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Museu dos Povos Indígenas “é um instrumento para descolonizar mentes e corações”, diz Fernanda Kaingáng

Museu dos Povos Indígenas "é um instrumento para descolonizar mentes e corações", diz Fernanda Kaiangáng

Primeira indígena a concluir o mestrado em Direito na Universidade de Brasília (UnB) e doutora em patrimônio cultural e propriedade intelectual pela Universidade de Leiden, na Holanda, a advogada Fernanda Kaingáng tomou posse em 12 de dezembro do ano passado à frente do Museu Nacional dos Povos Indígenas. Seu principal desafio é reabrir à visitação ao edifício fechado ao público há quase oito anos no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. 

Joenia Wapichana, presidente da Funai, nomeia Fernanda Kaingáng
diretora do Museu Nacional dos Povos Indígenas
Foto: Matheus Araújo/Funai

Enquanto trabalha para alcançar esse objetivo, sua gestão vem estimulando uma série de discussões. Ela defende um projeto “para descolonizar mentes e corações“, capaz de contribuir para por fim ao genocídio histórico dos povos indígenas.

“Há muitas pessoas que dizem que os povos indígenas foram invisibilizados. Este termo não me agrada, porque permite que se alegue desconhecimento. Mas, na verdade, houve dolo. Não é invisibilidade. É negação. Negação de direitos“, destaca ela.

Criado em 1953 pelo antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, o Museu Nacional dos Povos Indígenas está vinculado à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e é responsável pela política de preservação e divulgação do patrimônio cultural dos povos indígenas no Brasil.

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Oficialmente, ainda leva o nome de Museu do Índio. Como já aconteceu com outros órgãos, a alteração na nomenclatura é iminente e já é assumida pela atual gestão. A mudança é justificada pela importância de se valorizar a diversidade desse povos.

A atual diretora considera que há uma evolução institucional em sintonia com a história. Liderança do Povo Kaingáng, que está distribuído pelos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, ela destaca que o museu deve fortalecer as mobilizações de resistência.

“Ele tem como característica e diferencial o fato de ter sido criado para combater o racismo. No ano passado, completamos 70 anos. Então lá em 1953, o Darcy Ribeiro, como educador, como político, como um ativista da diversidade cultural e da sociodiversidade, propôs a educação como uma ferramenta de empoderamento social. Acho que ele ia estar muito contente em ver uma indígena à frente do museu. Ele também é o criador da UnB. Eu fiz mestrado na UnB. A primeira indígena a fazer o mestrado em Direito lá em uma época que ainda não tinha cotas. Certamente, Darcy Ribeiro também estaria contente em ver a inclusão promovida pelas cotas dentro da UnB”, comenta Fernanda.

Embora sem previsão para a conclusão das obras que permitirão uma abertura integral, os jardins passaram a ficar acessíveis ao público externo em janeiro deste ano. Paralelamente, o acervo vem sendo incrementado.

Pela primeira vez na história, o Brasil repatriou centenas de itens etnográficos produzidos por indígenas brasileiros e que se encontravam de forma irregular em solo estrangeiro. Trata-se de uma coleção com cerca de 600 peças que estava no Museu de História Natural, Industrial, Comercial e Etnográfica de Lille, na França. Elas chegam para se somar a um significativo conjunto de bens culturais de natureza arquivística, museológica e bibliográfica. As coleções contemporâneas reúnem mais de 20 mil objetos, expressões da cultura material de 150 povos indígenas brasileiros.

A repatriação ocorre ao mesmo tempo em que um manto do povo Tupinambá foi recebido pelo Museu Nacional, do Rio de Janeiro. A peça estava desde, pelo menos, 1699 na Dinamarca. O país europeu atendeu o pedido de devolução, que contribuirá para a reconstrução do acervo etnográfico do referido, bastante destruído em um incêndio em 2018.

A forma como sua chegada foi conduzida, no entanto, gerou revolta entre os Tupinambás, que não puderam recepcioná-lo com um rito conforme manda suas tradições

Na noite da última quinta-feira (18), Fernanda Kaingáng conversou com a reportagem da Agência Brasil antes de sua participação no Encontros para o Amanhã, uma série de rodas de conversa organizadas pelo Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, e abordou esses e outros temas.

