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Fotojornalista palestino Motaz Azaiza deixa Gaza após 108 dias narrando o drama e o sofrimento dos palestinos e se refugia no Catar

O fotojornalista palestino Motaz Azaiza tem 24 anos. Nasceu e cresceu no campo de refugiados Deir al-Balah, na Faixa de Gaza, onde experimentou, ainda pequeno, a opressão do governo de Israel, que controla Gaza, efetivamente, desde 2007 e ocupa a Cisjordânia desde 1967. 

Amanhã, 30 de janeiro, ele completa 25 anos. E, pela primeira vez, não vai celebrar o aniversário com a família e os amigos na Faixa de Gaza, mas em Doha, no Qatar, onde está refugiado há quase uma semana. 

Sua partida foi inesperada. Pegou seus seguidores de surpresa em 23/1, quando contou, em vídeo e rodeado de amigos, que havia decidido deixar Gaza, sem explicar o motivo.

Disse que aquela seria a última vez que o veríamos com o colete [de imprensa] “pesado e fedorento” porque havia decidido “deixar Gaza por uma série de razões – vocês sabem algumas delas, mas não todas. E espero que, em breve, eu possa voltar e ajudar a construir Gaza novamente”.

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Em seu rosto, um misto de alegria e tristeza. Afinal, poderia sair de seu país, andar pela primeira vez de avião e dar continuidade a seu trabalho e ativismo fora da zona de guerra. Mas, ao mesmo tempo, deixaria para trás pessoas queridas e a luta para libertar o povo palestino de tanta opressão. 

Mas não é só o motivo que fez o fotojornalista deixar o país – teria sido ameaçado? – uma incógnita. Como conseguiu permissão das autoridades israelitas para atravessar a Passagem de Rafah (dias antes não pode sair para receber prêmio na Turquia) e entrar no Egito, onde um avião militar do Catar o aguardava no Aeroporto Internacional de El Arish, a 48 km da fronteira, para levá-lo à cidade de Doha, onde obteve permissão para se refugiar?

Foto: reprodução de vídeo no Instagram

Durante a viagem – a primeira de avião! -, ele se filmou vendo a linda paisagem na janela – céu azul e nuvens bem branquinhas – e, ao publicar o vídeo, estampou a frase: “Should I be happy?”. Não havia brilho em seus olhos.

Assim que chegou a Doha, deixou nova mensagem nas redes sociais: 

“Saí de Gaza com o coração partido e os olhos cheios de lágrimas. Não havia outra opção depois de 108 dias de massacres contínuos contra nós. É hora de mudar para outro lugar para poder trabalhar mais e rezo para esta ser uma razão para parar esta guerra e ajudar a reconstruir Gaza novamente. Cheguei ao Catar. Obrigado! Não há tempo para descansar”.

E ele ainda fez um apelo: “Continuem pedindo um cessar-fogo!”.

O ritmo em Doha

Um dos primeiros compromissos na cidade, de acordo com os registros em suas stories no Instagram, foi a ida à sede da TV Al Jazeera, onde foi entrevistado sobre sua experiência na guerra e a realidade em Gaza.

Nos corredores da emissora encontrou o amigo Wael Al-DahDouh (foto abaixo), ex-chefe da sucursal da Al Jazeera na Faixa de Gaza, que perdeu grande parte da família nos bombardeios – inclusive o filho jornalista que também trabalhava para a emissora -, e que agora mora em Doha.

Ele também perdeu um amigo e colega cinegrafista, num ataque de drone, durante o qual ficou ferido (veja o curativo em sua mão na foto abaixo). Wael é outra figura heroica neste cenário de barbárie. Nunca parou de trabalhar, mesmo mergulhado na dor. 

“Nossos sorrisos são uma forma de resiliência”, escreveu Motaz na legenda da foto acima em seu perfil no X. O registro é de 23 de janeiro, em Doha, nos estúdios da All Jazeera (repare no curativo na mão de Wael: ele foi ferido no dia em que seu amigo cinegrafista foi assassinado por Israel) / Foto: reprodução do Instagram

Motaz tem publicado muito menos do que quando estava em Gaza e restringido suas publicações às stories. As legendas são quase haikais (poemas curtíssimos de origem japonesa), como na foto acima. O tempo ganhou nova dimensão. E ele tem dedicado boa parte dele a novos contatos e a entrevistas em programas de TV locais. 

