
2020 foi marcado por um aumento alarmante nos índices de desmatamento na Amazônia. Segundo o mais recente levantamento divulgado pelo Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia, em novembro a destruição da floresta aumentou 23% e bateu o recorde mensal dos últimos dez anos. Os dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) apontaram que, em apenas um mês, foram derrubados 484 km² de área verde.
Apesar de toda a devastação, desde que assumiu o governo federal Jair Bolsonaro insiste em manter o discurso de que o Brasil é o país que “mais preserva o meio ambiente no mundo”. Já seu vice-presidente, Hamilton Mourão, depois de atacar o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), órgão responsável pelo monitoramento oficial do desmatamento na Amazônia, finalmente admitiu que a situação ficou sem controle.
E nos bastidores, o Comando da Aeronáutica acaba de assinar a compra de um novo satélite para o monitoramento da região no valor de US$ 33,8 milhões, cerca de R$ 175 milhões. A notícia foi divulgada pelo portal de notícias UOL, que teve acesso ao contrato sigiloso do governo brasileiro com a empresa finlandesa Iceye.
De acordo com a reportagem do UOL, a aquisição do satélite foi realizada sem licitação, sem consulta ao Inpe e o pior, especialistas ressaltam que o equipamento não seria apropriado para o monitoramento da Amazônia. Um parecer técnico enviado pelo Inpe, em setembro, ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações desanconselhava a compra de um “satélite-radar da banda X” e o que o ideal seria um que funcionasse na banda L. A X é a mais simples e barata.
No documento encaminhado ao Congresso Nacional, a pedido do deputado federal Alessandro Molon, que mostrou preocupação com a então apenas intenção de compra do governo de um novo satélite, a Coordenação-Geral de Observação da Terra do Inpe esclareceu que “a onda da banda X não tem condições de penetrar no dossel da floresta e nem permite distinguir a floresta em pé de uma área recém-desmatada”.
O Comando da Aeronáutica se recusou a fornecer detalhes sobre o satélite-radar e sobre sua banda alegando que o contrato é sigiloso e só em cinco anos, ou seja, em 2025, ele será de conhecimento público.
“A aquisição em caráter sigiloso de um satélite de uma empresa finlandensa, no valor de R$ 175 milhões pelo Comando da Aeronáutica, é absolutamente injustificável. Injusticável do ponto de vista das regras de contratação pública, uma vez que um equipamento desse tipo não tem qualquer característica que justifique o sigilo por cinco anos e injustificável do ponto de vista técnico, já que os cientistas do Inpe indicaram que este satélite da banda X é inadequado para monitoramento florestal e sequer consegue diferenciar tipos diferentes de vegetação”, critica Suely Araújo, especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima.
Suely, que foi presidente do Ibama entre 2016 e 2018, lembra ainda que é importante comparar este valor que, em tese seria destinado ao monitoramento ambiental, com outros no mesmo campo de atuação. “R$ 175 milhões é mais do que duas vezes o mesmo valor que o Ibama liquidou em todas as operações de fiscalização no país inteiro no ano de 2020, ou seja, o custo da principal autarquia de fiscalização ambiental do Brasil foi a metade do valor da compra desse satélite que, ao que tudo indica, na prática, não terá utilidade”.
Os R$175 milhões também são bem mais do que o recurso que o Ibama terá neste ano que começa para fiscalização de todos os nossos biomas. Já o Inpe contará com apenas R$ 2,7 milhões em 2021 para o monitoramento da cobertura da terra e do risco de queimadas.
Guerra ao Inpe
Como já escrevi aqui várias vezes, e relembro novamente, historicamente, o governo federal sempre levou em conta os índices de demastamento da Amazônia publicados pelo Inpe. Eles eram considerados os ‘oficiais’. Nunca antes foram contestados.
Todavia, desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência, a atual administração tem se mostrado desconfortável com as taxas de desmatamento (em franco crescimento) apontadas pelo instituto. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, chegou a mencionar que estaria pensando em contratar empresas privadas para realizar o monitoramento da floresta. E não foi só ele. Diversos outros integrantes do governo tentam, de qualquer forma, desqualificar o trabalho do órgão.
A situação chegou a um nível tão constrangedor, que em julho de 2019, cientistas refutaram as declarações do governo contra o Inpe, em nota à sociedade e carta a Bolsonaro. No documento, mais de 50 integrantes da Coalizão Ciência e Sociedade defenderam o instituto, que é estratégico não só para o controle do desmatamento e a regulação das mudanças climáticas, mas também para a preservação da biodiversidade e a sustentabilidade da economia, incluindo o agronegócio.
Não bastasse tentar colocar em dúvida o sério trabalho realizado pelos cientistas do Inpe, a credibilidade de Ricardo Galvão, diretor do instituto, também foi posta em dúvida.
De maneira vil e baixa, Bolsonaro agrediu o profissional. “Se for somado o desmatamento que falam dos últimos 10 anos, a Amazônia já acabou. Eu entendo a necessidade de preservar, mas a psicose ambiental deixou de existir comigo”, disse o presidente. E ele foi além. “A questão do Inpe, eu tenho a convicção que os dados são mentirosos, e nós vamos chamar aqui o presidente do Inpe para conversar sobre isso, e ponto final nessa questão… Mandei ver quem está à frente do Inpe. Até parece que está a serviço de alguma ONG, o que é muito comum”.
Insultado com as afirmações, Galvão se defendeu e afirmou que não deixaria o cargo. “Tenho 71 anos, 48 anos de serviço público e ainda em ativa, não pedi minha aposentadoria. Nunca tive nenhum relacionamento com nenhuma ONG, nunca fui pago por fora, nunca recebi nada mais do que além do meu salário com o servidor público”.
O diretor falou ainda sobre o trabalho do instituto, muito respeitado não só no Brasil, como no exterior também. “Esses dados sobre desmatamento da Amazônia, feitos pelo Inpe, começaram já em meados da década de 70 e a partir de 1988 nós temos a maior série histórica de dados de desmatamento de florestas tropicais respeitada mundialmente”.
Em agosto, o diretor do Inpe foi exonerado de seu cargo após os ataques sistemáticos de Bolsonaro e Salles.
E em 2020, os ataques ao Inpe continuaram. Há cinco meses, Lubia Vinhas, responsável pela área de Observação da Terra, que monitora o desmatamento, foi exonerada após divulgação de dados sobre a devastação na Amazônia.
Mais recentemente, o vice-presidente e coordenador do Conselho da Amazônia Legal, Hamilton Mourão, disse que havia alguém no órgão “fazia oposição ao governo” e divulgava dados negativos.
Parece que difamar o Inpe não gerou resultados, então a atual tática é cortar o orçamento. No início de dezembro, Marcos Pontes, que está a frente do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, confirmou que o instituto deve ter um corte de 15% no orçamento em 2021.
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Foto: divulgação Iceye
A Terra, a gente sabe, não é um paraíso, mas não deveria ser o inferno que alguns terráqueos fazem dela impunemente mas, pior do que isso, insensatamente, “em nome de Deus”.