PUBLICIDADE

Centro de reprodução ex-situ da ararinha-azul será criado em zoológico da Índia, alvo de denúncias de irregularidades

Centro de reprodução ex-situ da ararinha-azul será criado em zoológico da Índia, envolvido em denúncias de irregularidades

Em mais um capítulo sobre o polêmico envio de 26 ararinhas-azuis para o Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom, um zoológico em Gujarat, na Índia, pela Association for the Conservation of Threatened Parrots (ACTP), sem a autorização de órgãos ambientais brasileiros, o Conexão Planeta obteve, com exclusividade, a informação de que um centro de reprodução ex-situ da espécie está sendo criado na instituição indiana.

A informação foi confirmada pelo Landesamt für Umwelt (LfU), Departamento de Meio Ambiente de Brandenburg, região onde fica situada a sede da ACTP, o criador de aves exóticas da Alemanha.

“As exportações [de ararinhas-azuis] para a Índia seriam para as próprias instalações da ACTP no país, a fim de continuar a criação de um segundo grande centro de reprodução ex-situ, o que é necessário para reduzir o risco que seria imanente ao manter todas as aves num único lugar, e porque a capacidade máxima das instalações da ACTP na Alemanha foi alcançada devido ao bom sucesso reprodutivo dos últimos anos”, revelou, por e-mail, o LfU ao Conexão Planeta.

O Instituto Chico Mendes de Conservação para a Biodiversidade (ICMBio), responsável pelo programa de reintrodução da ararinha-azul no Brasil, e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama), órgão a quem compete dar autorizações sobre transferências internacionais da espécie, estão cientes da criação de centro de reprodução ex-situ na Índia (o termo ex-situ se refere à manutenção de espécies fora de seu habitat natural), mas totalmente contrários à ela.

PUBLICIDADE

“O governo brasileiro tem conhecimento sobre a justificativa dada pela ACTP e reportada pela agência ambiental alemã para a exportação das ararinhas-azuis. No entanto, tal justificativa não procede pois é perfeitamente possível atender a esses dois pontos de preocupação aqui mesmo, no Brasil, o que estaria alinhado com o programa de manejo populacional e com o Acordo de Cooperação Técnica então existente entre ICMBio e ACTP, que tinha como um de seus eixos estruturantes a reprodução da ararinha-azul em território nacional”, declarou o ICMBio em e-mail.

Há poucas semanas, o Conexão Planeta também revelou que a ACTP tinha solicitado, no começo deste ano, permissão às autoridades alemãs e brasileiras para exportar mais 60 ararinhas-azuis para a Índia. Entretanto, o ICMBio foi categórico em não recomendar a autorização e o Ibama deixou claro para o governo da Alemanha que não endossava a operação.

Ambos os países são signatários da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção (CITES) e qualquer transferência de animais precisa ser autorizada pelos órgãos competentes, no caso do Brasil, o Ibama.

A ararinha-azul consta no Apêndice I da CITES, que “inclui espécies ameaçadas de extinção, cujo comércio somente será permitido em circunstâncias excepcionais”.

O fim da parceria com a ACTP

A ararinha-azul (Cyanopsitta spixii) é uma ave endêmica da Caatinga baiana, que devido ao tráfico internacional de animais silvestres, foi declarada oficialmente extinta na natureza nos anos 2000.

Em 2019, o Ministério do Meio Ambiente assinou um acordo de cooperação técnica com a ACTP para o início de um programa de reintrodução da espécie na Bahia. No ano seguinte, a associação alemã enviou para o Brasil 52 ararinhas, que foram encaminhadas para o Refúgio de Vida Silvestre, em Curaçá, onde foi construída uma base do projeto, totalmente financiada e mantida pelo criador alemão.

Em 2022 houve a soltura de 20 aves, todavia, algumas foram alvo de predadores e nos anos seguintes não houve mais reintroduções.

Entretanto, após cinco anos de vigência do acordo, em maio o Brasil anunciou que não renovaria a parceria com ACTP. Além de uma série de denúncias sobre a idoneidade de seu proprietário, Martin Guth, o estopim para o fim da relação parece ter sido o governo brasileiro ser pego de surpresa, em outubro de 2023, ao descobrir o envio não apenas das ararinhas-azuis para a Índia, mas quatro araras-azuis-de-lear (Anodorhynchus leari), espécie também endêmica e ameaçada de extinção.

Apesar de as araras levadas para o zoológico indiano terem nascido na sede da ACTP, na Europa, segundo o acordo entre a associação e os órgãos ambientais do Brasil, a entidade precisava consultar as autoridades brasileiras e receber uma permissão para tal. O que não aconteceu.

