Lideranças da Terra Indígena Vale do Javari entregaram uma carta para as autoridades do governo federal que estiveram nesta segunda-feira (27) no município de Atalaia do Norte, no Amazonas. A visita faz parte de uma programação provocada pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) e por organizações de base da terra indígena.
A comitiva, composta por cerca de 50 pessoas, entre autoridades do governo federal e servidores, chegou por volta de 9h (hora local) e foi embora pouco antes de 16h. O grupo não chegou a entrar na Terra Indígena Vale do Javari, voltando logo para Brasília. Também estiveram presentes três secretários do governo do Amazonas.
Entre as autoridades, estavam a ministra dos povos indígenas, Sonia Guajajara, a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), Rodrigo Agostinho, e o secretário de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, Weibe Tapeba.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, que chegou a ser anunciado como integrante da comitiva, não foi.
Beatriz Matos e Alessandra Sampaio – viúvas de Bruno Pereira e Dom Phillips – também fizeram parte do grupo.
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NOTA DA REDAÇÃO DO CONEXÃO PLANETA: Beatriz acaba de assumir a direção do Departamento de Povos Isolados do Ministério dos Povos Indígenas (como contamos aqui) e, em entrevista à Amazônia Real, Alessandra contou que estava traçando sua própria jornada para se aproximar do Vale do Javari e da floresta (leia aqui).
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Carta e anonimato
Os membros da comitiva foram recebidos na sede da Univaja, que ficou lotada de lideranças da TI Vale do Javari, a segunda maior terra indígena do país e também uma das mais ameaçadas por invasores, pescadores ilegais, garimpo e narcotráfico.
Os casos de ameaça às lideranças são frequentes, com muitas delas até hoje vivendo no anonimato por medo de serem mortas, sobretudo desde o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em junho de 2022.
Thoda Kanamari, vice-coordenador da Univaja, disse à Amazônia Real que as lideranças entregaram uma carta às autoridades pedindo medidas urgentes para que o território volte a ser fiscalizado.
“A carta pede proteção de território, fortalecimento da Funai, mais servidores para atuar aqui em Atalaia e na Frente de Proteção. Também pede atenção à saúde. Há falta de medicamento, falta de logística, falta de profissionais. Tem também o problema da educação. Não tem escola construída pelo governo do Estado. A gente está quase zero na educação. Isso que as lideranças falaram na reunião de hoje”, disse.
De acordo com Thoda, durante os pronunciamentos das autoridades, houve “falas bonitas” e promessas de que a Funai “agora vai voltar a se fortalecer em cada região, principalmente onde o Bruno e o Dom foram assassinados”.
“Falaram bonito. que vai ter a presença do Estado, incluindo tudo: Polícia Federal, Ibama, Polícia Militar e Polícia”, contou Thoda, que disse esperar que a visita da comitiva resulte em medidas concretas e urgentes.
Em declaração dada aos indígenas do Vale do Javari, Joenia Wapichana destacou a necessidade de fazer justiça aos servidores que foram assassinados e também às lideranças que continuam ameaçados.
“A gente tem que buscar pela justiça, pela investigação, não somente por Bruno ou Dom, ou por Maxciel Pereira dos Santos (indigenista assassinado em 2019), por outros servidores, que estão aqui com a gente, pelas nossas lideranças, que continuam sendo ameaçadas e já estão alertando isso faz um tempo”, argumentou Joenia.
A liderança J. Marubo, que atua na área de educação, afirmou que a visita da comitiva levou “esperança à região” e que ele espera que a presença do Estado brasileiro “melhore a situação” do território em várias áreas.
“Espero que isso aconteça até porque a gente corre um grave risco de ter uma fatalidade como aconteceu com o Dom, Bruno e Maxciel, mas acredito que as medidas vão ser implementadas e isso é bom para todo mundo. Eu acredito que é por aí que a gente vai melhorar a situação da terra indígena aqui no Vale do Javari”, diz o líder do povo Marubo, que também faz parte da Univaja.
J.Marubo que, por medo de ameaças, prefere ser identificado apenas pela primeira letra de seu nome, faz uma análise do cenário atual encontrado na região.
“O tráfico aqui é constante. A pesca [ilegal] deu uma acalmada, mas ainda tem embarcações [pescando em área proibida]; a exploração de madeira é muito grande, a invasão dos limites da terra indígena está sendo mais pelo lado de outros municípios fora daqui e o garimpo está começando a aparecer forte no rio Jandiatuba”, revela.
