço. Mas eu estou vendo que isso vai demorar um pouco, porque nós temos um orçamento insuficiente. Ele foi aprovado na última Lei de Orçamento Anual (LOA) e não condiz com a realidade da obrigação que a Funai tem a ser cumprida. Isso, até para correr atrás desses anos todos de paralisia, de prejuízo, que não atuou como deveria, mas também pela necessidade dos povos indígenas terem não somente suas terras demarcadas, mas também protegidas, fiscalizadas de forma permanente, e de se retirar principalmente os invasores de territórios como os dos Yanomami, dos Munduruku; no Xingu, os Kayapó.
Enfim, há muita necessidade. É preciso ter segurança para manter a vida dos povos indígenas, para que se possa ter um desenvolvimento sustentável. Tudo isso está como obrigação do órgão indigenista federal Funai. Assim, vamos ter um desafio muito grande dessa gestão, com recursos limitados, com o que a gente pegou na casa assim sucateada, desmantelada. Temos que motivar os servidores, porque os servidores também fazem parte dessa conjuntura toda a ser fortalecida. Então, tirar a Funai do buraco, reconstruir, fortalecer, será um imenso desafio que teremos que enfrentar.
Você que já vem acompanhando a Funai há muito tempo, como analisa a importância da modificação da nomenclatura “Fundação Nacional do Índio” para Fundação Nacional dos Povos Indígenas?
Isso já deveria ter sido mudado há muito tempo. Também, a importância justamente de ter uma terminologia correta. A terminologia povos indígenas é uma nomenclatura que a própria ONU já utiliza desde 2007. Quando aprovou sua a declaração sobre os povos indígenas, deixou claro que se trata de uma coletividade, de povos que têm sua cultura, seu território, tem sua própria legislação específica.
Então, nós não somos um povo, nós somos vários povos, e no Brasil tem essa discussão que são 305 povos diferentes, de distintas culturas, que têm suas línguas, e isso não é só um povo indígena, não é um índio. São povos indígenas.
E também a necessidade de recuperar um pouco a questão histórica que muito se ensina errado nas escolas. De que o Brasil, quando os portugueses chegaram aqui, pensavam que tinham chegado na Índia. Por isso acharam que os habitantes eram os ‘índios’, mas na verdade chegaram no Brasil. Um local que é habitado por povos indígenas. Até hoje não havia essa correção.
Então, vamos ter que corrigir muito ainda. Na própria Constituição de 88 está o capítulo dos direitos dos índios. Isso tem que ser corrigido, revisto. A gente começou a fazer isso na legislação a partir de um projeto de lei de minha autoria [como deputada federal], que alterou o Dia 19 de Abril, que era considerado o Dia do Índio, para ser chamado o Dia dos Povos Indígenas. Tem a questão de revisar, de corrigir, e fazer refletir também em toda essa diferença cultural, essa diversidade cultural rica que temos no Brasil a partir do reconhecimento que nós somos povos indígenas.
A Funai já foi presidida por muitos ruralistas e até militares. Qual a situação da Funai nesse momento? Há recursos?
No que já venho acompanhando pela lei que foi aprovada, os recursos são insuficientes. Na verdade, não tem quase nada. A Funai está totalmente sucateada. Ainda estão sendo feitas as primeiras organizações administrativas.
Estou fazendo um levantamento para saber dos números exatos de recurso, quando eu assumir a presidência vou poder ter acesso mais claros destes valores. Hoje sei dos recursos no geral porque, enquanto parlamentar, aprovamos o orçamento deste ano. Infelizmente, passou com um valor abaixo do que realmente a Funai precisaria. Tentei colocar mais. No entanto, não foi aceito.
O orçamento aprovado está com pouco mais de 600 milhões de reais, que são orçamentos insuficientes hoje para manter o trabalho da Funai no Brasil todo. Temos que buscar alternativas para ter um orçamento que possa cumprir, inclusive com as promessas de campanha do próprio presidente Lula.
O líder Davi Kopenawa passou os últimos quatro anos denunciando o genocídio do garimpo na Terra Indígena Yanomami com mortes de crianças, jovens adultos por diversas doenças, incluindo a covid-19. Foi surpresa para você ver as imagens, que correram o mundo, das crianças com desnutrição severa?
Não foi surpresa para mim ver essas imagens. Era uma denúncia já realizada tanto por Davi como por mim mesma, nas tribunas da Câmara dos Deputados, em documentos, em ofícios, em audiências, em convocações do presidente da Funai, da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), do Ministro da Justiça e do próprio ex-presidente Bolsonaro.
Também quando apresentamos pedido de impeachment – inclusive denúncias por genocídio – e que foram à tona a partir das fotos que foram divulgadas, e que a partir daí que o mundo começou a se sensibilizar. Mas por diversas vezes tem sido anunciada essa tragédia.

Na sua avaliação agora como Presidenta da Funai, como o povo Yanomami pode recuperar suas vidas?
Agora estamos num novo governo. O governo Lula está priorizando essa questão, a emergência da saúde indígena Yanomami. Ele já declarou que é necessário tomar providências urgentes para conter esse quadro de mortalidade infantil e dos adultos. O presidente sinalizou a boa vontade política de combater o garimpo ilegal.
