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Morre Tuíre Kayapó que, com um facão, adiou a construção de Belo Monte por 20 anos

Morre Tuíre Kayapó, que adiou a construção de Belo Monte, por 20 anos, com um facão

Por Daniel Camargos e Isabel Harari*

Ícone da resistência indígena, Tuíre Kayapó Mẽbêngôkre (também chamada de Tuíra) faleceu hoje (10), aos 54 anos, por complicações decorrentes de um câncer no útero.

No final da década de 1980, aos 19 anos, ela tocou a lâmina do facão no rosto de José Antônio Muniz, presidente da Eletronorte, em uma audiência realizada em Altamira, no sul do Pará, para discutir a construção de um complexo de hidrelétricas no rio Xingu, então batizado de Kararaô.

Morre Tuíre Kayapó, que adiou a construção de Belo Monte, por 20 anos, com um facão
Em 1989, Tuire ameaçou José Antônio Muniz, presidente da Eletronorte, com seu facão
Foto: Paulo Jares

A foto do momento converteu-se em símbolo, mostrando que os indígenas não aceitariam a destruição da floresta. Também foi decisiva para paralisar as obras por 20 anos. O projeto inicial acabou remodelado e seu nome, Kararaô, grito de guerra Kayapó, substituído por Belo Monte.

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Em entrevista ao site do Instituto Socioambiental (ISA), ela contou: “Eu disse para ele: ‘branco, você não tem floresta. Essa terra não é sua! Você nasceu na cidade e, então, veio para cá atacar nossa floresta e nossos rios. Você não vai fazer isso!”.

“O gesto dela ficou para a história”, define Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA, ex-deputado federal e ex-presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). “A imagem é o signo mais perfeito da revolta dos povos indígenas do rio Xingu contra o barramento do rio”, complementa.

Na última entrevista que concedeu à Repórter Brasil, em outubro de 2023, Tuíre estava com o facão na mão, o mesmo usado em 1989. “Meu corpo representa o facão, e o facão representa meu corpo, pois são uma única força. Uma força e uma luta. Uma história”, definiu. 

A entrevista (assista no final deste post) foi realizada no quintal da casa dela, no sul do Pará. À época, a guerreira Kaypó se recuperava de uma sessão de tratamento do câncer (nota do Conexão Planeta: foi lançada uma ‘vaquinha online’ para ajudar a custear esse tratamento).

Morre Tuíre Kayapó, que adiou a construção de Belo Monte, por 20 anos, com um facão
“Antigamente, eu estava sozinha, mas hoje tenho essas mulheres guerreiras ao meu lado”, se referindo a Célia Xakriabá, Joenia Wapichana e Sonia Guajajara
Foto: Katie Mahler/Comunicação APIB

Tuíre, a primeira cacica

Muito além do episódio do facão, Tuíre exerceu um papel de referência, liderando marchas e protestos em Brasília. Ela foi pioneira no protagonismo feminino na luta dos povos indígenas. “A primeira cacica entre os caciques Kayapó”, lembra Mydjere Kayapó, do Instituto Kabu.

Décadas depois, sua atuação abriu caminho para a eleição de deputadas indígenas como Célia Xakriabá (PSOL) e a atual presidente da Funai, Joenia Wapichana (Rede), além da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara (PSOL). “Antigamente, eu estava sozinha, mas hoje tenho essas mulheres guerreiras ao meu lado”, afirmou à Repórter Brasil em outubro.

Nhaktak Kayapó lembra que Tuíre foi responsável pela realização de um encontro de mulheres em 2022. Na ocasião, mais de 50 indígenas se reuniram na aldeia Tekrejarotire, onde a cacica vivia. “A Tuire vem lutando pelo nosso direito, pela nossa cultura, pela nossa floresta. Agora está nos deixando. Nós vamos fazer o trabalho que ela deixou para nós”, diz Nhaktak.

Uma nova geração de Tuíres

A liderança também preparou a família para continuar o seu trabalho. “Ela deixou a luta para nós, para as novas gerações. Ela é uma pessoa guerreira, corajosa, deixou um exemplo para todos nós”, ressalta Patkore Kayapó, sobrinho de Tuíre e presidente da Associação Floresta Protegida.

Megaron Kayapó, sobrinho do cacique Raoni Metukitire, faz coro a Patkore. “Ela deixou um caminho para outros seguirem”.

No dia da entrevista, pediu para ser fotografada ao lado da neta, que tem o mesmo nome dela e empunhava uma miniatura do facão. Disse que estava ensinando a criança a defender o povo Kayapó, como ela. 

“Ela vai me representar quando crescer. É a nova Tuíre que está surgindo, que vai crescer e defender o povo igual eu estou fazendo”, afirmou. 

Morre Tuíre Kayapó, que adiou a construção de Belo Monte, por 20 anos, com um facão
Tuíre Kayapó com a neta, batizada em homenagem à avó
Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil

Tuíre sabia do seu papel. “Sou mulher, mas tenho a mesma determinação que um homem na hora da raiva. Tenho os mesmos direitos que um homem. Não tenho medo de nenhum homem. Não tenho medo de ninguém, pois possuo a mesma força que vocês representam ter”, disse na conversa em outubro.

Dias depois, foi sancionada a lei que trata do Marco Temporal. “Esses senadores, esses ministros – que vivem dizendo que são grandiosos, que têm direito a tudo, por que não têm coragem de chegar até nós, indígenas, e conversar cara a cara para ouvir o que temos a dizer? Por que falam e realizam as coisas pelas nossas costas?”, questionou.

Ela mesmo respondeu: “Essas pessoas dizem ter poder para falar, mas são apenas covardes. Estamos sempre no Congresso e eles nunca nos recebem. Estão sempre fugindo”.

As palavras de Tuíre se concretizaram na última segunda-feira (5), quando lideranças indígenas foram barradas na primeira reunião [de conciliação] de uma comissão para discutir o marco temporal, em Brasília. A iniciativa, encabeçada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), é vista com desconfiança pelo movimento indígena. 

Tuíre deixa o marido Kôkôto Kayapó, o cacique Dudu, duas filhas e netos.

A seguir, assista à entrevista concedida à Repórter Brasil em outubro de 2023, a última de Tuíre:

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Foto (destaque): Benjamin Mast/La Mochila Migrante/ISA

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