Logo que tomou posse no dia 20 de janeiro, o novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinou dezenas e dezenas de decretos, como o que determinou a saída do país do Acordo de Paris e o fim de subsídios aos veículos elétricos ou ainda, aquele estabelecendo que o governo norte-americano só reconhece dois sexos e acaba com programas de diversidade e inclusão. Muitos deles revertem medidas de seu antecessor, Joe Biden, que tinham como foco o combate às mudanças climáticas e a proteção ambiental.
Dentre as ordens executivas assinadas por Trump está também uma que suspende temporariamente o financiamento de programas em outros países. Entre as instituições impactadas por esse congelamento de repasse de fundos está a Freeland, organização internacional que trabalha contra o tráfico de animais silvestres e atua inclusive no Brasil, através da Freeland Brasil.
A bióloga Juliana Ferreira, diretora executiva e coordenadora de projetos do escritório regional em nosso país, se tornou, em 2023, a primeira brasileira a ganhar um prêmio da Interpol, por sua luta para acabar com os crimes contra a vida selvagem.
Essa semana, com o decreto de Trump, a Freeland lançou uma campanha para arrecadação de recursos. “Dias atrás, a nova administração Trump congelou repentinamente toda a ajuda estrangeira, incluindo nossos programas de proteção à vida selvagem. Caçadores furtivos e traficantes não congelarão suas operações”, diz Steve Galster, fundador da Freeland.
Conversamos com Juliana e ela nos falou mais sobre o impacto que a medida, mesmo que temporária, pode ter sobre os programas em andamento, a vida daqueles que colaboram com a organização e ainda, sobre os animais.
A Freeland é uma organização sem fins lucrativos, que conta com o aporte de recursos externos para atuar contra o tráfico de animais silvestres. Como a medida anunciada pelo novo governo Trump afeta o trabalho da entidade?
A Freeland tem grandes projetos, nos quais temos obtido resultados sólidos e relevantes de combate ao tráfico de animais silvestres, com auxílio financeiro proveniente do governo dos Estados Unidos. Exemplos de sucesso incluem apoio a apreensões de animais traficados, à operação no Togo que repatriou 12 araras-azul-de-lear da caatinga baiana e 17 micos-leões-dourados do Rio de Janeiro, animais endêmicos do Brasil, ameaçados de extinção que passaram cerca de 40 dias de sofrimento em um veleiro, e à operação argentina que identificou um grupo organizado de caça de espécies ameaçadas, com a apreensão de quase 9.000 troféus de caça, o sequestro de quase 50 milhões de dólares em troféus de caça, ativos, bens, propriedades, armas, entre outros, e a identificação de cidadãos de diversos países, incluindo norte-americanos envolvidos na caça ilegal.
O governo dos Estados Unidos entendeu que precisa fazer uma pausa para reavaliar a utilização dos recursos, o que é lícito e compreensível. Contudo, nossos projetos com eles são tão relevantes, que temos equipes inteiras dedicadas em diferentes países. Assim, essa suspensão terá impactos muito negativos na nossa habilidade de apoiar instituições governamentais e combater o tráfico de fauna ao redor do mundo, com cancelamentos de atividades e eventos, cortes de salário de pessoas que precisam pagar contas, possíveis cortes de pessoal, cancelamento de contratos de serviço, entre outros.
Quanto por cento do orçamento da Freeland International vem de financiamento do governo norte-americano?
Infelizmente, uma porcentagem muito relevante. Sempre nos disseram para diversificar nossas fontes de financiamento, mas os projetos com financiamento do departamento de Estado sempre foram tão relevantes que acabavam tomando todo o tempo da equipe.
O que pode representar a suspensão, mesmo que temporária, das operações da Freeland em países da África, Ásia e Brasil? Qual o impacto na biodiversidade?