Todos querem ouvir o jornalista palestino que viu a guerra pelas lentes de sua câmera, compartilhando seu olhar com o mundo. Mas aquele que também viveu profundamente cada cena, chorou, se desesperou, teve medo, ajudou a tirar pessoas dos escombros, correu ao hospital mais próximo para tentar salvar duas crianças feridas, e ainda se deleitou com cenas amorosas como a do retrato lindo que fez ao registrar duas mães conversando, na companhia de seus bebês, em meio à destruição.

Foto: Reprodução do Instagram

Ontem, a agenda foi um pouco diferente: visitou os jogadores da seleção da Palestina no estádio onde eles treinavam para o jogo de hoje – contra o Qatar. 

Mas o encontro se deu não foi só pela admiração que ele tem pelo time como torcedor. Na legenda do vídeo que publicou, explicou: “Fui visitá-los e apoiá-los com algumas palavras, pois estão literalmente jogando com a mente destruída”.

No final do encontro, abraçou cada jogador, um a um. 

Hoje, Motaz foi assistir ao jogo Palestina X Qatar muito bem acompanhado: ao lado de crianças palestinas – e de alguns familiares e tutores; alguns perderam seus parentes -, que se recuperam física e mentalmente no Hospital do Catar. 

E assim Motaz tem vivido os primeiros dias na cidade que o acolheu: também com empatia, alegria e compaixão, agora num outro cenário e ritmo. Sem o barulho de bombas explodindo, rajadas de bala e drones espiões. Sem sobressaltos. Podendo descansar a cada dia, mas certamente sem esquecer Gaza: a terra vilipendiada, a família, os amigos. Sobre isso ele ainda não contou, estou aqui elucubrando.

O comunicador e o homem do ano

Quem diria que, quatro dias antes de se despedir de Gaza – sem outra opção, pelo visto -, Motaz não obteve permissão para sair do país temporariamente e receber um prêmio na Turquia. Que ironia!

Ele foi escolhido pela revista turca TRT como Comunicador Cidadão Mundial e, como não pode ir à cerimônia em 18/1, em Istambul, enviou um vídeo de agradecimento – que foi exibido na festa (foto abaixo) – e escolheu uma amiga querida, que não conhece pessoalmente, para representá-lo: Laila Mokhiber, que vive em Washington, Estados Unidos, e é diretora de comunicação da UNRWA (agência da ONU que atende refugiados palestinos e está sofrendo boicote de onze países devido a acusações de Israel, como contamos aqui).

No ‘discurso’ que gravou em seu carro – apresentado aos convidados após a exibição de vídeo sobre a atuação de Motaz na cobertura do genocídio em Gaza –, ele disse sentir muito não estar presente e dedicou o prêmio “a todos que filmaram, que falaram, que escreveram sobre o que está acontecendo aqui. E, também, aos jornalistas que perderam suas vidas enquanto cumpriam seu dever de cobertura e de mostrar ao mundo o inferno que estamos sofrendo com esta ocupação”. E desejou que “o mundo inteiro viva em paz, sem guerras, sem ocupação e sem sofrimento”.

Vídeo que Motaz gravou para a cerimônia de entrega do prêmio Comunicador Cidadão Mundial, da revista turca TRT / Foto: reprodução de vídeo no Instagram

“Motaz é, hoje, um nome que o mundo inteiro conhece”, declarou Laila, emocionada, logo após receber o troféu. “Apesar do que tem vivido, continua a ser um palestino por excelência: gentil, atencioso, genuíno, criativo, inteligente, talentoso, engenhoso e apaixonado; acima de tudo, firme”.

Revelou também que o amigo “é um sonhador”, que nunca esteve na Turquia, nem foi autorizado (até então) a ir a qualquer lugar dentro ou fora de Gaza – exceto uma breve viagem ao Egito, onde adquiriu seu equipamento fotográfico: “Essa é a vida sob um bloqueio total aéreo, marítimo e terrestre”, contou. 

