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Na sua cidade as crianças ainda brincam na rua?

crianças brincando na rua, na Avenida Paulista
Faz cerca de dois anos que, em um domingo, fui com alguns amigos à avenida Paulista para prestigiar aquela que seria uma das primeiras edições do programa Ruas Abertas – política municipal instituída em São Paulo que abre vias de diferentes distritos para pedestres e ciclistas aos domingos e feriados. Em nossas mãos, levávamos um caixote de feira com brinquedos dentro.

O frio e a garoa daquele início de primavera não favoreciam, mas ainda assim acreditávamos na importância de estar ali mostrando apoio àquela recém-lançada iniciativa voltada à conciliação da cidade com as pessoas da melhor forma que nos caberia: ocupando a rua ludicamente e mostrando aos transeuntes que cidade é, também, lugar de permanência, e não só de passagem.

Do caixote, fomos tirando e dispondo no asfalto as cordas, os elásticos, os bambolês, as petecas e as bolas de meia. Sem me dar conta, quando olhei pra trás, vi as primeiras crianças começando a brincar com seus pais de bambolê e de pular corda – das outras centenas que viriam naquele dia.

Um dos pais que estava ali, com uma corda, desafiando a lei da gravidade, era o meu, aos 60 anos de idade. Mais tarde, ele me confidenciou que aquela tinha sido sua primeira experiência de convívio na Paulista. Daquele momento em diante, o asfalto não mais receberia apenas o eterno rolar de pneus de seu carro apressado. Aquela seria também a pavimentação em que ele passaria a riscar com giz a amarelinha para a criançada, em que ele brincaria com outras pessoas de corrida de saco e de elástico inúmeras vezes mais.

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Dessa experiência surgiram muitas outras. Nos entusiasmamos em circular pelas cinco regiões da capital por meio do brincar espontâneo e livre. Voltar a brincar na rua – memória viva de quem passou parte da infância no interior do estado – me trouxe o sentimento inédito de pertença à “cidade grande”. Com a criançada, desenhei flores e casinhas no asfalto, flutuei papéis coloridos sobre o vento que sai das grades do metrô, aprendi a ressignificar os espaços e a lapidar o meu olhar: durante uma brincadeira, um garoto me mostrou, extasiado, que as faixas de pedestre eram como teclas de um piano gigante. Transformada por essa experiência, compreendi, acima de tudo, que se os pequenos estão sendo desencorajados a estabelecer conexões e a brincar cotidianamente nas ruas, forte sinal de que vivemos em um território – e em uma sociedade – doente.

Certa vez, assisti a um debate em que a jornalista Natália Garcia comentou de um conceito urbanístico no qual a cidade é comparada, metaforicamente, a um palimpsesto – espécie de papiro datada da Idade Média. À época, para escrever nele, era preciso usar uma ferramenta que machucasse o papel, dessa forma o texto ia se formando. Se fosse necessário reutilizá-lo, raspava-se toda a superfície e, depois, era gravada outra camada de texto por cima. Nesse processo, o papiro ficava com rastros do que havia sido escrito anteriormente.

Para alguns urbanistas, a cidade é como se fosse este papiro, ou seja, é também fruto da sobreposição de muitas camadas. No cenário urbano que nos está dado, existem rastros – alguns mais visíveis, outros menos – das marcas deixadas em outras décadas, por outras pessoas, outras decisões políticas.

Dados estatísticos apresentados recentemente pelo IBGE mostram que a população brasileira concentra-se, sobretudo, em grandes cidades. De acordo com a pesquisa, mais da metade dos brasileiros vive em apenas 5,6% dos municípios. Quando se desconsideram as capitais, os municípios mais populosos do país são, respectivamente, Guarulhos (SP), Campinas (SP) e São Gonçalo (RJ) – todos com mais de um milhão de habitantes. Um relatório da ONU alerta, por sua vez, que, até 2050, mais de 70% da população mundial estará vivendo em áreas urbanas.

Portanto, ao que tudo indica, as crianças terão, cada vez mais, a cidade como cenário de suas infâncias. Me pergunto quais camadas estão sendo pensadas e planejadas – nesse exato instante – para compor a complexa paisagem de cada município. Será que elas incluem ou excluem? Consideram ou não a infância? As crianças de hoje e amanhã, afinal, continuarão a ser desencorajadas a sentir-se parte da cidade?

Foto: Adolfo Caboclo

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Mauricio Amaral
7 anos atrás

Adorei o texto Fê. Muito legal. Você com certeza está ajudando a pensar e a construir a cidade qye queremos. E com esse projeto nós ajudamos a modificar a cidade que vivemos. Parabéns pela luta!!!!

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