Como eu mencionei acima, essa suspensão, mesmo que temporária, terá impactos muito negativos na nossa habilidade de apoiar instituições governamentais e combater o tráfico de fauna ao redor do mundo, com cancelamentos de atividades e eventos, cortes de salários e possivelmente de pessoal, atraso de desenvolvimento de materiais e análises de dados, acúmulo de trabalho, entre outros. Nosso trabalho em projetos financiados pelo governo dos Estados Unidos vai ser suspenso, mas os traficantes não fazem pausas… Eles continuarão traficando espécies silvestres que têm funções relevantes no ambiente, animais que sofrem e têm o direito à vida, vão continuar cometendo receptação, falsificação, evasão fiscal, contrabando, lavagem de ativos, entre outros crimes.
O tráfico de animais silvestres movimenta valores gigantescos e é considerado tão atuante e perigoso como o de drogas. Como ele também afeta a economia global?
Existem diferentes estimativas do valor do mercado ilegal de espécies silvestres. O valor estimado do tráfico transnacional de animais silvestres e plantas não madeireiras em termos de lucro ilícito é de 5 a 23 bilhões de dólares por ano. Se considerarmos a pesca ilegal, não reportada e não regulamentada e a madeira ilegal, esse lucro ilícito proveniente do tráfico transnacional pode passar dos 200 bilhões de dólares por ano.
Entretanto, os custos do tráfico podem ser bem maiores se levarmos em conta o risco de transmissão de zoonoses, que podem iniciar pandemias, custar vidas e trilhões de dólares. Além disso, precisamos levar em conta a perda dos serviços ecossistêmicos. Um estudo feito por funcionários do Banco Mundial e publicado em 2019 estimou que o custo do tráfico de fauna silvestre, plantas não madeireiras, pesca NRNR e madeira ilegal poderia chegar a 1 trilhão de dólares americanos, 90% dos quais provenientes de perdas de serviços ecossistêmicos não atualmente precificados pelo mercado.
Por fim, temos que avaliar o custo em termo de governança. O tráfico de espécies silvestres só pode ocorrer em conjunção com outros crimes – receptação, contrabando, corrupção, falsificação, evasão fiscal, lavagem de ativos, entre outros. Esses crimes têm um grande impacto na governança, assim como estão relacionados a perdas financeiras significativas.
No caso do Brasil, em específico, o tráfico de animais silvestres ainda é um grande desafio? O congelamento do financiamento nos EUA afeta as operações em território brasileiro também?
O tráfico de espécies silvestres é disseminado no Brasil, desde a sua forma mais ingênua e oportunista, até grandes esquemas internacionais com movimentação de espécies ameaçadas, somas significativas de dinheiro e o envolvimento de falsificação, contrabando, lavagem de ativos e conexões com outros tipos de crime.
A suspensão temporária dos financiamentos atingiu projetos no mundo inteiro, inclusive aqueles de combate à fome, de promoção de direitos humanos, distribuição de água, redes contra mosquitos que transmitem a malária, entre muitos outros. No Brasil não foi diferente.
No caso específico da Freeland, nosso escritório regional para a América do Sul tem sede no Brasil e atualmente desenvolvemos um grande projeto com financiamento do departamento de Estado dos Estados Unidos e que mobiliza toda a nossa equipe. Através desses projetos promovemos reuniões e treinamentos de cerca de 900 agentes na América do Sul, produzimos relatórios de inteligência sobre tráfico de espécies silvestres, auxiliamos na identificação de redes e tipologias de tráfico, trabalhamos para o fortalecimento do arcabouço jurídico nacional, regional e global para o enfrentamento a esse crime, entre outros. Nosso trabalho sob esse projeto está suspenso, com graves prejuízos ao pagamento de salários e outros compromissos, o que nos preocupa muito, já que nossa maior riqueza aqui é o incrível capital humano do nosso time.
Mas aprendemos a lição sobre a importância de diversificar nossas fontes de financiamento e certamente sairemos mais fortes de mais esse desafio. Nosso trabalho de enfrentamento ao tráfico de espécies silvestres nunca cessará.
——————
Acompanhe o Conexão Planeta também pelo WhatsApp. Acesse este link, inscreva-se, ative o sininho e receba as novidades direto no celular
Foto de abertura: divulgação Freeland
