A experiência de viajar para uma aldeia indígena sempre é arrebatadora em minha vida. Desde a primeira viagem e até a última, meu desejo é sempre de ficar mais e mais. Deixar pra voltar mais tarde pra casa. Seja lá quando isso for…
Quero entender esses povos cada vez mais e contar sua história através da fotografia. Mostrar que a felicidade está nos gestos mais simples e contar ao mundo que, sim, eles existem, são os verdadeiros donos desta terra e temos a obrigação de preservar seus direitos.
A criação do primeiro workshop de fotografia em uma aldeia indígena, em 2016, foi uma estratégia para aproximar as pessoas que têm o desejo genuíno de conhecer de perto esse mundo do qual só sabem o que os livros e os filmes contam, e explorá-lo com respeito e admiração.
Costumo dizer que, ao chegar em uma aldeia, qualquer pessoa deveria se despir de qualquer preconceito e tentar renascer como indígena.
Mais do que um workshop de fotografia, tento oferecer aos participantes uma vivência pessoal. Uma experiência na qual sinta a essência de um povo que não alterou seu modo de vida pelas imposições do mundo moderno.
As noites nas aldeias, por exemplo, são transformadoras. A escuridão, os cantos, o fogo, tudo nos leva a viajar pelo imaginário e nos conecta com um passado remoto. Lembro, até hoje, do “meu primeiro Kuarup”. Uma inesquecível noite sem dormir escutando cada canto, cada choro, cada respiração, tentando sentir os espíritos ancestrais que voltam para levar os seus. E é neste momento que se apresentam algumas das fotografias que nos levam ao encantamento.
É á noite também que todos – homens, mulheres e crianças – sentam-se à volta da fogueira para saborear o peixe pescado dias antes e moqueado para a festa, em homenagem aos convidados.
O texto que segue é uma apresentação sobre o Kuarup que escrevi em 2003. É uma homenagem ao sertanista Orlando Villas Bôas que eu compartilho com você, leitor do Conexão Planeta, para que tenha uma pequena idéia do que acontece nesses dias de ritual.
O último Kuarup
Para as etnias do Alto Xingu – Waurá, Yawalapiti e Mehinako (tronco linguístico Aruak), Kalapalo, Kuikuro, Nafukuá, Matipú (tronco Karib), Kamayurá e Aweti (tronco Tupi) e Trumai (tronco linguistico isolado) -, esta é uma cerimônia em homenagem aos mortos. É a celebração de passagem, na qual o espírito do homem vai habitar a aldeia dos mortos.
Assim, um toro de madeira da árvore “Mari” é cortado e tem a base enterrada no pátio da aldeia. Os homens se juntam ao seu redor para entalhar e pintar suas formas. Depois ele é adornado com o Tucanapi, um cocar de penas de tucano, arara, japim e penas sagradas do Gavião Real ou Harpia.
Também amarram à sua volta braçadeiras coloridas e colocam, em “seu pescoço” o colar de caramujo Muirapeídecora. Neste momento, o espírito do homenageado ganha direito a uma nova vida nas formas do Kuarup. O homem já está presente para o cerimonial.
Mas vamos voltar um pouco no tempo. Nos dias que antecedem o Kuarup, a aldeia ganha um novo ritmo. Pode-se escutar, por horas a fio, o som das flautas Uruá, que ecoam para nos dizer o que está para acontecer.
As cores também fazem parte deste cerimonial. O vermelho do urucum, o negro azulado do jenipapo e o branco retirado do barro de tabatinga se imprimem nos corpos dos homens. Um a um, eles vão se apresentando ao Kuarup para celebrarem sua volta.
Em um grande cordão cantam e dançam num passo ritmado. No pátio da aldeia, eles se apresentam.
Logo todos os convidados estarão presentes para a luta de Huka–huka.
“Huka–huka!”, “Huka–huka!” gritam os lutadores em um som gutural, imitando Djauarum, a onça preta. Frente a frente giram e se provocam mutuamente e, no momento exato, se atacam. A luta é o encerramento da homenagem. Logo, o toro será lançado nas águas do rio Tuatuari para, de lá, caminhar para o Ivati, sua nova morada: o Céu dos Xinguanos.
Em 1998, o Kuarup foi realizado em homenagem a Cláudio Villas Bôas. Orlando, seu irmão, trouxe para São Paulo o toro de Cláudio, pois queria estar mais tempo a seu lado. Quatro anos depois, com seu falecimento, Marina Villas Bôas, esposa do sertanista, achou por bem que os dois irmãos partissem para a nova morada, unidos como sempre estiveram.
Coube a mim montar uma expedição para levá-los de volta ao Xingu. Hoje, no fundo das águas do Tuatuari descansam juntos e em paz os três irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas.
Fotos: Renato Soares