Para ela, as repatriações são “parte de um universo maior que é reparação cultural“, cobrou respeito aos Tupinambás e também defendeu que essas peças cheguem aos territórios, berços da sua criação. “Nossa cultura brota da terra”, disse. Também declarou que o Museu Nacional dos Povos Indígenas “não se exime de decretar emergência climática”.

Agência Brasil: O Museu Nacional dos Povos Indígenas passou quase oito anos fechado e reabriu neste ano o seu jardim. O que falta para a reabertura completa?

Fernanda Kaingáng: Quando um museu no Brasil fecha, é muito difícil ele reabrir. Nós não temos no país uma tradição de apoio à cultura. A reabertura do Museu Nacional dos Povos Indígenas é um ato de resistência. Mas nós temos um processo burocrático, porque é um patrimônio do Rio de Janeiro e também é um patrimônio nacional. O prédio é tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e não tem um plano diretor. Então é preciso reunir engenheiros, arquitetos e fazer um plano diretor que possa ser aprovado junto às instituições envolvidas. E aí fazer uma reforma que deve custar em torno de R$ 10 milhões.

Mas o Museu Nacional dos Povos Indígenas tem outras estruturas. Ele é o órgão científico-cultural da Funai. Temos a estrutura no Rio de Janeiro e temos o Centro Cultural Ikuiapá em Cuiabá, ambas atualmente fechadas. Ambas com acervo etnográfico. E temos, ainda, uma estrutura em Goiânia que acabamos de inaugurar que é o centro de audiovisual: um espaço para que os nossos cineastas, os nossos educadores, os nossos profissionais possam estar trabalhando a imagem como uma ferramenta de resistência.

A coleção de cerca de 600 peças que está sendo repatriada da França chega para enriquecer o acervo do museu. Poderia falar um pouco mais das características desse acervo?

É um dos mais relevantes acervos etnográficos do país. Com o incêndio no Museu Nacional, talvez tenhamos hoje o acervo etnográfico mais significativo depois do Museu Paraense Emílio Goeldi. E dispomos também de acervo bibliográfico com obras raras e de peças de arqueologia. Mas a maior parte são coleções contemporâneas que foram doadas ou que foram comprados. A origem delas é totalmente legal.

Nós trabalhamos com a perspectiva de que o museu possa se consolidar como um centro de referência na produção de políticas públicas de cultura para povos indígenas, em interface com diferentes Ministérios. A gente não tem que estar dentro de uma bolha. A cultura é uma questão central, mas ela também é uma questão transversal. E é através dela que a gente pode chamar a atenção para o processo demarcatório, para os direitos dos povos indígenas, pro genocídio que acontece há mais de 500 anos.

Essa proposta busca fazer contraponto com outros museus que contam com peças indígenas em seu acervo?

Existem muitos museus tradicionais que exibem coleções etnográficas que foram pilhadas, que foram saqueadas e cuja origem é ilegal. São apresentadas como símbolo de culturas primitivas, de culturas passadas, de culturas exóticas, descritas por terceiros. Então, hoje, o Museu Nacional dos Povos Indígenas é um símbolo de resistência, de demarcação de território. Por que nós temos os territórios ideológicos e os territórios físicos. É fundamental ter um espaço, ainda que seja em um casarão de arquitetura portuguesa, onde você diz que aqui se falam 274 línguas vivas, que aqui é um museu onde tem canto, onde tem dança, onde tem reza, onde os nossos sagrados são respeitados.

Isso aqui é um museu que fala em primeira pessoa. É uma outra perspectiva. Nossa proposta é contar com um conselho constituído por povos dos diferentes biomas do país. Um conselho exclusivamente indígena. Que seja deliberativo, que seja consultivo, mas que possa estar construindo propostas a partir de uma gestão participativa.

