Mais um semestre de aulas se inicia na Universidade Estadual de Campinas. O campus, coberto por folhas secas, dá as boas vindas aos estudantes que chegam de todos os cantos do Brasil. Alguns andam em modo marcha-lenta, após o período de férias, e outros parecem um pouco mais animados, como é o caso do estudante indígena, Yanapa Mehinaku Kuikuro.
Aqui, vou contar, brevemente, a trajetória deste estudante desde sua aprovação no vestibular até, agora, nove meses depois (29 de setembro), momento em que muitos outros indígenas se preparam para o processo seletivo 2020.
As férias acabaram e, após passar três semanas com seus familiares, Jaraky, como gosta de ser chamado, retorna para dar continuidade aos seus estudos. Ele é um entre os 64 alunos que ingressaram no primeiro vestibular indígena realizado pela Unicamp, no ano passado. Ao todo, foram 610 inscritos de diferentes regiões, sendo o de São Gabriel da Cachoeira – município localizado no interior do Amazonas, na divisa com a Colômbia e Venezuela – o de maior expressão.
O rapaz de 30 anos cursa o segundo semestre de Letras e a escolha da carreira, segundo ele, vem do desejo de compartilhar seu conhecimento e ampliar a rede de professores indígenas em aldeias.
“Letramento era o meu sonho. Eu falava há muito tempo: ‘Eu vou fazer letramento, eu vou fazer letramento, até conseguir. Eu queria trabalhar como professor na sala de aula na aldeia. Por isso que eu escolhi esse curso’”, diz Jaraky com um sorriso no rosto.
Dos estudos à aprovação
Um voo de São Paulo a Cuiabá, mais 12 horas de ônibus, 2 horas de carro por uma estrada de terra e 3 horas navegando nas águas do Rio Culuene separam a aldeia Afukuri da cidade de Campinas. Ao todo, são mais de 1.500 km. Canarana, localizada na região norte do Mato Grosso, é a última parada antes de entrar no Território Indígena do Xingu.
Ao descer do barco, é preciso percorrer um trecho de aproximadamente 100 metros até chegar à aldeia. O sol forte e quente reforça os avermelhados da terra batida. Não há muito ali; são 19 ocas, distribuídas circularmente em torno da oca central, onde acontecem as reuniões e eventos importantes. O perímetro, cercado por uma extensa mata primária, revela a beleza e a diversidade da Floresta Amazônica.
Mais à esquerda, fora do anel, está uma pequena cabana de madeira, pintada nas cores verde e branca. Próximo à porta, vê-se uma espécie de brasão com a pintura de uma onça, símbolo que representa o povo Kuikuro.
É nesse local que as crianças, jovens e adultos indígenas estudam. Jaraky, acompanhado de um dos professores da aldeia, o Ajukuri Kuikuro, nos convida a entrar. Lá dentro estão algumas carteiras e cadeiras em relativo bom estado e uma lousa verde no chão, escorada na parede à frente. Cartolinas e papéis desenhados cobrem as paredes da sala, com traduções do karib – língua local – para o português.
“Essa é a nossa escola. As crianças e os jovens vêm aqui para aprender. Eu ensino os alunos do quinto ano”, diz Ajukuri enquanto mostra os trabalhos dos alunos. Sentados ali, conversando, é difícil não pensar nas dificuldades enfrentadas pelos indígenas no que se diz respeito ao acesso à educação. O professor Ajukuri diz que um dos principais desafios é a falta de estrutura.
“Ano passado, ficamos sem energia e faltou muita coisa para a gente. Agora, com as placas solares, ficou mais fácil pra fazer trabalho e para pesquisar palavras que a gente não conhece”. Com a mobilização e o esforço conjunto da comunidade, as placas que captam a energia do sol foram instaladas, permitindo ter iluminação e também internet durante certos horários do dia.
Em meio à conversa, Jaraky recebe uma mensagem no seu WhatsApp – plataforma muito utilizada pelos indígenas – e, com um sorriso de orelha a orelha e olhos brilhantes, ele anuncia: “Passei no vestibular da Unicamp! Agora eu estou muito feliz, eu não esperava, eu só fui lá fazer prova. Eu estou muito feliz”.
A comemoração, feita aos pulos e gritarias, transbordava felicidade. O sentimento era de gratidão, esperança e alegria por ter a oportunidade de aprender e poder repassar o conhecimento para frente. Jaraky poderia agora, se tornar um Kinguheni, ou seja, aquele que sabe ensinar.
A vida na universidade
Enquanto caminha pelo gramado em frente ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) – foto que abre este post – Jaraky conta que sua maior dificuldade está em se adaptar à língua portuguesa. Segundo ele, o karib é mais fácil, não tem tantas conjugações. “Eu espero que eu aprenda mais daqui pra frente. Estou aqui há dois meses só, então pra mim eu ainda não aprendi. Acho que daqui um ano vou estar melhor”.
