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Maria, flor do sertão

Neste post, vou contar um pouco sobre Maria Araújo Borges (na foto acima), uma senhora de 88 anos que passou a vida colhendo flores pelos campos da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais. Galheiros, onde mora, é considerada uma comunidade tradicional modelo em desenvolvimento sustentável. Eu e o fotógrafo André Dib percorremos a região de hábitos extrativistas, onde os povoados buscam uma alternativa econômica por meio do manejo controlado da flora local. Com a criação de áreas protegidas no entorno de inúmeros vilarejos, os moradores que tiravam o sustento da terra há séculos ficaram proibidos de fazer uso dos recursos naturais. A falta de uma contrapartida do Governo gerou uma crise que se estende há mais de dez anos no centro-norte mineiro. O clima de tensão permanece. Todavia, o trabalho conjunto entre população e agentes como empresas particulares e Universidades vem transformando a realidade social de dezenas de pessoas.

Projetos que integram preservação do meio ambiente e beneficiamento sustentável da matéria-prima disponível na natureza ampliam as perspectivas das famílias residentes. O texto e as fotos publicadas aqui contam sobre a conquista de pessoas que lutam pela permanência no seu lugar de origem. A roça é a razão de viver de quem nasceu e cresceu na zona rural. Passo a passo, os habitantes encontram um caminho próspero, que multiplica ideias e consolida a tradição. Tive o privilégio de conhecer esse universo de perto. Trata-se de um Brasil distante, invisível para muitos. A intenção de trazê-lo à tona é uma constante em minha trajetória como jornalista. Descobri na reportagem um instrumento de resgate da essência do povo brasileiro. A informação desperta a curiosidade, instiga a reflexão e abre portas para o diálogo entre as partes. A sociedade cosmopolita pode e deve conhecer melhor o interior do país. Vejo na troca de conhecimento uma possibilidade de fortalecimento da nossa cultura popular. Coloco parte do resultado de minha jornada ao lado do André à disposição dos leitores do blog. Espero que gostem.

Dona Maria, mãe de sete filhos, cultiva as flores que transforma em artesanato. O estilo de vida peculiar dos vilarejos revela a personalidade forte de uma gente simples, que obteve qualidade de vida criando peças como abajures, porta-guardanapos, arranjos de mesa e luminárias. Todas elas são confeccionadas a partir de várias espécies de sempre-vivas. As novas perspectivas asseguram fonte de trabalho e renda para inúmeros moradores do Alto Jequitinhonha. As flores nativas do Cerrado são um patrimônio natural indissociável da cultura popular dos interiores de Minas Gerais.

Na entrevista a seguir, a matriarca fala da história de sucesso que hoje serve de exemplo para o mundo.

Como era a vida coletando flores? Comente um pouco sobre a sua história
Antigamente, só tinha um jeito de vender. Era pros atravessadores que, às vezes, batiam na nossa porta ou pros armazéns que ficavam na cidade. E só dava de vender o produto bruto. Então, se coletava e levava pra vender em mula cargueira. A gente levantava cedo. Meu pai e as meninas mais velhas saíam pra acampar nas lapas. Eu ficava com a minha mãe em casa por ser a mais nova. Saía pra colher nas portas, mais perto, né? Eu colho desde os 10 anos. Depois, com uns 14, já acompanhava a turma. A gente costumava passar uma semana arranchado na serra. Voltava com os cargueiros cheios de flor. Depois, cortava o pé das plantas (diminuía o caule), separava cada tipo e colocava pra secar. O costume era subir pros campos sempre que tinha colheita. A gente só colhia a pé de ouro, que é a sempre-viva verdadeira. Os campos ficavam carregados de tanta flor. Tinha flor até aqui na porta de casa. Por isso, quando menor, saía só pela vizinhança. Apanhava uns pacotões. Já dava uma quantidade boa. O problema era que tiravam muita e do jeito errado, queimavam os campos sem nenhum entendimento sobre como fazer. Então ela foi diminuindo. Mas hoje é proibido queimar. Onde pode, só queimam na época certa. Aí ela tá aumentando.

