
O que todos que defendem a Amazônia e os povos da floresta mais temiam esta semana, aconteceu: ontem, a Medida Provisória 910/2019 – que facilita a grilagem de terras públicas, autorizando a concessão dos títulos dessas terras a seus invasores e alterando a Lei da Regularização Fundiária – foi colocada em pauta no Plenário da Câmara dos Deputados por seu presidente, Rodrigo Maia.
Mas graças ao empenho da oposição – que travou embate forte, por cerca de três horas, com os apoiadores de Bolsonaro e os deputados dos partidos de centro, que também apoiam o presidente – não houve acordo e sua votação foi adiada por Maia para a semana que vem.
Para a oposição, liderada por Alessandro Molon, não faz sentido votar uma pauta tão irresponsável durante a pandemia que, até ontem, matou mais de 12 mil brasileiros, e limita a atuação da maioria dos deputados à presença online, já que pouquíssimos são os parlamentares presentes ao plenário.
A MP da Grilagem, como é mais conhecida, perde a validade na próxima terça, 19/5, e sem um acordo possível, o líder da Câmara acatou a proposta dos partidos de centro (MDB, PSDB, PSL e Cidadania) e sugeriu sua substituição por um projeto de lei que, nessa condição, pode ser votado no dia seguinte, 20/5.
A proposta é converter o parecer do relator, deputado Zé Silva no texto do projeto de lei. O parlamentar fez quatro alterações no texto original da MP, que ainda passou por centenas de emendas (mais de 500) das bancadas ruralista e ambientalista.
E Maia ponderou: “Proponho que nós possamos, e nós já fizemos isso, avançar sem ruptura nas relações da Casa. Qualquer encaminhamento amanhã pode gerar obstruções, inclusive em projetos da esquerda”.
As vantagens de ser grileiro

Hoje, a maior parte do desmatamento na Amazônia tem origem na invasão de terras públicas. Com a MP910, o governo anistia grileiros e e lhes oferece uma série de benesses.
Se seu texto for aprovado – como projeto de lei, agora – aumentará em cerca de 300% a regularização dessas terras. Isso significa que dos atuais 19,6 milhões de hectares, A Amazônia terá 65 milhões de hectares ocupados por criminosos. Ele altera a Lei da Regularização Fundiária (lei 13.465/2017), que limita a regularização às áreas registradas pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
Além disso, mantém os prazos da Lei da Regularização Fundiária e incide sobre terras ocupadas até 22 de julho de 2008, tornando possível que terras ocupadas até o final de 2011 sejam regularizadas.
Ficam isentos de vistoria os imóveis de até seis módulos fiscais. Cada módulo fiscal corresponde à uma área mínima necessária a uma propriedade rural para que sua exploração seja economicamente viável e, na Amazônia, esse tamanho é de 600 hectares, portanto, neste caso, trata-se de imóveis de até 1.200 hectares.
A MP também aceita uma simples declaração (ou autodeclaração, melhor dizendo) do interessado em regularizar a terra de que não avançou limites, nem confrontou vizinhos. Não é mais necessário apresentar documentos assinados pelos vizinhos que comprove o que ele alega.
Depois das quatro versões do relator e de receber 532 emendas das bancadas ruralista e ambientalista – como comentei acima -, feitas desde o início de março, os ambientalistas conquistaram duas vitórias no texto que foi levado a plenário: a redução da área das terras passíveis de autodeclaração (até 15 módulos fiscais) e a manutenção do marco temporal para a regularização que, no texto original, era válida apenas para terras ocupadas até o final de 2018.
Especialistas destacam que a alteração frequente dos prazos para ocupação das terras que podem vir a ser regularizadas estimula os grileiros, pois projeta a ideia de que sempre pode ser criada uma legislação que os beneficie e regularize a invasão. Esse fato é corroborado pelo Ministério Público Federal, que se manifestou contra a MP910, esta semana, enviando nota técnica à Câmara dos Deputados, como contamos aqui.
“A cada diploma legal se estende o prazo para a regularização, bem como os limites para considerar uma ‘posse legítima'”. Os procuradores também se manifestaram em vídeo, explicando, de forma bastante simples, sua posição.
O deputado Rodrigo Agostinho, coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista, destaca que, “embora a manutenção do marco temporal dê um recado de que não serão toleradas novas grilagens, a ampliação de quatro para seis módulos fiscais permite a legalização de propriedades sem vistoria, apenas com autodeclaração do proprietário”.
Ele ainda salienta o enorme desafio que temos pela frente: “Hoje, a maior parte do desmatamento é causada por invasão de terra pública. No Brasil temos ainda cerca de 20% da Amazônia como terras públicas não destinadas”.
Mobilizar é preciso, imprescindível

Rodrigo Maia não honrou sua promessa de não levar a MP para o plenário e, agora, ignorou os apelos da sociedade para atender a bancada ruralista, com a qual combinou a votação para ontem. Mas os argumentos dos parlamentares que lutaram para evitar a votação, tentando obter sua caducidade – e, com isso, mais um tempo, apoiados pela mobilização de ambientalistas, organizações e diversos cidadãos, se mostraram mais fortes do que esse conchavo.
Uma carta dirigida à Câmara dos Deputados (disponível no site Saldão da Amazônia) ajudou a fazer pressão e ganhou repercussão nas redes sociais. Na semana passada, um tuitaço elevou a hashtag #MP910Não às trending topics.
Vi pessoas de diferentes interesses falando da MP910 em seus perfis digitais, compartilhando conteúdos mobilizadores. E diversos foram os artistas do movimento 342 Amazônia, que aderiram à causa: Matheus Solano, Christiane Torloni, Julia Lemmertz e a cantora Annita, que vem se destacando nesta pandemia por seu engajamento ambiental e social, gravaram vídeos explicando a gravidade da situação, também para os povos indígenas, que estão ainda mais vulneráveis com a COVID-19.
Ontem à noite, depois da sessão que discutiu a MP910 e resultou no adiamento da votação, a cantora Annita recebeu o deputado Alessandro Molon em uma live em seu Instagram, para que ele explicasse a diferença entre medida provisória e projeto de lei (já que a MP pode mudar de forma) , e falasse sobre a medida, a votação e o futuro nessa questão. Reproduzo a seguir para que você assista. Tem quase uma hora, mas vale muito, e também ler os comentários de seus seguidores.
Todas as mobilizações contra a MP910, deixaram claro que vale muito se manifestar, denunciar, resistir, pressionar os parlamentares. Se alguém ainda tem alguma dúvida disso, não tenha mais. Assine petições, adira aos convites das organizações para lutar por algo que você acredita – seja na área ambiental ou social, pelos direitos humanos… Além disso, é importante que deputados e senadores nunca esqueçam de que trabalham na Casa do Povo, e pelo povo. Não contra ele e a favor de seus próprios interesses. Mas precisamos estar sempre atentos, cobrando.
Agora, a sociedade precisa lutar pelo adiamento da votação do possível projeto de lei que substituirá a MP910. Que esse debate aconteça somente depois que a pandemia terminar. De acordo com o deputado Alessandro Molon, o relator será outro: o deputado Zé Silva está sendo substituído por Marcelo Ramos, o que, a princípio, parece uma boa notícia.