A repatriação começa a se tornar uma realidade para que retorne ao Brasil peças pilhadas que hoje estão em museus no exterior. Além da coleção que o Museu Nacional dos Povos Indígenas está recebendo da França, o Museu Nacional recebeu um manto do Povo Tupinambá, que estava na Dinamarca. Como você vê esse cenário e também as reivindicações que vêm sendo feitas pelos tupinambás, que esperavam recepcionar a peça?

São os primeiros casos. É uma primeira peça e uma primeira coleção que chegam quase simultaneamente. O Museu Nacional dos Povos Indígenas tem contribuído no grupo de trabalho criado pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) para discutir esses processos. No caso do manto, opinamos no sentido de que os Tupinambás sejam consultados. Porque é o sagrado deles que retorna.

A espiritualidade desses povos precisa ser respeitada. Nós sabemos que existe todo um cuidado de acervo, de salvaguarda da peça em si. Mas a gente não pode esquecer que essa peça é parte de um todo que é o universo e a cultura do povo Tupinambá.

Como é que nós vamos garantir que esses povos tenham voz no processo de tomada de decisão sobre a conservação do manto? A repatriação é parte de um universo maior que é a reparação cultural. Os museus devem aos povos indígenas essa reparação. Não só a repatriação, mas o fortalecimento dos centros de memória nos territórios, dos nossos referenciais, o reconhecimento por notório saber de pessoas indígenas. É preciso fortalecer os museus nos territórios.

Nós temos que ter condições de receber o nosso sagrado ali onde ele nasceu, onde ele brotou, onde ele floresceu. Porque a nossa cultura brota da terra, brota do território. A gente não desvincula o canto, da dança, da terra, da reza, da espiritualidade e do sagrado. As pessoas fazem uma separação entre demarcação de terra e expressão cultural tradicional.

Cerâmica, cestaria, plumária. Nós não fazemos essas separações. Mas se os museus hoje estão em situação precária em termos de recursos, imagina o centro de memória, os pontos de cultura e os museus nos territórios. Precisamos pensar no fortalecimento da formação de profissionais indígenas, de museólogos e arqueólogos, de antropólogos, de linguistas.

Pensando nesse caso e em futuras repatriações, já que há inúmeras outras peças fora do país, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) vem promovendo uma discussão para criar protocolo para que os povos indígenas tenham acesso a bens e objetos de suas culturas. O retorno do manto Tupinambá já está sendo assunto de um grupo de trabalho. Como você vê essa discussão?

Esses bens culturais foram monetizados. A cultura indígena gerou valor. E o que é que retorna além do manto? Então é questão de direito que os povos devem usufruir desse retorno primeiro. Por isso precisamos pensar em protocolos comunitários por povo indígena para que a gente possa decidir como o nosso patrimônio cultural será gerido e que essa decisão seja feita assim, em primeira pessoa.

Durante muito tempo, o Brasil exerceu o que a gente chama de tutela orfanológica. A tutela do Estado em relação aos indígenas, que deveria ser de garantia de direitos, foi transformada e foi desvirtuada em uma tutela de bens e de pessoas. Em nome dessa tutela, se cometeu todo tipo de crime.

O nosso saudoso Marcelo Zelic (pesquisador indigenista) chama de ‘crimes de tutela’, que é uma tipificação que não existe hoje no direito penal. Quem sabe pode ser criada a partir da justiça de transição e de reparação. Mas aí entram por exemplo todas as violações praticadas pela ditadura militar contra povos indígenas. Violações que estão relacionadas com a raiz colonialista dessa ideia de tutelar, de decidirem em nosso nome.

O nosso protagonismo deriva da nossa livre determinação e a nossa livre determinação revogou a tutela na Constituição de 1988, mas ainda existem instituições que não se deram conta disso. É direito dos povos indígenas, e nesse caso dos tupinambás, exercer a sua livre determinação e dizer quais são as suas prioridades. Quais são as suas necessidades com relação ao retorno do seu sagrado? Isso precisa ser respeitado pelo Estado brasileiro.