O seu Basílio (outro coletor da região) disse que sempre queimou na época certa e sempre separou uma parte pra plantar de novo…
Não, ele nunca soube fazer. Aprendeu depois que nos ensinaram a maneira certa de cultivar. Só quando o pessoal viu que a sempre-viva tava ameaçada é que começou a cultivar. Antes, não tinha nada disso.

E como foi a chegada dessas pessoas aqui pra conversar com vocês?
Chegou uma equipe de pessoas visitando as casas. Nas outras comunidades, ninguém quis receber eles, em Batatal, São João da Chapada, Quartel do Indaiá, essa região. E aqui a gente acolheu. Eles marcaram reunião. Pediram pra gente fazer um levantamento das plantas. Qual que tava acabando? Qual que poderia ser colhida? Mostraram que a gente não tava deixando semente no campo, tava colhendo de qualquer jeito, queimando em época errada. Ficamos dois anos só de curso. Depois é que eles trouxeram um professor pra ensinar o artesanato. O objetivo era diminuir a coleta das flores e aumentar a nossa renda. Se não fossem eles, não existiria esse projeto. Foram diversas instituições. A comunidade inteira foi convidada a participar, umas 64 pessoas. Com o tempo, muita gente foi desistindo, reclamando que o trabalho tava dando prejuízo. Poucos ficaram até o final. Agora, todo mundo tá vendo o resultado. Não foi difícil aprender, mas tem que querer dar continuidade. Quem ficou foi pegando o jeito. Cada um desenvolveu a sua maneira de fazer. Tem gente que não faz um e faz outro. Tem aqueles que fazem todo o tipo de peça.

Qual é a produção por mês?
A gente faz de acordo com o que solicita o mercado. Uma encomenda de até duas mil peças a gente consegue fazer. Se tem duas feiras no mês a gente dá conta de manter. Varia de acordo com o ritmo de pedidos. Este mês, por exemplo, a gente tem que produzir umas 100 peças por pessoa. Vai dar mais de três mil peças. É bastante, mas isso porque o mercado tá bem movimentado. Não é sempre assim. Como se vende muito nas lojas da cidade, em época de turismo, da vesperata, que vai acontecer agora, o trabalho fica intenso.

O que mais mudou na vida de vocês?
Tudo! Desde a situação financeira até a melhoria do ambiente. A natureza agradece o que a gente tá fazendo, né? A família inteira vive do cultivo e da produção de artesanato. Meus sete filhos, genros, noras, netos, meus primos, Juracy e Antônio (na foto abaixo), é muita parentada. Aqui na comunidade todo mundo é da mesma família.

Antônio Borges separa as flores por tipo em pequenos molhos

Fotos: André Dib

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Fernanda Fernandes
Fernanda Fernandes
6 anos atrás

Qual é esse projeto? Ele tem alguma relação com o Parque Nacional das sempre vivas? A comunidade da Dona Maria não foi atingida pela criação do PARNA e com as imposições de manejo ambiental feitas pelo ICMBio? Imposições estas que atingiram em demasia a reprodução dos modos de ser e de viver das comunidades tradicionais da região, principalmente a coleta das flores?

Carolina Pinheiro
Carolina Pinheiro
6 anos atrás

Oi, Fernanda. Tudo bem? São alguns projetos desenvolvidos na região por instituições governamentais, ONGs e empresas particulares. Há centenas de comunidades tradicionais localizadas na Serra da Espinhaço. Sim, elas sofreram um forte impacto com a criação de várias Unidades de Conservação em seu entorno. O PARNA das Sempre-Vivas é apenas uma das muitas áreas de proteção ambiental que existem por lá. Exatamente por causa do estrangulamento dos povos em decorrência da multiplicação destas áreas é que tais projetos foram implantados. Em Galheiros, o trabalho já teve muitos nomes. Hoje, a comunidade é autosuficiente e a associação dos coletores toca o negócio sozinha. Em distritos próximos, como os de Andrequicé e Raiz, o projeto Flores das Gerais conta com o apoio do SEBRAE MG. Na verdade, este é um conflito recorrente mundo afora, em diferentes escalas e contextos. Porém, as histórias não são só de perdas. Houve casos de ganhos, em que os moradores deram a volta por cima.

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