Durante três dias da semana, ele participa de aulas de reforço de português ministradas por estudantes bolsistas da Unicamp, que se disponibilizaram a ajudar. A rotina e o ritmo de vida são comuns para a maioria dos parentes.
“Estou dormindo à uma (1h da madrugada) e acordo às seis (6h). Tomo banho às seis e quarenta (6h40) e sete e meia (7h30 ) pego o ônibus para chegar na aula em ponto”. Das sete aulas cursadas no primeiro semestre, Jaraky terá que refazer as matérias de Latim, Letramento e Seminário de Ensino de Língua Portuguesa. Essa realidade é comum para muitos estudantes indígenas que, assim como ele, sentem dificuldades em se adaptar ao currículo universitário.
Segundo a pró-reitora de graduação da Unicamp, professora Eliana Amaral, já era esperado que houvesse uma barreira de aprendizagem, porém a universidade não sabia dimensionar o real cenário até a chegada dos alunos. Oralidade, leitura e interpretação foram os principais pontos detectados, assim como noções básicas de matemática em contas de soma e divisão.
Amaral diz que a universidade está trabalhando para identificar as reais necessidades dos alunos indígenas através de entrevistas individuais realizadas com o apoio do serviço social e da orientação educacional. “A nossa preocupação é que eles precisam ter sucesso acadêmico. Com o desprendimento e a dedicação de alguns professores, montamos alguns programas de suporte particular principalmente em matemática e português”.
Adaptação cultural
A oportunidade de estudar em universidades públicas e federais como a Unicamp, UFG e UnB é o que leva muitos estudantes, das mais remotas partes do Brasil, a deixarem suas casas para enfrentar os desafios que, no caso dos indígenas, são complexos e multilaterais, a começar pela diversidade e pluralidade dos povos originários brasileiros.
De acordo com dados do censo do IBGE realizado em 2010, há mais de 800 mil indígenas de 305 etnias e que falam 274 línguas distintas. Cada povo tem, na teoria, autonomia própria sobre seus costumes, crenças, práticas e funcionamentos que os diferenciam e os caracterizam, mas, na prática, a realidade é outra. Quem explica isso é o professor inter-étnico, Douglas Floresta.
Antes de iniciar seu trabalho na aldeia Afukuri (MT) em 2016, Douglas trabalhou com resgate e reabilitação de fauna silvestre na Associação Mata Ciliar, em Jundiaí. Há três anos, o jovem de 28 anos, nascido em Votorantim, dedica sua vida à educação de jovens e adultos da aldeia. Além da estrutura precária, o professor destaca o despreparo do estado desde a capacitação de profissionais até a produção de materiais didáticos específicos.
“Quando pego, por exemplo, um livro do ensino médio, todo aquele conteúdo que está no livro, ele não cabe, não funciona nas culturas indígenas. A linguagem daqueles textos deveria ser outra. Os conteúdos, as imagens, estão muito além da realidade deles”. Para ele, falta ao estado uma gestão séria das escolas indígenas e uma relação mais próxima com os líderes, professores e estudantes a fim de compreender o que essas comunidades consideram adequado para eles, respeitando suas práticas e o seu tempo de existência, de aprendizado.
De forma correlata, as dificuldades acadêmicas também existem. Eliana Amaral aponta que, o maior desafio é lidar com as diferenças culturais e particularidades de cada etnia. “Apesar de eles conhecerem nossos hábitos e terem adotado uma série deles, o modo de operar como sociedade é diferente. Outra questão é que eles são de diferentes etnias, então eles também não são uníssonos, assim como nós não somos. Isso ficou muito claro quando eles chegaram e nos disseram isso com bastante clareza”.
“A nossa maneira de lidar com esse gap é oferecer cursos de suporte, mas nós não temos outra forma de fazer no momento. Existem sugestões, como o PROFIS. É um curso de formação geral, com duração de dois anos, com competências gerais acadêmico-universitárias nas três áreas do conhecimento. No mundo ideal, os indígenas deveriam passar pelo PROFIS. É uma ideia a ser amadurecida, mas que tem custo”, relata a pró-reitora.
Ao falar sobre sua vida na cidade, Jaraky aponta a questão financeira como uma das mais difíceis. “Na cidade, a gente só fica com dinheiro, sem dinheiro você não consegue ficar aqui. É diferente da aldeia; na aldeia você come sem pagar nada, tem tudo na natureza. Quando você fica com fome você tem que ir lá pescar, pegar as frutas nativas”.
Hoje, ele mora nos estúdios – residências específicas para famílias – com sua esposa e quatro filhos e recebe, mensalmente, um auxílio de R$ 897 para custos de transporte e alimentação. Parte deste valor é oriunda da BAS – Bolsa Auxílio-Social, promovida pelo Serviço de Apoio ao Estudante (SAE) e destinada a alunos de graduação que, em troca, realizam dez horas de atividades semanais em projetos dentro de diversas áreas da universidade. Jaraky optou pelo projeto Contação de Histórias e Artes Indígenas para as crianças da DEdIC, espaço educativo para filhos e filhas de estudantes e funcionários.
