
Por Nicole Ambrosio*
Em um momento marcante para a história da educação indígena no Brasil, Odorico Xamatari Hayata Yanomami, Edinho Yanomami Yarimina Xamatari e Modesto Yanomami Xamatari Amaroko defenderam, na tarde de 23/4, suas dissertações de mestrado e se tornaram os primeiros mestres Yanomami da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
“Demorou, mas foi bom. Eles mostraram nossa arte, nosso histórico antigo”, resumiu xamã e maior líder do povo Yanomami, Davi Kopenawa Yanomami. Ele fez questão de prestigiar esse momento, comparecendo nas bancas de defesa. “Esse é o resultado da minha luta de quase 50 anos. Agora eles cresceram, nasceram outras lideranças que vão continuar nessa direção, outro vai continuar a defender a terra”.

Foto: Juliana Pesqueira / Amazônia Real
Davi Kopenawa não escondia a alegria em ver os Yanomami na universidade pública para discutir sobre a sua própria cultura tradicional. “Isso também é resultado da nossa luta. Resultado da liderança que lutou por eles quando eram pequenos e quando nem tinha nascido ainda. Eles estão seguindo o resultado da nossa luta, nós escolhemos seguir esse nosso caminho. O Yanomami quer seguir seu próprio caminho”, disse à Amazônia Real. E afirmou que continuará lutando para que mais indígenas entrem em espaços acadêmicos e para que as mulheres indígenas também queiram seguir esse caminho.

Foto: Juliana Pesqueira / Amazônia Real
Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e também pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), Davi Kopenawa serviu como referência acadêmica para os trabalhos defendidos pelos agora mestres Yanomami. Os trabalhos não seguem o modelo tradicional de dissertação, mas o método de escrita baseado na oralidade e utilizado pelo xamã e pelo antropólogo Bruce Albert, como no livro A Queda do Céu.
Em busca da ancestralidade
Os três mestres Yanomami são originários da região do Médio Rio Negro, município de Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas. Egressos do curso de Licenciatura Indígena – Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável – Yanomami, também oferecido pela Ufam, participaram de aulas realizadas nas próprias comunidades. Hoje, atuam como professores do ensino básico em língua Yanomami no xapono (aldeia-casa tradicional), localizada no Rio Marauiá.

Foto: Juliana Pesqueira / Amazônia Real
Além de educadores, Odorico, Edinho e Modesto exercem papéis de liderança política em seu território, promovendo o diálogo entre o saber tradicional Yanomami e os métodos formais da educação escolar. Suas pesquisas de mestrado representam essa intersecção, já que eles abordam temas ligados à ancestralidade, espiritualidade, cultura e preservação do conhecimento do povo Yanomami para as futuras gerações.
Odorico Xamatari Hayata Yanomami desenvolveu uma autoetnografia sobre o xamanismo (hekura), a partir da sua própria vivência com este conhecimento, refletindo sobre o seu corpo-espírito indígena Yanomami como território de memória e espiritualidade por meio da arte (matohy) que vem da floresta, do rio, do ar, da serra e do lago.
“Eu concluí o mestrado, mas falta mais para completar. A pesquisa não parou, eu sinto que tenho que ajudar o meu povo e por isso me preparei como mestre do povo nesse programa de pós-graduação. Essa pesquisa me levou mais para frente”, disse ele em entrevista à Amazônia Real, logo após a defesa.
Já Edinho Yanomami Yarimina concentrou sua pesquisa na língua Yanomami e sua ferramenta pedagógica na preservação do xapono Pohoroá, onde atua como professor. O pesquisador elaborou um vocabulário de 30 palavras que os ancestrais de seu povo falavam para repassar às próximas gerações Yanomami. “Me significou muito poder ajudar o meu povo Yanomami”, afirmou.
Modesto Yanomami Xamatari Amaroko se dedicou a investigar o papel da música na transmissão de saberes ancestrais. A dissertação analisa como os cantos e sons tradicionais são formas vivas de conhecimento para os Yanomami.

