Parafraseando o título do filme de Hector Babenco, de 1991, inicio este diário de histórias e causos que aconteceram na última viagem que fiz pelo Xingu, em abril. Imaginem um dia a dia repleto de aventuras, paisagens idílicas, momentos mágicos em longas conversas com pajés e feiticeiros cheios de encantamentos. Isso tudo sempre me fascinou, mas vou tentar narrar pra vocês um pouco do que acontece hoje na região do Alto Xingu.
O ano se iniciou com uma grande seca e lá as consequências são bastante evidentes. Uma das possibilidades para se chegar ao Parque Indígena do Xingu (PIX)*, é de barco, a partir de Canarana (MT). Da cidade até o porto, seguimos – eu, o cinegrafista Yuri Sanada, a jornalista Luciola Zvarick e Inhum Kuikuro e sua filha Junko Yawalapiti. – por aproximadamente duas horas por uma estrada de terra repleta de caminhões, que levantam uma quantidade absurda de poeira. Eles transportam a safra de grãos de extensas plantações de milho e sorgo que ladeiam a estrada e fazem divisa com o Parque.
Chegamos às margens do rio Culuene sob um sol avassalador. Depois do barco ser carregado com combustível, mantimentos e bagagens, saímos a navegar por este lindo rio que, neste período de final de chuvas, deveria estar mais cheio, mas estava dois metros abaixo do nível normal. Tivemos que desviar dos bancos de areia, por diversas vezes, durante mais de cinco horas de navegação. A viagem foi linda e iluminada pela lua e chegamos na aldeia por volta das 22h.
Ao chegarmos na aldeia Yawalapiti, tivemos a triste notícia de que todas as aldeias do Alto Xingu, tiveram uma enorme perda de culturas, como o milho e a mandioca, a base alimentar dos povos da região. Percebi que estão num momento de grande dificuldade com a alimentação. Terão de se desdobrar para produzir e estocar polvilho para os próximos meses. Em agosto, vão realizar um Kuarup em homenagem a cinco entes queridos que se foram no ano passado (em meu primeiro post, falei do Kuarup em homenagem a Cláudio Villas Bôas).
Nos últimos tempos, o Xingu vem sofrendo impactos também com o avanço da agricultura ao redor do PIX. Como uma imensa sucuri, as plantações chegam às divisas do parque, sufocando a natureza que, ali, ainda se mantém preservada.
Na aldeia Kamayurá, muitos homens e mulheres estavam abatidos por causa da gripe que se instalou na comunidade. Eles também tiveram perdas nas plantações devido à seca.
Por 15 dias, percorremos as aldeias Yawalapiti, Kamayurá, Kalapalo, Nafukuá, Waurá e Trumai. Constatei que, em todas, o peixe, outrora abundante, também está escasso. Do alguns anos para cá, a diminuição foi drástica. O peixe – juntamente com a mandioca – faz parte da base alimentar dos grupos xinguanos. Eles não são caçadores, mas pescadores. Documentamos a pescaria de Timbó, com os Yawalapiti e os Kamayurá, e foi um desastre. Parece que o peixe sumiu…
Nas conversas, surgem algumas suposições. Uma delas indica que seria reflexo da construção da barragem de Belo Monte, uma vez que o peixe sobe os rios para desovar nas cabeceiras e, com a barragem no caminho, ele perde seu ciclo natural.
O Xingu precisa encontrar um novo caminho sem abandonar as tradições e se reencontrar no equilíbrio para continuar brincando nos campos do Senhor. Ainda vejo, no alvorecer, o banho doce na beira dos rios. Ainda escuto, na madrugada, o cantar baixinho da mãe aninhando seus filhos. Ainda ouço, do pátio da aldeia, o grito forte dos lutadores imitando Djawarun, a onça preta. Ainda sinto o cheiro forte do petum (tabaco) nas rodas de fogueiras junto aos pajés.
O Parque Indígena do Xingu, hoje
Ele foi criado em 1961, pelo governo Jânio Quadros, como resultado de vários anos de trabalho e de luta política envolvendo os Irmãos Villas Bôas e muitas outras personalidades como Marechal Rondon, Darcy Ribeiro, Noel Nutels, entre outros. Sua área é de 26.420 km² e fica situada ao nordeste do Mato Grosso.
Lá vivem aproximadamente 5.500 índios divididos em 13 etnias que pertencem a 4 troncos linguísticos brasileiros e uma etnia isolada, com língua idem:
– KARIB – Kauikuro Kalapalo, Nafukuá, Matipu e Ikpeng
– ARUAK – Mehinaco, Waurá e Yawalapiti
– TUPI – Aweti, Kamayurá, Kaiabi e Juruna
– MACRO-JÊ – Suiá
– LÍNGUA ISOLADA – Trumai.
A ONU – Organização das Nações Unidas considera essa área como o mais belo mosaico linguístico puro do país.
Agora, vamos às imagens da viagem que fiz em abril e também do meu arquivo pessoal. Começo pela foto que abre este post. É de 2010 e mostra crianças Kamayurá brincando às margens da Lagoa Ipavu.
Meus queridos amigos Inhum Kuikuro e sua filha Junku Yawalapiti, no caminho para as aldeias, 2016
A caminho das aldeias do Alto Xingu, sob a luz do luar, 2016
A lua iluminou nosso caminho durante a viagem ao Xingu, 2016
Típica casa xinguana ao entardecer, na aldeia Afukuri Kuikuro, 2012
O grande pajé Itsaltako Waurá fuma o petum em sua casa, 2013
O grande cacique Raoni Merktutire continua sua luta contra as atrocidades que a sociedade vem fazendo contra os índios. Lutou insistentemente contra Belo Monte, mas foi vencido pela política. 2011
Os meninos Renato (3 anos) e Agueiro (5 anos) Yawalapiti brincam em meio ao aguapé seco para a feitura do sal, 2016
As pequenas Matsi (9 anos), Lumbé (10 anos) e Kewetsi (8 anos) Yawalapiti, brincam em um velho caminhão da tribo, 2016
O Rio Tuatuari, 2016
Crianças indígenas às margens do rio Tuatuari. 2016
A roça de mandioca da aldeia Yawalapiti, 2013
O trabalho na roça de mandioca na aldeia Yawalapiti, 2013
O trabalho conjunto das mulheres Yawalapiti no preparo do polvilho para fazer o beiju, 2013
No giral, o peixe é moqueado para uma festa dos Yawalapiti, 2012
A luta de huka huka na aldeia Waurá, 2013
Kuarup na aldeia Yawalapiti, 2012
Vista aérea da divisa do Parque Indígena do Xingu e seu limite com as fazendas da região, 2011
Bela matérias e fotos. Compartilhando no Facebook e Linkedin. Parabéns, Renato!
Hoje vi várias fotografias na internet, mas as que realmente mais me emocionaram estão aqui neste blog que descobri agora. Fotógrafo Renato Soares, continue inspirado e transpirando. :)