Rewilding é uma estratégia de restauração ecológica que tem revolucionado a reintrodução da vida selvagem em ecossistemas onde espécies animais foram submetidas à extinção local. O termo foi utilizado pela primeira vez em 1992 pelo ambientalista e escritor norte-americano Dave Foreman em artigo publicado na revista Wild Earth, mas sem definição.
O texto tinha a pretensão de “educar, provocar e fazer reagir os conservacionistas”. Ele, então, sentenciou: “É hora de fazer rewilding na América do Norte, é hora de voltar a ter teia de vida em nosso continente”.
Muitos foram os que tentaram definir o termo, até que, em 1998, Michael Soulé e Reed Noss, ecólogos de grande trajetória e mundialmente reconhecidos, apresentaram, na mesma Wild Earth, uma definição que serviu de base para a atual: “estratégia de conservação com fortes raízes no conhecimento científico”.
“Portanto, o termo não surgiu no meio acadêmico, mas, sim, no de ativistas da conservação, que viam com preocupação que as grandes organizações não governamentais de conservação e o próprio governo dos Estados Unidos não eram permeáveis a essa nova estratégia, ainda não testada e cara em sua implementação”.
É o que destaca o livro Rewilding na Argentina, lançado no Brasil recentemente – em versão impressa (uma jóia rara, em português) e também download gratuito (PDF, em português, inglês e espanhol) -, que conta desafios e êxitos do projeto da Fundação Rewilding Argentina, como a criação do Parque Nacional Iberá, em Corrientes, e a revitalização de santuários como Parque El Impenetrable, Parque da Patagônia e Patagônia Azul (parque marinho).
A recuperação dos ecossistemas é feita a partir da reintrodução de animais localmente extintos como tamanduá-bandeira,veado-campeiro, cateto, anta, arara-vermelha, mutum, ariranha e, por fim, a espécie do topo da cadeia alimentar na natureza: a onça-pintada.
A bela publicação – repleta de imagens exuberantes – é testemunho do compromisso socioambiental “inegociável e incansável” do casal de empresários e filantropos norte-americanos Kris e Douglas Tompkins (1943/2015), mantenedores da Tompkins Conservation.
Vale destacar que a instituição criou ou expandiu 17 parques nacionais na Argentina e no Chile, totalizando 14,8 milhões de acres de terra (cerca de 59,89 mil km2) e 30 milhões de acres de áreas marinhas (cerca de 121,4 mil km2).
“Podemos trazer a natureza de volta!”
Escrito a seis mãos por lideranças da instituição – Sofía Heinonen, diretora executiva; Sebastían Di Martino, diretor de conservação; e Emiliano Donadío, diretor científico –, o livro foi editado no Brasil por iniciativa da Documenta Pantanal, projeto que reúne profissionais diversos com a missão de divulgar um dos mais ricos biomas nacionais, o Pantanal.
A tradução é de Fernando Fernandez, ecólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que destaca:
“Este é um livro que entrega muito mais do que promete (…) Para quem se interessa por conservação da biodiversidade, e se preocupa com o estado do nosso planeta, é uma história maravilhosa, gostosa de ler e inspiradora. Sim, nós podemos! Podemos trazer a natureza de volta, podemos fazer um mundo melhor. Isso muda tudo e nos dá uma nova direção, uma esperança, um futuro pelo qual vale a pena sonhar – e agir”.
Também para Teresa Bracher, coordenadora do Documenta Pantanal, o livro tem grande potencial para influenciar práticas que podem ser replicadas pela comunidade científica de outros países e do Brasil:
“O lançamento de Rewilding na Argentina é um importante marco para as conexões que possam ultrapassar tanto o âmbito dos nossos ideais quanto a manutenção do patrimônio natural do Brasil, para podermos ir além, para podermos adentrar de forma potente e eficaz nas instâncias governamentais que representam setores diretamente ligados e afetados pela manutenção e preservação do meio ambiente”.