Estamos aqui para uma roda de conversa no Museu do Amanhã, que propõe reflexões sobre os caminhos para a humanidade. E toda essa discussão sobre respeito aos direitos dos povos indígenas é também uma discussão sobre presente e sobre futuro. O olhar do Museu Nacional dos Povos Indígenas também está voltado para o amanhã?

As pessoas pensam no amanhã, mas estão poluindo hoje a água que os filhos vão precisar tomar. A cada duas semanas desaparece uma língua no mundo. São línguas indígenas. O mundo vai ficando mais pobre, menos colorido, menos diverso. E a gente vê como causas isoladas. Mas é uma causa humanitária. O amanhã é para todos nós. E os povos indígenas sempre alertaram para os perigos inerentes à forma como a humanidade vem explorando o planeta. É por isso que o Museu Nacional dos Povos Indígenas se torna um instrumento para descolonizar mentes e corações.

Nós temos racismo institucional praticado todos os dias. As pessoas dizem na universidade que o seu saber não é ciência, que o seu Pajé não pode ser remunerado para dar uma aula inaugural em uma licenciatura intercultural para acadêmicos indígenas. Mas esse mesmo Pajé é pesquisado para servir de base para estudos e também para produtos e processos que são patenteados e que enriquecem o norte global: açaí, andiroba, copaíba, ayahuasca, cupuaçu. Tudo quanto é extrativismo. Ao mesmo tempo, o extermínio que ocorre no Brasil há 500 anos continua acontecendo. A tragédia Yanomami é prova disso.

Nós continuamos matando em nome de um lucro a qualquer custo. Ouro banhado em sangue Yanomami, Munduruku e Kayapó. Minério de ferro banhado em sangue Krenak, soja plantada e colhida com sangue Kaingáng. Então, é preciso repensar e reformular as bases em que nós estamos para que a gente tenha um amanhã possível.

O Museu Nacional dos Povos Indígenas hoje é isso. Um espaço de troca, um espaço de reflexão. O museu não pode se eximir de decretar emergência climática. Nós precisamos ter esse papel como sociedade e como museologia social.

O primeiro endereço do Museu Nacional dos Povos Indígenas foi um casarão no bairro do Maracanã, onde ficou até o fim da década de 1970. No local, vive, desde 2006, um grupo de 12 famílias indígenas que deram ao lugar o nome de Aldeia Maracanã. Desde o início da ocupação, há ameaças de despejo. A disputa em torno desse espaço ilustra os desafios para o reconhecimento dos povos indígenas?  

A Aldeia Maracanã é um casarão histórico que pode, sim, ser reformado. Ele não precisa ser derrubado para fazer um estacionamento, como já se cogitou. Ele pode ser um exemplo de restauração da memória viva. Lá era sede do Museu do Índio com o Marechal Rondon e com Darcy Ribeiro. A gente não pode deixar a nossa memória cair.

Expulsar de um imóvel federal os povos indígenas que estão ali? Povos que desenvolvem projetos culturais, projetos linguísticos, projetos de conhecimento tradicional sobre a fauna e a flora? Usar de violência contra esses povos? Removê-los dali é totalmente inaceitável às vésperas da Cúpula do G20 no Rio de Janeiro [a reunião começou hoje, 24/7]. É inaceitável para um país que quer receber a conferência do clima no próximo ano.

Enquanto ocorrem esses eventos, a gente extermina a diversidade que existe na capital do Império? Porque o Rio de Janeiro é um caldeirão cultural. E aí você elimina precisamente os povos indígenas? A continuidade do genocídio acontece quando este tipo de violência é perpretada.

Os povos indígenas não podem ficar numa aldeia em contexto urbano? Em um imóvel da União? Qual a justificativa? O governo Bolsonaro retirou a AGU – Advocacia-Geral da União do processo e nós temos insistido para que a AGU retorne e se manifeste dizendo que é direito deles permanecer. E o Ministério da Cultura destine recursos para que eles façam ali um centro de memória, um centro de história, uma universidade pluriétnica. Só não dá para transformar nossa história em estacionamento.

* Este texto foi publicado originalmente no site da Agência Brasil em 21/7/2024
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Foto (destaque): Fernando Frazão/Agência Brasil

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