As fotos raras surpreenderam a comunidade de ornitólogos e técnicos de conservação brasileiros. É o primeiro registro fotográfico da harpia em vida livre no Paraná. As imagens, que entraram para a história, foram feitas no município paranaense de Coronel Domingos Soares, a 400 km da capital Curitiba, pelo engenheiro agrônomo Francisco Herochi Hamada, que sempre gostou da natureza, em especial das aves.
Hamada é o maior fotógrafo de aves do estado. Está em primeiro lugar em postagem no site Wikiaves, com registro de 1.277 espécies diferentes. Mesmo já tendo sido surpreendido tantas vezes pelas aves que registrou, contou que foi uma imensa surpresa avistar a harpia, a maior águia das Américas e que está criticamente em perigo, devido, principalmente, à perda do habitat e à complexidade de reprodução.
“Entrei para o birdwatching em 2013 e até hoje cultivo este hobby, com muito prazer. Estava pescando de barco no Rio Iratim, com meu filho e um amigo dele, quando, de repente, ela pousou numa palmeira, às margens do rio”, contou. “Como sempre carrego minha máquina, de imediato comecei a fotografá-la. Num primeiro momento, fiquei incrédulo, muito emocionado”.
Hamada lembra que a ave ficou pousada de costas por alguns minutos. Depois virou-se de frente e permaneceu mais algum tempo observando o grupo.
“A harpia voou para outra árvore, distante cerca de 500 metros, ficou mais alguns minutos e voou para longe. Naquele momento, eufórico, não imaginava a importância e a repercussão do fato. Sinto-me muito feliz e orgulhoso, como observador de aves, em contribuir com os registros para a ciência”, diz.
Assim que soube da novidade, uma equipe de biólogos e ornitólogos saiu em expedição para buscar mais imagens e informações sobre a harpia. Francisco Hamada acompanhou o grupo por vários dias.
Pedro Scherer Neto, um dos maiores especialistas em aves do Brasil e pioneiro nas pesquisas em ornitologia, participou da viagem.
“Hoje em dia, ver uma harpia à solta, é uma surpresa enorme e, por muita sorte, isso aconteceu. Isso também gerou muitas perguntas. Então, o Instituto de Águas e Terras (IAT) nos contatou, para ver se conseguíamos novas imagens e procurar informações sobre o ambiente, conhecer mais a região. Infelizmente não conseguimos ver novamente a ave, mas avistamos outros gaviões também muito importantes para a avifauna do Paraná”.
O ornitólogo afirma que a foto foi um ato de sorte, como “ganhar na loteria”. Pelas imagens foi possível supor que é um macho. A fêmea é maior, pode pesar 7 quilos, enquanto que o macho pesa até 5 quilos. “Uma diferença visível de forma, de tamanho, de bico e de cabeça. A gente está supondo que é um macho, mas precisaríamos de evidências mais próximas para afirmar com certeza”, esclarece.
Scherer Neto acredita que existam outros indivíduos no estado, mas considera muito difícil fazer a pesquisa. É preciso paciência, tempo e sorte.
“Não é fácil acessar os remanescentes da Floresta Ombrófila Mista e um pouco da Estacional. Isso também é um fator positivo, porque dificulta a ação de caçadores. É uma tragédia histórica que moradores abatam essas grandes aves quando veem um gavião ou falcão pegando animais domésticos, como galinhas e pintinhos. Uma harpia é capaz de pegar um porco ou um leitão, um filhote de carneiro ou cabrito, e a caça pode acabar definitivamente com a espécie”, afirma.
Ele mesmo, viu uma harpia, em 2003 no litoral, no Rio Saiguaçu, perto de Guaratuba, entre Paraná e Santa Catarina, e sabe de relatos de colegas ornitólogos que observaram três indivíduos sobrevoando a região de Garuva.
O flagrante feito no Paraná
O biólogo e ornitólogo Rômulo Silva, da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), explica que a harpia é tão rara e ameaçada porque depende de grandes áreas de floresta para cumprir totalmente o ciclo de vida e se alimentar.
Ele lembra que o Paraná era um estado predominantemente florestal, coberto quase 100% do Bioma Mata Atlântica: no leste com a Floresta Atlântica, indo para o interior, subindo o planalto, com as Florestas com Araucárias, e mais para o oeste e o norte com a Floresta Seca do Rio Paraná. São esses os ambientes de ocorrência dessa ave.
“A expansão das atividades humanas, o desmatamento de florestas inteiras para retirada de madeira e o avanço da agropecuária causaram a perda do ambiente da espécie. Não houve, durante o período da colonização e do progresso das cidades, preocupação em preservar um pouco das áreas naturais. Sobraram pouquíssimos remanescentes florestais interessantes para a ocorrência da harpia”, lamenta Silva.
Somada à supressão das áreas verdes, também há a questão do abate predatório. Pela falta de presas naturais, a harpia se alimentava das criações e acabava alvejada e morta pelos moradores. “Além disso, a reprodução da espécie é muito complexa. A fêmea só atinge a maturidade sexual a partir dos 6 ou 7 anos de idade e gera apenas um único filhote, a cada três anos”, explica o biólogo da SPVS.
O flagrante fotográfico da harpia pode ser o primeiro passo para um projeto emblemático de estímulo à conservação e recuperação da espécie. O condor-da-califórnia estava praticamente extinto na natureza devido à caça e à destruição de seu habitat. O governo americano capturou os últimos indivíduos para um programa de reprodução gigantesco. Após vários anos, a ave foi reintroduzida na natureza e hoje existem quase 200 condores livres. Um projeto enorme que depende de dinheiro, pesquisa, comprometimento e profissionais em dedicação exclusiva.
“Basta olhar no mapa para verificar que há nessas regiões grandes mosaicos florestais, porém existem também na região Centro-Sul, principalmente em Palmas e General Carneiro. A fotografia da harpia confirma a suspeita de que a espécie sempre ocorreu por ali. E, por incrível que pareça, ainda restaram alguns remanescentes de Florestas com Araucárias grandes no Centro-Sul devido ao relevo acidentado”, ressalta Silva.
Segundo o especialista, existem muitas colinas e muitos morros que dificultam a retirada da madeira ou instalação de atividade agropecuária.
“Isso permitiu que a vegetação ficasse e talvez tenha proporcionado condições para esse animal continuar sobrevivendo ali. Todas as outras regiões paranaenses acessíveis já foram exploradas pelo ser humano e assim a harpia foi desaparecendo”, conclui.
Animais, tanto mamíferos como aves de grande porte, têm necessidade de grandes áreas para sobreviver, assim como espécies menores precisam de espaços menores. Para que o gavião-real tenha condições de vida novamente no Paraná, é preciso conservar os ambientes naturais que restaram. O crescimento das populações de grandes aves de rapina depende ainda de projetos de restauração e recuperação de florestas, além da formação de corredores de biodiversidade, interligando reservas naturais.
*Esta reportagem faz parte da última edição do jornal online e gratuito do Observatório de Justiça e Conservação. Para acessar os demais textos clique aqui.
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Fotos: Francisco Herochi Hamada