O governo brasileiro, através do Ibama, afirma que tem soberania sobre espécies endêmicas do país.

“O Estado brasileiro tem ciência de que nunca houve exportação legal de ararinhas-azuis a partir do Brasil e que não há nenhum indivíduo vivo atualmente, no exterior, que descenda de animal que tenha sido retirado da natureza de modo legal. Nesse sentido, o estado brasileiro entende que tem, sim, soberania sobre a espécie”, afirma o instituto, em nota enviada ao Conexão Planeta, no começo de junho.

No final do ano passado, o ICMBio disse que iria pedir a repatriação das aves em poder do zoológico indiano, contudo, essa movimentação dependia de negociações diplomáticas entre os dois países.

“O governo brasileiro mantém o entendimento pela repatriação das ararinhas-azuis para o Brasil, fazendo prevalecer o interesse público sobre os interesses privados, sejam eles quais forem, em defesa da conservação da espécie”, reafirmou o órgão nesta quinta-feira (20/06).

O ICMBio ressalta ainda que, é preciso deixar claro que não discorda da necessidade de dividir o plantel ex-situ hoje existente na ACTP, mas que isso deve ser feito em território brasileiro. “O que é perfeitamente possível, haja vista a existência de instituições no Brasil plenamente capazes de receber as ararinhas-azuis e que fazem parte do Programa de Manejo Populacional da espécie”, explica.

A população atual de ararinhas-azuis em cativeiro no mundo é de aproximadamente pouco mais de 300 indivíduos. Desse total, 200 estão com a ACTP, na Alemanha, 40 em Curaçá e 27 no Centro de Conservação inaugurado recentemente em São Paulo. As demais se encontram no zoológico Pairi Daiza, na Bélgica, e no Greens Zoological, Rescue and Rehabilitation Centre.

Centro de reprodução ex-situ da ararinha-azul será criado em zoológico da Índia, envolvido em denúncias de irregularidades

Embora a parceria entre o governo brasileiro e a ACTP tenha terminado, o criador alemão
continuará cuidando do centro de reintrodução da espécie na Bahia
Foto: divulgação Zoológico de São Paulo

Denúncias de irregularidades no “maior zoológico do mundo”

Como já contamos aqui no Conexão Planeta anteriormente, quando pronto, o idealizador do Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom sonha que esse seja o maior zoológico/centro de resgate/reabilitação do mundo. Por trás do empreendimento está Anant Ambani, de 29 anos, filho do homem mais rico da Índia, o magnata Mukesh Ambani, fundador e CEO da Reliance Industries, grupo que atua no setor químico, de petróleo, gás, varejo e indústria têxtil, e que movimenta algo em torno de US$ 100 bilhões por ano.

Informações preliminares revelam que o zoológico, localizado em Jamnagar, numa área de mais de 1 mil hectares, dentro do complexo da refinaria dos Ambani, terá vários centros de pesquisa e conservação para espécies ameaçadas de extinção e hospitais para atender os animais, sobretudo, elefantes.

A Reliance Foundation, ligada ao grupo petroquímico, anunciou que tinham sido fechadas parcerias com organizações como a International a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). No entanto, o Conexão Planeta entrou em contato com a instituição e ela negou ter qualquer ligação com o zoológico.

E parecem ser muitas as sombras sobre o funcionamento e o real objetivo do Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom. Numa longa e minuciosa reportagem investigativa publicada pelo Himal Southasian, com o apoio do renomado Pulitzer Center, são feitas diversas denúncias de irregularidades sobre a maneira como o zoológico opera e ainda, como a influência da família Ambani pode estar sendo usada para afrouxar legislações ambientais no país.

Originalmente criado como um “centro de resgate e reabilitação”, em pouquíssimo tempo, o projeto conseguiu reunir uma população de 200 elefantes, mais de 300 felinos grandes, incluindo leopardos, tigres, leões e onças, assim como 4.700 aves e outros animais – muitos, assim como a ararinha-azul, ameaçados de extinção.

Todavia, a matéria aponta que a grande maioria deles não foi resgatada e é proveniente de transferência entre zoológicos ou outras instituições.