O povo está na esperança de ter sua terra livre de invasões e poder fazer seus planos do bem viver. A questão agora é justamente fazer que isso aconteça na prática. Vai demorar um pouco para a gente ver tudo isso efetivado de forma correta, e a partir daí o povo Yanomami poder viver com mais tranquilidade. Essa é a nossa esperança: de recuperar a tranquilidade, a vida dos povos indígenas, o respeito e sua dignidade.
Como pode ser tipificado o crime de genocídio contra o ex-presidente Bolsonaro e ex-coordenadores da Sesai e do DistritoSanitária Indígena Yanomami (Dsei-Y)?
Primeiramente, a gente vê que a questão do genocídio é uma tese jurídica que vai justamente contra todo sistema de direitos humanos, na linha dos direitos internacionais. Então, a gente vê que o ex-presidente Bolsonaro, logo nos primeiros momento, anunciou em sua campanha que os povos indígenas não teriam vez, que ele não iria demarcar terras indígenas (“Nem um centímetro a mais para terras indígenas”) e que iria abrir as terras indígenas para garimpo.
A partir do anúncio de como seria seu governo, ele só confirmou a sua intenção de não atender e de não respeitar um direito constitucional dos povos indígenas. Por isso, a gente verifica que essa caracterização do crime de genocídio é o crime que é justamente contra a humanidade.
Quando falamos de tragédia humanitária estamos vendo uma consequência da omissão do governo que não queria fazer um investimento, levar o direito à proteção, fazer nenhuma ação para retirar garimpeiros e que não atendeu ao apelo dos povos indígenas. Então, é crime contra essa humanidade que tem que ser investigado.
No caso, aqui, tem bastantes subsídios que apontam para esse crime de genocídio. Justamente nessa linha, na Câmara Federal, na Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas, assinamos junto o pedido de impeachment. Assinamos as denúncias com as organizações indígenas para que ele respondesse já naquela época da pandemia a responsabilidade do governo de ele além de agir, ele não agir. Porque, não atendendo essa situação grave que estava acontecendo, ele incorre no crime de omissão em proteger essa humanidade.
Com o resultado das mortes do povo Yanomami isso já se torna visível. É praticamente a consequência, as provas que podem ser feitas. Inclusive, deve ser apurado, até porque no governo Bolsonaro, ninguém tinha acesso aos dados. Mas, a partir do novo governo Lula, já é possível ver o tanto de mortes que ocorreram durante esses anos. Chegaram a apurar 570 mortes. Pelo menos é o número que foi divulgado pelo Ministério da Saúde.
Então, já pode ser discutido e estudado o enquadramento dessas práticas e omissões do ex-presidente Jair Bolsonaro e seus auxiliares. As pessoas que tinham autoridade para fazer alguma ação não agiram. Elas também podem responder como cumplicidade a essa prática do crime de genocídio.
Quais as provas ou materialidade para o ex-presidente Bolsonaro ser denunciado neste caso?
A gente vê que existem algumas características super claras relacionadas ao genocídio. A primeira é a intenção. Intenção de cometer atos voltados a grupos étnico, racial, religioso, e o que seria essas prática desses atos, homicídio, ofensa grave à integridade física ou mental, sujeição às condições de vida, com vista a provocar a destruição total ou parcial do grupo. É o que a gente está vendo agora.
Essa destruição por meio de uma doença, por meio da mortalidade infantil. Justamente resultaram nessas doenças severas que a gente está vendo e a consequência da morte principalmente relacionada às condições que o povo Yanomami foi exposto com o aumento do garimpo.
O garimpo provocou a contaminação da água, levou a violência, levou o aumento da malária, tem uma exposição do povo Yanomami a doenças não só que dizimam, que extinguem, mas que comprometem as crianças, o nascimento, e a transmissão da malária que é um vetor importante porque quando pega um, pega o outro, por conta das águas barrentas que estão sendo utilizados dentro da terra indígena.
Está totalmente configurado esse crime e é nesse sentido que eu espero que os tribunais possam condenar o governo Bolsonaro por esse crime contra a humanidade, no caso, contra o povo indígena Yanomami.
O que esperar do novo governo em relação aos direitos dos povos indígenas?
Eu espero que governo dê prioridade para a situação dos povos indígenas. Tem sido mantida uma situação de vulnerabilidade bem alta, em relação aos conflitos, motivado pela paralisação da regularização fundiária das terras indígenas e, principalmente, por uma má vontade do antigo governo. Então, o que nós esperamos deste novo governo é que se cumpra o que já é de obrigação em lei, do próprio estado brasileiro, do próprio governo, e especificamente que dê condições para que a Funai cumpra sua missão institucional.
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NOTA DO CONEXÃO PLANETA: Para completar esta entrevista da Amazônia Real, incluímos o vídeo com a conversa entre a jornalista Karla Mendes, do Mongabay Brasil, também com Joenia Wapichana, duas semanas antes da crise sanitária na Terra Indígena Yanomami:
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*Este texto foi publicado originalmente no site da agência Amazônia Real, em 31/1/2023, e adaptado por Mônica Nunes para publicação aqui, no Conexão Planeta
Foto (destaque): arquivo pessoal