Viagem a um Brasil profundo

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Kalapalo, Kuikuro, Yawalapiti, Kamayurá, Waurá, Mehinaco, Aweti, Apalai, Waiana, Bororo, Baré, Pataxó, Kaiapó, Pankararu, Kambéba, Krahô, Mebengokre, Rikbatsa, Marubo e Matsé.

São muitas as aldeias que vamos visitar com este blog para tirar o índio da escuridão e mostrar sua cultura e arte. Reviver histórias de tempos imemoriais.

Nas viagens realizadas desde os anos 90, pela imensidão do Brasil, passando por diversos lugares de avião, de carro, barco, canoa ou a pé… O importante não é apenas chegar e retratar o outro, mas sim, fotografar um ‘cadinho’ de si mesmo. Porque fotografar a vida é estar atento a todos os acontecimentos e perceber a poesia em cada gesto de luz.

O projeto Ameríndios do Brasil – que lancei em 2002 e agora ganha este blog no site Conexão Planeta – trata disso: ver o outro não apenas como um desconhecido, mas reconhecê-lo e olhar para ele como se olhássemos para dentro de nós mesmos.

Ameríndios do Brasil é a documentação do que resta de mais belo de nossas tradições ancestrais.

Aqui, faremos uma linda viagem. Minha intenção é mostrar, por meio de relatos e imagens, que somos todos irmãos. Que, desde a formação do Brasil, nossos ancestrais vêm se misturando e formando o que Darcy Ribeiro chamou de O Povo Brasileiro.

Neste início de percurso, quero homenagear o sertanista Orlando Villas Bôas e seus irmãos. Mais que um mestre, Orlando foi um grande amigo. Com ele, aprendi que o homem não é dono da história. Que ela de nada vale se não for passada adiante. E aqui passo adiante o que aprendi com os amigos da floresta.

O texto abaixo foi escrito por mim para introduzir a exposição realizada no Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 2004, sobre o legado dos irmãos Villas Bôas.

A Marcha para o Oeste

Em 1943 o Governo Federal acabara de criar a Expedição Roncador-Xingu, com o objetivo principal de conhecer e desbravar as áreas que estavam “em branco” nos mapas do Brasil. Em uma pensão, três irmãos liam e conversavam sobre o sertão. Abriam grandes mapas sobre os quais se debruçavam, deixando o sonho correr livre. Sem imaginar que iriam passar mais de quarenta anos na selva, Orlando, Cláudio e Leonardo decidem inscrever-se na Fundação Brasil Central. Começava ali a epopeia da Expedição Roncador-Xingu, “A Marcha para o Oeste”. Nascia ali também a história dos três Irmãos Villas Bôas.

Darcy Ribeiro, um dos mais memoráveis antropólogos brasileiros, ao se referir aos Villas  Bôas disse: “Eles compuseram as vidas mais belas de que se tem notícia!”. Aventuras tão ousadas e generosas que seriam impensáveis, se eles não as tivessem vivido. Só se compara a de Rondon a façanha destes três irmãos, que se embrenharam Brasil adentro, por matas e campos indevassados, ao encontro de índios intocados pela civilização.

Orlando Villas Bôas faleceu no dia 12 de Dezembro de 2002 deixando um legado de amor e respeito por nossos índios. Em julho de 2003, mais precisamente no Alto Xingu, o último dos Irmãos Villas Bôas recebeu a maior honraria que um “caraíba” (homem branco), poderia receber. Mais de 2 mil índios, vindos de diversas regiões, se concentraram na aldeia Yawalapiti para a celebração do que muitos chamaram de O Último Quarup

O Último Quarup

Quarup (Kuarup), para as etnias do Alto Xingu, é uma festa em homenagem aos mortos. É a celebração de passagem onde o espírito do homem vai habitar a aldeia dos mortos. Um toro de madeira da árvore “Mari” é cortado e tem a base enterrada no pátio da aldeia. Os homens se juntam ao redor para entalhar e pintar suas formas. Depois ele é adornado com o “Tucanapi”, um cocar de penas de tucano, arara, japim e as penas sagradas do Gavião Real. Também lhe amarram braçadeiras coloridas e o colar de caramujo Muirapeí decora seu pescoço.  Neste momento, o espírito do homenageado ganha direito a uma nova vida nas formas do Quarup. O homem já está presente para o cerimonial.

Nos dias que antecedem o Quarup, a aldeia ganha novo ritmo. Pode-se escutar, por horas a fio, o som das flautas Uruá, que ecoa para nós dizendo o que está para acontecer. As cores também fazem parte deste cerimonial. O vermelho do urucum, o negro azulado do jenipapo e o branco retirado do barro de tabatinga se imprimem aos corpos dos homens. Um a um, eles vão se apresentando ao kuarup para celebrarem sua volta. Em um grande cordão, cantam e dançam num passo ritmado. Logo todos os convidados estarão presentes para a luta de Huka-huka.

“Huka-huka!”, “Huka-huka!” gritam os lutadores em um som gutural, imitando Djauarum, a onça preta. Frente a frente giram e se provocam mutuamente e, no momento exato, se atacam. A luta é o encerramento da homenagem e logo o toro será lançado nas águas do rio Tuatuari para, de lá, caminhar para o Ivati, sua nova morada: o Céu dos Xinguanos.

Em 1998, foi realizado o Kuarup em homenagem a Cláudio Villas Bôas.

Orlando, seu irmão, trouxe para São Paulo o toro de Cláudio, pois queria estar mais tempo a seu lado. Quatro anos depois, com o falecimento de Orlando, Marina Villas Bôas, esposa do sertanista, achou por bem que os dois irmãos pudessem partir para a nova morada, unidos como sempre estiveram. Coube a mim montar uma expedição para levar de volta ao Xingu o “Tio Cláudio”, como foi carinhosamente chamado o toro por todos que fizeram parte da empreitada. Assim, no fundo das águas do rio Tuatuari descansam juntos e em paz os três irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas.

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Renato Soares

Fotógrafo e documentarista especializado no registro de povos indígenas, bem como da arte, cultura e biodiversidade do país. Mineiro, desde 1986 realiza viagens para retratar formas de expressão cultural dos grupos étnicos brasileiros. Colaborador do blog Por Trás das Câmeras, Renato descreve o que chama de "Diário de Campo". É autor ainda do blog Ameríndios do Brasil, mesmo nome do seu projeto de fotografia com os índios