Parque Nacional Iberá, o início
Criada em 2010, a Fundação Rewilding Argentina é herdeira do legado do The Conservation Land Trust Argentina, instituição fundada por Douglas e Kristine Tompkins em 1997. E foi por meio das atividades que vem desenvolvendo desde então, que foi consolidado um de seus feitos mais notáveis: a criação do Parque Nacional Iberá, na província de Corrientes.
Tudo começou em 1998, com a compra de terras (Estância Alonso) para a realização do projeto de restauração, mas foi apenas em 2007 – nove anos depois – que as ações de reintrodução da fauna extinta no local foram iniciadas, com a ambiciosa meta de também reintegrar ao ecossistema seu predador de topo, a onça-pintada. Na introdução do livro, os autores explicam:
“Antes de propor e planejar o retorno de uma espécie tão complexa, foi preciso preparar o caminho com outras espécies igualmente extintas na região. Começou-se, então, com o tamanduá-bandeira, a que logo se seguiram o veado-campeiro, o cateto, a anta, a arara-vermelha, o mutum e a ariranha”. Repare que são todas espécies que povoam o Pantanal.
Somente em janeiro de 2021, sete décadas depois de considerada extinta na região, em decorrência da caça ostensiva, as onças-pintadas voltaram às planícies de Iberá. Um ano depois, um indivíduo brasileiro entrou para o grupo, graças à ação coordenada em parceria com a Associação Onçafari, instituição expert na preservação de onças-pintadas e lobos-guará.
Um brasileirinho introduzido na Argentina
Esse episódio emocionante é contado por Mario Haberfeld, fundador da instituição, no prefácio do livro, no qual relata A história de Isa e Fera: de volta à natureza (as primeiras a serem reintroduzidas) e detalha o processo de reabilitação e encaminhamento de uma onça macho.
Ela apareceu muito doente e debilitada na Escola Jatobazinho, mantida pelo Instituto Acaia Pantanal na Serra do Amolar, no Pantanal do Mato Grosso do Sul. A direção da instituição acionou as autoridades ambientais para resgatar o animal.
Batizado de Jatobazinho, em homenagem à escola que o acolheu, ele foi encaminhado para o Refúgio Ecológico Caiman, onde foi tratado, se recuperou e reaprendeu a caçar.
Em 1º de janeiro de 2022, a onça-pintada pantaneira foi solta no Iberá, onde segue gerando descendentes, entre eles, Arandu e Jasy (contamos aqui sobre eles, em julho: eram os primeiros filhotes a nascerem em vida livre, no parque argentino, após 70 anos; em setembro, já eram sete; agora, são 20!).
O Parque Nacional Iberá é reconhecido como o projeto multiespécies mais ambicioso da América, com reflexos igualmente positivos para a recuperação da vida silvestre e para o desenvolvimento de uma nova economia local.
A implantação do turismo de natureza baseado em observação de fauna é uma das atividades advindas do projeto de rewilding em Iberá. O bem-estar das comunidades locais é outra conquista, visto que a recuperação do ecossistema, a partir da reintrodução de espécies animais, elimina as atividades que motivaram sua extinção.
E esse modelo de ‘produção de natureza’ ainda reconhece a atividade agropecuária não como “marginal”, mas capaz de gerar economia restaurativa e sustentável.
Santuários e o turismo
Nos santuários Parque Nacional El Impenetrable (El Impenetrable Project), o Parque Patagônia da Argentina (Patagonia Project), e a Reserva Patagônia Azul (Patagonia Azul Project), a atuação da Fundação Rewilding Argentina – com a reintrodução de espécies animais e a recuperação do meio ambiente – visa também o empoderamento das comunidades locais a partir do desenvolvimento de economias restaurativas baseadas principalmente no turismo de natureza e na observação da abundante vida selvagem nativa.