Foto: Juliana Pesqueira / Amazônia Real
“No tempo que foi a minha pesquisa, não foi tão fácil assim para conseguir. Faltou orientador, a universidade não era na comunidade. É muito complicado chegar lá um orientador, e sempre faltava para mim internet para fazer meu trabalho.Tive muita dificuldade para escrever a língua portuguesa também. Nós enfrentamos várias dificuldades, quando chovia grande, ninguém saía. Quando dá tempo de seca, é horrível com o nosso rio. Tudo isso para estudar e concluir a pesquisa. Esse resultado é para mim uma grande honra”, relatou Modesto.
O percurso deles até a pós-graduação foi repleto de desafios, a começar pelas dificuldades de deslocamento, principalmente durante os períodos de seca severa dos rios Marauiá e Negro, em 2023. Com o apoio dos professores Caio Souto e Agenor Cavalcanti, que se deslocaram até às comunidades para acompanhar o processo de orientação, e com a liberação de bolsas de estudo, os pesquisadores conseguiram concluir suas dissertações.
Romper com a tradição
As bancas de defesa, realizadas por meio do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA), foram presididas pelos professores Caio Souto, Agenor Cavalcanti e Marilene Corrêa.

Foto: Juliana Pesqueira / Amazônia Real
Coordenador do PPGSCA, Caio Souto destacou que os discentes são egressos de uma Licenciatura construída na própria comunidade e chegaram à pós-graduação por meio de políticas afirmativas e do esforço coletivo. O programa é interdisciplinar e conta com uma turma indígena em São Gabriel da Cachoeira, composta por 30 alunos de 10 povos diferentes, incluindo o Yanomami.
“A universidade ainda precisa ampliar essas políticas de acesso e permanência. A proposta de abrir uma segunda turma de mestrado e a primeira de doutorado em São Gabriel da Cachoeira é fundamental para consolidar esse processo, especialmente porque envolve vários povos”, pontuou o coordenador do programa.

Foto: Juliana Pesqueira / Amazônia Real
Souto afirma que há um edital aberto para uma segunda turma de mestrado e a primeira de doutorado em São Gabriel da Cachoeira, município do Alto Rio Negro, com a participação de diversos povos, entre eles Karapanã e Koripako. “Tem um estudante que é Karapanã, vai ser o primeiro do povo dele a defender mestrado. Tem um que é Koripako também, eu acho que é um dos primeiros, se não for o primeiro”, comentou.
O professor ressalta que o programa tem apostado em um modelo de formação que respeita e valoriza os modos próprios de produção de conhecimento dos povos indígenas, permitindo que os trabalhos acadêmicos reflitam a oralidade, a cosmologia e as práticas tradicionais.
Apesar da ausência de professores que falem as línguas indígenas, o programa tem buscado parcerias e construções coletivas para garantir que os estudantes possam se expressar dentro de seus próprios referenciais culturais. “A gente não fala Yanomami, mas conseguimos conversar com eles, gravar, transcrever e construir juntos os textos finais. Foi um trabalho intercultural, que fomos aprendendo a fazer junto com eles”, disse.
As dissertações dos três mestres Yanomami foram construídas a partir da oralidade, com transcrições acompanhadas por glossários extensos de matohy (as artes Yanomami), inventário de músicas e um dicionário com vocabulário e explicações. “Foi quase uma lexicografia Yanomami”, destacou o professor Caio Souto.
Para o professor Agenor Cavalcanti, que também acompanha o programa como antropólogo e docente de Filosofia e Ciências Humanas, o momento é uma virada simbólica na história da Ufam.

Foto: Juliana Pesqueira / Amazônia Real
“Além do valor científico e acadêmico, tem um valor representativo muito grande, que é a inclusão dos conhecimentos e dos especialistas indígenas dentro de um programa de pós-graduação. Com bolsas de estudo, enfrentando o desafio que é se locomover desde o seu xapono, no Rio Marauiá, até São Gabriel da Cachoeira e Manaus, é um esforço enorme dos três estudantes”, contou.
O professor afirmou que se tratam de trabalhos que rompem com os modelos hegemônicos da academia ocidental e reafirmam o direito dos povos indígenas à produção de conhecimento a partir de suas próprias referências. Para Agenor, isso também faz parte de um movimento de crítica e reconstrução da própria ciência.
“A universidade, historicamente colonizadora, começa a se abrir para uma autocrítica. A ciência se apropriou de saberes indígenas desde a chegada dos primeiros europeus, com a borracha, o cacau, o milho, a batata, tudo isso foi tomado e transformado em avanço tecnológico fora das comunidades que criaram esses conhecimentos”, analisou.
* Texto originalmente publicado no site da agência Amazônia Real em 29/4/2025
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Foto (destaque): Juliana Pesqueira / Amazônia Real