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Um canto inusitado e um ouvido bem treinado levaram à descoberta de uma nova espécie de ave na Amazônia

Um canto inusitado e um ouvido bem treinado levaram à descoberta de uma nova espécie de ave na Amazônia: a sururina-da-terra
Foto: Luis Morais

O ano era 2021. O ornitólogo e ilustrador Fernando Igor de Godoy estava fazendo um trabalho social em uma das áreas mais remotas do país, o Parque Nacional da Serra do Divisor, no Acre, na fronteira entre o Brasil e o Peru. “Eu iria apresentar algumas ilustrações de aves para a comunidade local, mas como sou especialista no assunto, assim que cheguei lá quis conhecer a região antes que anoitecesse”, relembra ele. “E incrivelmente ouvi o bicho e já notei que era algo novo, imediatamente já gravei! Foi a primeira gravação da espécie!”

A espécie a que Fernando se refere é a sururina-da-serra (Tinamus resonans), que acaba de ser descrita oficialmente pela ciência, em artigo científico divulgado há poucos dias na publicação internacional Zootaxa. A descoberta está sendo considerada uma raridade ornitológica.

“Geralmente quando se fala em espécie nova de ave estamos falando de alguma espécie que se desmembrou. Por exemplo, uma ave que ocorre na Amazônia e na Mata Atlântica ao mesmo tempo, mas que canta diferente e tem plumagem diferente em cada bioma. Ao ser estudada por pesquisadores, eles notam que elas não são a mesma espécie, e assim publicam um trabalho separando em duas. Aí surge uma nova espécie para a ciência por desmembramento, ou split“, explica o ornitólogo. “Mas achar uma espécie que não se parece com nenhuma outra, totalmente nova, como é o caso da sururina-da-terra, é algo extremamente inusitado, uma raridade. Eu mesmo não me recordo qual foi o último caso no mundo.”

Todavia, a descrição dessa nova espécie de ave amazônica está longe de ter sido fácil. Quando ouviu seu canto pela primeira vez, lá em 2021, Fernando tentou encontrar a ave para tirar uma foto. “Estava anoitecendo, eu gravei e reproduzi o seu canto para tentar atraí-la e vê-la (o que chamamos de playback), mas só vi um vulto pois logo escureceu e a ave é diurna”, conta ele. “Tentei encontrá-la depois, por mais alguns dias, mas só choveu. Então acionei vários pesquisadores e a grande maioria não botou fé que era algo novo, falavam que era uma simples variação, um híbrido de algo existente.”

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Três anos depois, a primeira fotografia da sururina-da-terra

Foi só em 2024 que o biólogo Luis Morais conseguiu fotografar pela primeira vez a ave misteriosa, de canto tão único – longo e fino, que ecoa longe dentro da floresta (assista ao vídeo mais abaixo). Depois desse registro, foi realizada uma expedição para a coleta de exemplares necessários para a descrição científica.

Para Fernando, não havia dúvida de que o grupo estava diante de uma nova espécie. “Ao visualizar e fotografar veio a certeza, pois comparando com imagens não se parecia com nada do que até então era conhecido”, diz. “Eu também já tinha comparado a vocalização com dezenas de gravações de espécies da mesma família, inclusive do Peru, e não havia nada igual.”

A sururina-da-serra pertence à família dos Tinamídeos, grupo que inclui inhambus e macucos. Ela tem um porte médio, com coloração alaranjada das penas na parte inferior, marrom na área superior e uma máscara bem característica na cabeça.

“Ela vive no chão da mata (terrícola). Sabemos que os inhambus se alimentam no solo da floresta, revirando folhas geralmente para capturar sementes e frutos, mas eventualmente capturam alguns artrópodes. Porém dessa espécie ainda não sabemos nada”, revela o ornitólogo.

Um canto inusitado e um ouvido bem treinado levaram à descoberta de uma nova espécie de ave na Amazônia: a sururina-da-terra
O canto da sururina é alto e ecoa pela floresta
Foto: Luis Morais

Ave está sendo considerada um “dodô brasileiro”

Uma das coisas que já se tem certeza sobre a sururina-da-terra é em relação a seu comportamento: ela é extremamente dócil. Sua população é estimada em pouco mais de 2 mil indivíduos.

E embora tenha como habitat uma área bem preservada, em uma grande extensão da Floresta Amazônica, Morais, principal autor do artigo da Zootaxa, teme que ela pode se tornar um “dodô brasileiro”.

Para quem nunca ouviu falar no dodô (Raphus cuculatus) – uma das primeiras espécies extintas no planeta devido à presença dos seres humanos -, vale relembrar a sua triste história. Endêmico das Ilhas Maurício, no Oceano Índico, ele tinha quase 1 metro de altura, asas curtas e era incapaz de voar. Desapareceu completamente no fim do século XVII, dizimado pela caça predatória. Seu nome vinha da palavra portuguesa “bobo”, depois que os exploradores que chegaram à ilha zombaram de sua aparente falta de medo do homem.

No caso da sururina-da-terra, além de sua docilidade, os pesquisadores alertam sobre o impacto das mudanças climáticas sobre a Serra do Divisor. “Muitos trabalhos dizem que as espécies que vivem restritas a algumas cotas atitudinais podem ser as mais afetadas pelo aquecimento global“, destaca Fernando.

O ornitólogo acredita que após a enorme repercussão da descoberta da nova espécie – até o The New York Times publicou uma reportagem sobre ela – muitos observadores de aves devem querer ir à região para vê-la pessoalmente.

Mas ele já avisa que chegar lá exige muita determinação. “Se vier de outro estado, que não seja o Acre, é preciso pegar um voo até Cruzeiro do Sul, ir de carro até a cidade vizinha de Mâncio Lima, e de lá descer o rio Moa por 8h de barco até o local, que é totalmente inacessível por terra.”

Talvez seja melhor deixar a sururina-da-terra quietinha, espalhando seu lindo canto pelos quatro cantos da floresta.

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