As noivas do Jequitinhonha

Com as mãos socadas num barro escuro, a artesã modela a primeira peça do dia de trabalho. Começa cedo, logo depois do café, pelas seis horas da manhã. O olhar fixo no dedilhar da matéria bruta acompanha a maçaroca que, aos poucos, ganha forma humana. Na maior parte das vezes, de mulher – olhos grandes, brincos, cabelos compridos, seios bem postos e roupas ajeitadas sobre o corpo curvilíneo.

Quem já não ouviu falar das noivas do Jequitinhonha? O artesanato produzido na região nordeste de Minas Gerais é famoso no mundo inteiro. Até na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, foi exposto durante a mostra Mulher Artesã Brasileira, em 2013.

A representante da arte feita no Vale, em solo americano, foi Maria José Gomes da Silva, a Zezinha (foto acima). Nascida em 1968, a moradora ilustre de Coqueiro Campo, uma vilazinha de casario baixo e ruas de terra rubra, é a artesã mais bem-sucedida do Estado. Suas bonecas são exibidas em vitrines ou sobre prateleiras de diversos países. “Eu recebo encomenda de tudo que é canto. Dias atrás, um colecionador me ligou. Ele queria um presépio típico daqui. Eu disse tá bom. Foi o primeiro que fiz. Um desafio”, conta.

Quem a vê garbosa, em seu vestido de chita, não imagina a sua trajetória de luta até chegar onde está. “Esse negócio de ganhar nome não foi da noite pro dia. Eu não tive oportunidade de fazer outra coisa na vida. Era pegar o que estava na minha frente. Todos diziam que eu tinha muito talento, mas demora tanto pra ter retorno que, em vários momentos, pensei em parar. O meu trabalho é a minha fonte de sobrevivência. Gosto do que faço. Por isso, nunca desisti. Montei casa, criei as meninas, tudo com o artesanato. Só que foi uma longa jornada”, diz. As peças produzidas pela artesã variam de R$ 250 a R$ 1,7 mil.

A tradição regional está na confecção de bonecas. Incontáveis. Algumas cabem na mão. Outras exigem o esforço de pelo menos um marmanjo para serem tiradas do chão. Parte das obras foi separada para decoração. Enfeitam a casa e o jardim da família Gomes da Silva. A ceramista pertence à segunda geração de bonequeiras do Jequitinhonha. A primeira, surgiu por volta dos anos 70, quando uma equipe técnica da Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (Codevale) chegou ao lugarejo. “Vieram para dar um curso de aperfeiçoamento da produção artesanal aqui no Vale. Foi assim que começou a nossa história”, afirma Zezinha.

Potes, botijas e carqueiros (objeto para colocar planta) eram criados pelas mulheres das comunidades e vendidos nas feiras de Minas Novas, Turmalina e Capelinha. “Minha mãe (foto acima) e as colegas sentiram necessidade de fabricar utensílios para uso doméstico, como panelas e pratos. Aí este pessoal trouxe novas ideias. Naquele tempo, era difícil entender o significado de “produto de qualidade”, diz Zezinha. Então, a gente fazia uma peça com cabeça de cachorro, rabo de lagartixa, uma coisa muito misturada porque não se tinha noção”. O estoque ainda é acondicionado no galpão que a Codevale construiu na vila, espaço que, desde a década de 80, abriga a Associação de Lavradores e Artesãos de Campo Alegre (Alaca).


Embora o ofício seja reconhecido como símbolo da cultura mineira, poucas são as ceramistas que vivem apenas do artesanato. Muitas mulheres do Jequitinhonha se dizem viúvas de maridos vivos. Depois da tomada dos chapadões pelo maciço de eucalipto, pouco restou das florestas originais. A substituição da vegetação provocou um desequilíbrio socioambiental ainda em curso na região. Famílias inteiras que tiravam o sustento das matas de Cerrado ficaram sem alternativa. O êxodo rural foi uma consequência inevitável.

Enquanto as mulheres aram roçados e confeccionam bonecas em casa, os homens partem na tentativa de fazer dinheiro. Os mais jovens migram para outros Estados atrás de melhores condições de vida. Há mais de 40 anos a monocultura do eucalipto, desenvolvida em larga escala com a finalidade de abastecer a indústria siderúrgica e de celulose, transformou radicalmente a paisagem do nordeste mineiro. O sistema agroalimentar de arraiais situados em municípios como Turmalina, Minas Novas, Itamarandiba e Veredinha foi praticamente extinto.

Tal lacuna precisa ser preenchida. As bonequeiras apareceram no mesmo período que as empresas silvicultoras. Coincidência que resultou na manutenção da cultura das grotas, como são chamadas as beiradas de rio pelos nativos. A artesã Rita Gomes Ferreira, 55 anos (na foto acima), conquistou a sua independência por meio da arte. “Criei meu menino sozinha com o dinheiro do meu trabalho”, conta. Hoje, é motivo de orgulho. Antigamente, de vergonha para muitas. A mulher se deu conta da importância do seu papel para o sustento da família. “Compreendemos que éramos artistas, que tínhamos algo de especial para deixar pros nossos filhos”, afirma.

Foram estas mulheres que recuperaram a dignidade de uma população encurralada pelo projeto desenvolvimentista em vigor. “Estamos entrando na terceira geração de artesãs do Jequitinhonha. A primeira criava peças utilitárias. A segunda as produz para ornamentação. E a terceira traz consigo a capacidade de ir além”, comemora. As bonequeiras dão forma ao futuro. Forma esta que modelam com as próprias mãos.

Deuzani, uma das ceramistas mais engajadas da região, prepara o forno para a queima das peças

Leia mais sobre as artesãs do Vale do Jequitinhonha, aqui no Conexão Planeta:
– Mãos que transformam (Blog Mulheres pelo Mundo)
– Duas viagens para conhecer supermulheres na Amazônia e em Minas Gerais (Blog Garupa)

Fotos: André Dib

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Carolina Pinheiro

Jornalista e documentarista, colabora com importantes publicações nacionais e internacionais. Viaja o Brasil atrás das histórias do povo, de cantos que não constam no mapa, de lugares distantes das principais rodovias. Traz a reportagem na veia. Em 2014, fundou a Nascente Casa Editorial, onde trabalha com a produção de conteúdo sobre cultura popular, meio ambiente e turismo sustentável no país.