Criado em 2014, na Província do Chaco, a partir do trabalho árduo de organizações e instituições de conservação da natureza, o Parque Nacional El Impenetrable protege 128 mil hectares de florestas de alfarrobeiras, palo santo e Schinopsis, campos, lagoas pantanosas e espécies ameaçadas de extinção como o tatu-canastra, o tamanduá-bandeira, a anta, o lobo-guará e a onça-pintada.
Já o Parque Patagônia da Argentina, localizado no nordeste da província de Santa Cruz, foi criado para garantir um corredor de conservação nas bacias do Atlântico e do Pacífico e proteger o ambiente único da Estepe Patagônica, composto por imponentes colinas basálticas, múltiplas lagoas e cones vulcânicos, além de ravinas extensas e profundas, onde vivem espécies endêmicas e raras.
Nesse parque, ainda, centenas de pinturas rupestres feitas por populações ancestrais caçadoras de guanacos (migração da espécie, na foto abaixo), cujas gravuras de paisagens e enormes rebanhos (que definiram sua cultura) permanecem intactas no topo do Planalto do Lago Buenos Aires.
A Reserva da Biosfera Patagônia Azul – declarada assim pela Unesco em 1978 -, está localizada no sul do país, na costa da província de Chubut, entre as cidades de Comodoro Rivadavia e Rawson. Esse trecho da costa abriga mais de 60 ilhas e baías protegidas que servem de alimentação e local ideal para a reprodução e a nidificação de inúmeras espécies de aves e mamíferos marinhos.
Com 3,1 milhões de hectares (cerca de 31 mil km2), é a maior reserva do país e a que contém a maior extensão oceânica.
“Estão prontos para fazer a sua parte?”
A restauração de ecossistemas promovida pela Fundação Rewilding Argentina contribui para o enfrentamento de graves problemas ambientais como a perda da biodiversidade, a emergência climática e o surgimento de pandemias.
O livro deixa evidente que trazer de volta espécies-chave para a restauração desses ecossistemas é também uma forma de preservação da própria humanidade.
Em dias tão alarmantes, quando os impactos da crise climática são escancarados com o registro de um dos invernos mais quentes da história no sul global, a leitura de Rewilding na Argentina serve, também, como alento e um chamado à luta, como destaca Doug Tompkins na epígrafe da obra:
“Estão prontos para fazer a sua parte? Todo mundo é capaz de assumir seu papel e utilizar sua energia, influência política, talento e recursos financeiros (ou de outro tipo) para fazer parte de um movimento global pela saúde ecológica e cultural? Tudo será útil! Há um trabalho importante e significativo por fazer. Para mudar tudo, são necessários todos. Todos são bem-vindos!”, convoca.
Já no epílogo da publicação, Kris Tompkins, reverbera o pensamento do companheiro Doug ao exaltar o aspecto colaborativo que é força motriz da Fundação Rewilding Argentina. E ainda celebra os resultados de três décadas de vida dedicadas à conservação ambiental:
“Para Doug e para mim, é motivo de orgulho ter formado equipes locais tão comprometidas com a restauração da natureza, que continuam ampliando nosso trabalho e nossos valores. Elas são nosso grande legado! Não há sentimento maior do que ser parte dessas equipes, cujo esforço diário se traduz no regresso de onças-pintadas e araras-vermelhas a Iberá, e no retorno de uma miríade de espécies aos vários ecossistemas nos quais trabalhamos na Argentina”.
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Serviço
REWILDING NA ARGENTINA
Por Sebastían Di Martino, Sofía Heinonen e Emiliano Donadío
Direção Geral: Mônica Guimarães e Teresa Cristina Ralston Bracher
Organização da edição brasileira: Clóvis Ricardo S. Borges
Tradução: Fernando A. S. Fernandez
Publicação: Documenta Pantanal, 2023
Apoio institucional: Associação Onçafari e Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS)
Dimensões: 32,5cm x 27cm
Quantidade de páginas: 280
O livro pode ser baixado gratuitamente (formato PDF) ou adquirido via postal no valor de R$ 250 pelo site da Documenta Pantanal. Informações: documentapantanal@gmail.com