O rio Jandiatuba é uma área com forte presença de indígenas isolados e uma região frequentemente invadida por balsas de garimpo. O rio também é rota de narcotráfico. Operações de órgãos federais foram realizadas no passado, mas as denúncias, mesmo extraoficialmente, voltaram a acontecer nos últimos meses.
A Amazônia Real também ouviu outro líder do povo Kanamari e um dos mais ameaçados do território. Ele fez parte da Equipe de Vigilância da Univaja (EVU) junto com Bruno Pereira, mas se afastou da atividade por receio das ameaças e de ser morto. Segundo ele, passados oito meses do assassinato de Bruno e de Dom, a situação no Vale do Javari continua vulnerável e tensa. Nem a prisão dos acusados de mandar matar e de matar devolveu o sossego ao indígena.
“Nós, querendo ou não, somos fragilizados. Esta junção que irão fazer com a Polícia Federal, junto a [Polícia] Civil. Agora que supostamente irão fazer alguma coisa. Imagino algo positivo, que vai trazer proteção para o nosso território. Tenho esperança que isso aconteça e que as ações faladas aqui pelas autoridades, pela ministra Sonia, tenham êxito”, disse.
Com a retorno das autoridades, ainda ficaram em Atalaia do Norte os técnicos vinculados aos órgãos federais. Eles devem continuar a apoiar a construção dos planos de ação conjuntos dos órgãos, como Funai, Sesai, Força Nacional, Ministério dos Povos Indígenas e Univaja.
Lista de prioridades
Antes da ida da comitiva, a Univaja elaborou um documento com prioridades, entre elas a realização de operações por parte do Ibama, para combater a invasão garimpeira, caça e pesca ilegal. Também pediu apoio da Força Nacional, do Batalhão Ambiental e da Polícia Federal, já que a ausência das forças policiais têm levado a insegurança à região.
A secretária-executiva do Ministério dos Direitos Humanos Humanos e Cidadania (MDHC), Rita Oliveira, integrou o grupo que esteve em Atalaia do Norte. Antes, informou o objetivo da visita.
“Nosso intuito é ter uma política efetiva de proteção dos direitos humanos dos povos indígenas, atuando na segurança e na defesa daqueles territórios oprimidos por interesses antidemocráticos”.
Entre as ações que foram anunciadas antes da reunião, estão a inclusão de defensores de direitos humanos da região no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas.
Também será criado um grupo de trabalho (GT) para articular a estruturação de uma política de estado permanente para os defensores de direitos humanos, comunicadores e ambientalistas, além dos povos indígenas, setores frequentemente ameaçados no Amazonas.
Também fizeram parte da comitiva, membros dos ministérios do Meio Ambiente e da Mudança Climática; da Justiça e Segurança Pública, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai); da Embaixada do Reino Unido; da Polícia Federal; a Polícia Rodoviária Federal; a Força Nacional; o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério Público Federal.
O governo do Amazonas foi representado pelo diretor da Fundação Estadual do Índio (FEI), Vanderlei Alvino, e pelos secretários de Segurança Pública (SSP), general Carlos Alberto Mansur, e de Justiça e Direitos Humanos (Sejusc), Jussara Pedrosa. O governo do Amazonas, apesar de ter um órgão indigenista, dá pouca relevância à agenda indígena. O governador Wilson Lima (União Brasil), que foi convidado pela Univaja, não compareceu.
“A ausência dele [governador Wilson Lima] aqui demonstra que não tem compromisso nem com o povo indígena e nem com o município que faz parte do estado do Amazonas”, disse uma liderança do povo Marubo à reportagem.
A Terra Indígena do Vale do Javari
A Terra Indígena Vale do Javari tem uma área de 85.445 quilômetros quadrados. É o território com maior referência de indígenas isolados do país e possivelmente do mundo.
Tem seis povos contatados – Marubo, Mayoruna, Kulina, Kanamari e Matís, além de um grupo de indígenas Korubo contatado em 1996 e outro em 2019.
Há também um pequeno grupo de recente contato, os Tyonwük Dyapah, que vive na aldeia Jarinal, junto com os Kanamari, na parte mais ao sul da terra indígena.
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Foto (destaque): Marcelo Camargo/Agência Brasil