Diferente de outras universidades brasileiras que possuem o Programa de Bolsa Permanência (BPB), como a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal de São Carlos (UFScar), a Unicamp destina ¼ do seu orçamento para recursos de permanência e custeio para estudantes com Renda Per Capta inferior a um salário mínimo e meio.
Além das ações institucionais, alguns docentes, alunos e membros da comunidade mantêm suporte permanente e solidário aos estudantes indígenas. Uma das ações realizadas, são rodas de conversas no Espaço Cultural Casa do Lago, localizado dentro do próprio campus da Unicamp. Os encontros são abertos e visam abordar temas como saúde preventiva – física e mental -, autonomia e machismo.
Zilda Oliveira de Farias, conhecida como Dida, foi a responsável pela organização do bate-papo. A professora pedagoga, filha de nordestinos e descendente indígena do povo Kariri-Xocó, já acolheu diversas famílias em sua casa e é membro ativo na luta pelos direitos indígenas. Ela acredita que o debate horizontal e circular é essencial no processo de interação e adaptação deste grupo na sociedade ocidental. “É uma troca benéfica de experiências, saberes e cultura, uma troca necessária e possível”.
Olhando para o futuro
Na primeira edição do vestibular indígena, realizado em 2018, a prova foi composta de questões de múltipla escolha e uma redação, e foi elaborada de maneira contextualizada, condizente com as realidades encontradas pelos estudantes indígenas. Porém, ao mesmo tempo que a prova tem caráter inclusivo e segue a política de diversidade e pluralidade defendida pela universidade, há uma disparidade em termos de preparo e conhecimento quando esses alunos ingressam no mundo acadêmico.
Para Douglas, a iniciativa da universidade é louvável, mas há muitos pontos a serem melhorados. “Neste último final de semana, ajudei os alunos aqui da aldeia e de outras aldeias que vieram me procurar, a se inscreverem no vestibular. No questionário sociocultural da Unicamp, tem muita coisa que eles precisam se atentar. Por exemplo: “Quantos quartos têm na sua casa?” Todos eles responderam: – Não, na minha casa não tem quarto, é uma oca”. “Sua casa tem banheiro?” – Mas o banheiro é o mato. “Tem rua pavimentada?”. Eles precisam lembrar que existem indígenas em contexto de cidade, aldeia, aldeia urbanizada e em contexto de floresta. E que são realidades bem diferentes uma da outra”.
Outro ponto, é a questão da distância. Os locais das provas são realizados em cidades muito distantes, o que dificulta a participação dos indígenas nos vestibulares. No ano passado, Douglas organizou uma rifa e contou com a ajuda de amigos e familiares para custear as passagens do Jaraky e de outro estudante da aldeia até Campinas. Essa disparidade, fomentou uma reflexão entre docentes, coordenadores e diretores sobre qual o próximo passo a ser dado e de que forma ele deverá ser feito.
A Unicamp reconhece que está em processo de aprendizado e adaptação, identificando os pontos a serem aperfeiçoados e até modificados para manter os atuais alunos e receber futuros grupos. Entende também que, para promover o sucesso acadêmico e integração dos indígenas na vida universitária, a instituição precisa da ajuda e mobilização voluntária da comunidade para atender todas as demandas existentes.
Na edição deste ano, o vestibular será aplicado nas cidades de Campinas, Caruaru, Bauru, Dourados, São Gabriel da Cachoeira e Tabatinga, e as vagas passaram de 72 para 96. As inscrições tiveram início em 2 de setembro e foram até o dia 30, no site da Comvest.
A outra novidade é a inserção de sete novos cursos na edição de 2020. Com base em conversas com estudantes e lideranças indígenas, a universidade entendeu a necessidade de oferecer formações que estejam mais relacionados aos interesses dessa comunidade. Os cursos são: Ciências Biológicas (integral e noturno), Educação Física (integral e noturno), Engenharia de Alimentos (integral e noturno), Engenharia de Telecomunicações (integral), Engenharia de Transportes (noturno), Sistemas de Informação (integral) e Tecnologia em Análise e Desenvolvimento de Sistemas (noturno).
Apesar de todos desafios, Amaral é positiva e acredita na proposta oferecida pela Unicamp. “A pró-reitoria tem como obrigação tentar identificar e oferecer a oportunidade de chegar à Unicamp os alunos que irão se beneficiar dessa experiência, mas a missão dela é que esses alunos passem aqui e saiam, e que essa experiência seja modificadora do mundo”.
Para Jaraky, esta oportunidade já tem sido transformadora. Vendo o aprendizado como missão, ele espera no futuro realizar o sonho de se tornar professor e ajudar seu povo. “Quando eu me formar, vou fazer prova de linguística para fazer mestrado. Quero continuar, não quero parar”.
Fotos: Roberto Benatti (destaque), Carol Brenck, Felipe Martins e Douglas Ferreira