A reportagem questiona ainda se a Índia é a melhor escolha para receber todos esses animais. “Gujarat é mais quente do que muitas partes da Índia e do mundo, o que a torna potencialmente inadequada para muitas espécies de climas mais temperados. Por outro lado, o Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom foi construído em terras adjacentes ao gigantesco complexo petroquímico da Reliance… De acordo com um relatório de 2016 do Conselho Central de Controle da Poluição, tanto a refinação de petróleo como a produção petroquímica são indústrias altamente poluentes… Além dos perigos da poluição, existe também o risco de acidentes industriais – como incêndios repentinos”.

Centro de reprodução ex-situ da ararinha-azul será criado em zoológico da Índia, envolvido em denúncias de irregularidades

Especialistas questionam se Gujarat, na Índia, um dos lugares mais quentes do planeta, é o
melhor local para um centro de reprodução da ararinha-azul
Foto: divulgação Zoológico de São Paulo

Zoológico indiano diz que Brasil autorizou envio de ararinhas

A investigação do Himal Southasian aborda detalhadamente o caso do envio das ararinhas-azuis pela ACTP para a Índia. Em entrevistas com Martin Guth e os representantes do zoológico indiano, todos contradizem o governo brasileiro e reforçam que sim, as autoridades foram informadas da transferência das aves.

“O Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom também afirma ter estabelecido um “contrato de empréstimo de reprodução” com a ACTP que “foi executado com a aprovação do departamento brasileiro competente… e que declarou publicamente à CITES que “estava trabalhando para a conservação de espécies ameaçadas e executando programas de reprodução sob os quais os animais (incluindo as ararinhas-azuis) serão soltos de volta ao seu habitat natural”.

Por e-mail, o ICMBio reafirmou, mais uma vez, que a seleção do país e do criadouro de destino [Índia] foi tomada de forma unilateral pela ACTP, sem anuência do governo brasileiro e sem que o criadouro atendesse aos requisitos para que uma instituição participe do programa de manejo oficial da ararinha-azul.

“Essas decisões, à margem do Programa de Manejo Populacional da Ararinha-azul, sem consentimento do governo brasileiro e sem prévia discussão técnica com os demais membros do programa, são inaceitáveis”, reforça o instituto.

Para o Himal Southasian, Guth disse que o envio das ararinhas para o país asiático se deu porque o local oferece “algumas das melhores condições e especialistas do mundo”.

Mas não parece estranho que a própria ACTP tenha construído um centro de reprodução para a reintrodução da espécie na Bahia, habitat nativo da espécie, e não priorize esse local diante de um novo empreendimento na Índia, do outro lado do mundo?

“Usaremos todos os meios disponíveis para garantir que a população cativa de ararinha-azul seja manejada para a finalidade de conservação da espécie, pelas instituições que fazem parte do Programa, tanto fora como no Brasil, em conformidade com as recomendações técnicas definidas pelo Programa de Manejo Populacional da Ararinha-azul”, diz o ICMBio. “Para isso, ressaltamos a Notificação CITES 2001/052, que estabelece a obrigatoriedade do consentimento do Brasil para toda e qualquer transferência internacional de ararinha-azul, de acordo com as diretrizes do Programa de Manejo Populacional da espécie. O Ministério da Relações Exteriores e a Autoridade Administrativa CITES no Brasil (Ibama) vêm reforçando em todos os canais oficiais internacionais a observância dessa notificação”.

Espécies nascidas em cativeiro poderão ser comercializadas

Outro ponto bastante preocupante na reportagem do Himal Southasian é o que expõe uma mudança implementada na Wildlife Protection Act of India (WLPA), legislação sobre a vida selvagem, a qual estabelece que “animais do Apêndice I, nascidos em cativeiro, serão tratados como animais do Apêndice II ou do Apêndice II – o que significa, na verdade, que podem ser criados e vendidos fora do país”.

O temor de especialistas é que tal medida aumente a movimentação do tráfico internacional de animais silvestres, algo que já vem sendo observado na Índia.

Em resposta ao artigo do Himal Southasian, o Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom negou todas as acusações.

*Texto atualizado às 16h para incluir a resposta do ICMBio

———————————-

Acompanhe o Conexão Planeta também em nosso canal no WhatsApp. Acesse este link, inscreva-se, ative o sininho e receba as novidades direto no celular

Leia também:
Investigação revela tentativa de criadouro alemão de enviar mais 60 ararinhas-azuis para zoológico na Índia
Denúncia no MPF pede investigação sobre venda suspeita de fazenda na área de reintrodução da ararinha-azul
Pré-festa de casamento de bilionário indiano tem visita a zoológico para onde araras brasileiras foram levadas

Foto de abertura: divulgação Zoológico de São Paulo

Comentários
guest

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Notícias Relacionadas
Sobre o autor