Quando meninos, Roquinho e seus amigos construíam barquinhos para soltar na enxurrada em Padre Paraíso, região do Alto Jequitinhonha, Minas Gerais. Os barquinhos eram feitos com cascas de laranja, sementes, tocos de madeira e desciam a ladeira velozes.
Na mesma velocidade corriam as crianças, acompanhando as embarcações. Quando a enxurrada ia arrefecendo, os barquinhos mais leves seguiam mais lentos e as crianças acompanhavam esse trajeto com leveza.
Roquinho, hoje é criança crescida, mestre do brincar e guardião da cultura da infância brasileira. Os barquinhos seguem, acompanhando sua vida. Com um trabalho potente e sensível em comunidades tradicionais no estado de Minas Gerais, ele entende que brincar com as crianças é criar vínculos, é conhecer as histórias, desejos e necessidades do lugar que está chegando. E, nessas brincadeiras, a natureza local é aspecto determinante da cultura, do senso de pertencimento, do saber. “Quando Brinco, muitas vezes penso no papel do Brincar na consolidação dos vínculos comunitários”, nos contou Roquinho.
E, assim, em Maquiné, região de Belo Horizonte, MG, nasceu a brincadeira Auto dos Barquinhos. Na comunidade, um riacho atravessa o território e criar barquinhos aproximou crianças e adultos, se tornou uma experiência perene. Os mais lindos barquinhos da natureza são feitos sempre com materiais naturais da região, coletados por quem os cria, inventa.
Quando os barcos estão prontos, adultos e crianças os colocam no riacho, juntos, e os deixam seguir o curso do rio. Ao fazer os barquinhos e brincar com o riacho, as crianças se apropriavam do lugar. “Em Maquiné, ao final de um ano, na avaliação com a comunidade, as mulheres afirmaram que as crianças estavam muito mais ‘senhoras da sua comunidade‘, inclusive do rio”, conta Roquinho.
Ao avaliar as condições do riacho, o Comitê da Bacia do Rio das Velhas reconheceu as crianças como representantes da comunidade de Maquiné e, com elas, realizaram encontro de esclarecimento e organizaram um segundo encontro com toda a comunidade.
As crianças convocaram os moradores para um mutirão de limpeza do rio, e também para um plantio de mudas nas margens e a construção de um lindo jardim.
Em Ouro Verde, Minas Gerais, durante o XIV Encontro de Comunidades Quilombolas, os barquinhos foram construídos por crianças e jovens de diferentes comunidades ao longo de uma semana. Em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, crianças e barquinhos estavam prontos para ganhar o curso do córrego que corta a comunidade de Água Limpa.
“A comunidade, em um grande círculo, se colocou em torno das crianças, em uma ação simbólica de compromisso com a proteção e depois seguiu as mesmas em um cortejo até o Rio, onde os Barquinhos ganharam seus destinos”.
Acompanhamos o Auto de Barquinhos que Roquinho realizou no Encontro Quintais Brincantes (escrevemos sobre ele, aqui no blog), em setembro deste ano, no Voador, Atibaia, interior de São Paulo.
Ele contou sobre seus barquinhos e convidou as famílias a construírem os seus com a natureza disponível no local. O desafio é usar apenas elementos da natureza. Afinal, o barquinho será solto num curso de água doce. Adultos e crianças coletaram folhas, gravetos, bambus, sementes, flores… E os barquinhos nasceram do planejamento feito a partir da imaginação de cada um.
Foi impressionante observar a diversidade de barquinhos. Grandes, pequenos, altos, baixos, cheios de detalhes e minimalistas. Os adultos se envolviam “no fazer”, era visível o quanto cada criança “mergulhava” nos detalhes, de forma completamente presente.
O olhar, o gesto, a presença. Crianças levavam os barcos ao lago, testavam e voltavam para fazer os ajustes necessários. Quando todos os barcos estavam prontos, o Auto dos Barquinhos ganhou o lago. E o vento colaborou, tratando de colocar todos as embarcações em movimento. As famílias se reuniram ao redor, observando os barcos e acompanhando o movimento “dos seus”. Era como estar navegando dentro deles. E quem disse que não estavam?
Mas claro que os barquinhos são muito mais que brinquedo e brincadeira. Para Roquinho, fazer barquinho “é retornar a este território de memória, e ao mesmo tempo, estar tomado pelo presente! Quando penso, sei que o que me move no sentido dos Autos de Barquinhos ainda é a alegria comunitária presente em minha infância. Mas, também, o prazer de estar, hoje, entre as urgências que me cercam, tomado pela liberdade de sonhar algo e executar, sem as expectativas comuns que me afligem”.
Que muitos barquinhos aproximem crianças e adultos de seus territórios físicos e afetivos.
Fotos: arquivo pessoal do Roquinho
O Auto dos barquinhos me fez lembrar as experiências minha e de minha irmã em São Sebastião, litoral de São Paulo. Nós, as crianças da rua, adorávamos um riacho que passava pelo bairro. Íamos brincar e pescar pequenos camarões, que eu nunca quis comer. As águas eram limpas, tinha uma mata linda ao redor. Isto tem uns cinquenta e poucos anos, não sei se ainda existe este riacho.
Em Itatiaia a experiência foi no Rio Acará, andar dentro dele e pescar de peneira era a diversão na época das chuvas. Era em um sítio e ele cortava este terreno, pouca mata ciliar, área de plantio, mas corria limpo e cheio de vida. Moro perto dele ainda, o sítio virou loteamento e o rio recebe todo o esgoto da comunidade. Questionado, o poder público acredita que o melhor é fazer uma grande galeria, melhor tampar a sujeira que nós mesmos promovemos. Mas aínda há esperança, alguns projetos particulares, em andamento tentam resgatar a mata ciliar e nascentes, mas a estação de tratamento ainda está um pouquinho distante. Reflito agora o que mais posso fazer para ajudar este Rio…
Muito bacana a reportagem, nos remete a olharmos para trás e vermos como ser criança é realmente simples e natural. E o quanto as crianças de hoje no mundo tecnológico e informatizado estão sendo privadas dessas vivências importantes.