
Na beira do Rio Paraná do Mamori, em Careiro, ao sul do estado do Amazonas, ao entrar numa das estradas que foram abertas para implantação de novos moradores na região amazônica (os famosos travessões que saem perpendiculares à BR319), existe um dormitório/ninhal de anhumas. Fica isolado, como tudo por aquelas bandas, e abriga uma fauna espetacular, não só de aves, mas como de botos-cor-de-rosa, queixadas e onças-pintadas.
Pra quem não sabe, a anhuma é considerada a ave símbolo do estado de Goiás e estampa as bandeiras de Guarulhos e Tietê, em São Paulo. Inhuma, inhaúma, unicorne, licorne, anhima, alicorne, cuintáu, ema-preta, cametaú, camitaú, guandu (Mato Grosso), caiuí ou itaú são alguns dos nomes populares dessa ave em nosso país.
Chegar até esses berçários só com mateiro para desviar de vegetação intransponível e atoleiros movediços, armadilhas que podem botar fim a qualquer expedição. E lá fomos Gabriela, o mateiro e eu, manhãzinha feita, por trilhas, alagadiços e pedaços de floresta onde você se sente como uma formiga sob árvores que espremem o céu azul e radiante até transformá-lo em finas linhas diluídas numa sombra densa e pegajosa.

Eu e o filho do barqueiro
Ah, ouvir a conversa dos insetos e das plantas! Farfalhos, zumbidos, cri-cris, crócs… a sinfonia da Floresta Amazônica longe das motosseras; porém, nem tão longe, pois o cerco a este mundo “indomável” empurra a bicharada para clareiras como esta, transformada em ninhal e dormitório de anhumas, prontas a dispersar a qualquer movimento estranho ao pedaço. Sabemos que estamos no rumo certo quando ouvimos, ao longe, os gritos da anhuma.
Cada um interpreta a vocalização dessa ave de uma maneira diferente. O naturalista alemão George Macgraf figurou-a ‘víu-víu, já outro naturalista, o francês Le Cointe, diz que ela repete o próprio nome indígena, ‘camitaú’.
Mas os caboclos da Amazônia escutam claramente a ave dizer: “João Gomes, que comes tu? Minhoca, Minhoca”. Os avós desses caboclos ouviam simplesmente ‘ohi’. Aos ouvidos dos naturalistas estrangeiros, esse som parecia dizer camichi e, tanto assim, que deram o nome de ‘camichi cornu’ para diferenciá-lo do seu irmão, o Tachã, que ficou batizado por ‘camichi fidèle’.

O Paraná do Mamori é gigante, como tudo na Amazônia
A convivência neste oásis parece pacífica; porém, quem se arrisca?
Chegamos o mais perto possível e subo numa árvore onde permaneço até a galera me aceitar como observador ou alguém à espera dos frutos madurarem… Não importa, é preciso ficar por um bom tempo antes de ser bem recebido no pedaço. Depois, até passarinho vem matar a curiosidade e saber o que queres. O fundamental é esperar o tempo que for necessário até os guardiões da floresta te descobrirem.
Não pense ser o único predador topo de cadeia neste paraíso gourmet, tem a pintada à espreita (sim, a onça-pintada!). Para ela seríamos o prato principal, mas antes disso somos as entradas preferidas de mosquitos, mutucas, moscas, abelhas e formigas que chegam sem cerimômia, com probóscides (espécie de línguas dos insetos) delicadas e picaduras ardidas atrás de sangue e suor, temperados e cada vez mais quentes e saborosos.

Anhumas pastam no alagado
Depois de algumas horas o forno solar anuncia que a comida está no ponto: é chegada a hora do prato principal! Resolvemos fechar o bistrô e dar no pé, porque repelente não nos agrada por afastar bicho que gostaríamos de ter por perto.
Porém, a questão é hipnótica. Basta aparecer um bicho no foco e o bistrô reabre imediatamente e a galera continua a se fartar! Mas não tem jeito, chega uma hora em que dar no pira beliscado e feliz é a única saída. Só depois descobrimos a copaíba, o urucum e a andiroba como repelentes naturais e, aí, já é outra história…

Gavião-belo no ninhal das anhumas

O japu que veio me observar na árvore

Botos no Paraná do Mamori
*Com informações do livro “Da Ema ao Beija-Flor – Vida e Costumes das Aves do Brasil”, de Eurico Santos
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Fotos: arquivo pessoal