Laila Mokhiber, amiga de Motaz, o representou na cerimônia de entrega do prêmio Comunicador Cidadão Mundial, concedido por revista turca. Na camiseta dela, uma ilustração do fotojornalista / Fotos: reprodução do Instagram

Também contou que o fotojornalista não quer ter 20 milhões de seguidores ou ganhar prêmios por documentar o apagamento de seu povo e a destruição total do mundo que ele conhece. Ele quer ser livre: “Deseja liberdade, não fama”.

“Seu sonho sempre foi viajar pelo mundo e documentar sua beleza. Por que esse jovem de 24 anos – ou qualquer ser humano -, haveria de ser impedido de fazer isso?”.

Mal sabia Laila que, dias depois, seu amigo estaria “livre” para voar e circular fora de Gaza. Não sabemos, ainda, qual a medida de sua liberdade, mas, ao que parece, agora ele pode realizar esse sonho. E certamente eles podem se conhecer também.

O prêmio da TRT não foi o primeiro reconhecimento que Motaz obteve pelo trabalho ímpar e muito humano que realizou desde que Israel iniciou os ataques em Gaza, para revidar o ataque do Hamas, em 7 de outubro de 2023, e eliminar o grupo terrorista.

Mesmo com apagões constantes da internet e a destruição da infraestrutura de comunicações de Gaza, Motaz atraiu a atenção do mundo, atravessando escombros e a fumaça dos bombardeios e driblando disparos em terra. 

Sua popularidade, para além de Gaza, é notória e, por isso, antes de 2023 terminar, foi escolhido pela revista masculina GQ do Oriente Médio como o Homem do Ano, título que lidera uma lista anual de personalidades. 

Motaz Azaiza, o Homem do Ano da GQ do Oriente Médio / Foto: divulgação

Uma homenagem a ele e “a todos cujo destemor permanece incomparável, como Plestia Alaqad,Hind Khoudary, Wael Al-Dahdouh, Issam Abdallah, Shireen Abu Akleh, além de inúmeros nomes que conhecemos ou não”, escreveu o jornalista Ahmad Swaid, que ainda destacou em página da revista: 

“[Motaz] Tornou-se uma figura global, um veículo de resistência e a personificação da esperança para o povo de Gaza e para o resto de nós, em todo o mundo”. 

A edição que apresenta a lista completa de agraciados e traz o jornalista palestino na capa (acima) foi publicada em novembro. 

Na mira da TIME

Pouco antes, em 31 de outubro, uma de suas fotos incríveis (e terríveis) feitas em Gaza – uma garota presa nos escombros de sua casa – foi publicada pela revista americana TIME como uma das 100 melhores imagens de 2023

Esta lista é uma seleção anual realizada pela publicação e cobiçada por todo profissional de fotografia.

Jovem presa sob os escombros de sua casa após ela ter sido bombardeada por ataques aéreos israelenses, no campo de refugiados de Al Nusairat / Foto: Motaz Azaiza (31/10/2023)

Sim, seu trabalho é digno de estar nessa seleção tão respeitada, entre alguns dos maiores nomes da fotojornalismo mundial, que trabalham para agências como Getty, AP e Reuters. 

E pensar que, desde que optou pela fotografia para se comunicar e atuar no mundo, aos 14 anos, ele desejava contar e espalhar histórias sobre seu país e o povo palestino (das belezas da região ao cotidiano, como também a destruição resultante de ataques periódicos de Israel) e vê-las vencerem fronteiras e reverberarem pelo planeta. 

Motaz é free-lancer e, durante o tempo em que cobriu a tragédia humanitária em Gaza, provocada por Israel, fotografou para a UNRWA, agência da ONU para refugiados. Foi assim que conheceu Laila.

As redes e Gaza

No Instagram, ele conquistou muita gente: até outubro do ano passado, tinha 27.500, em cerca de cem dias ultrapassou 18,5 milhões(no X, são 15,3 mil e, no Facebook, 20 mil).

Mas isso só ocorreu porque sua vida e a de 2,3 milhões de palestinos foram atravessadas pela tragédia iniciada em 7 de outubro, quando o grupo terrorista Hamas invadiu Israel.

O brasileiro Gilmar – o Cartunista das Cavernas – homenageou Motaz em 26/10, quando já era evidente a manipulação da mídia e o destemor do fotojornalista palestino. Veja em seu Instagram, a charge que Gilmar desenhou em 2006 sobre os ataques de Israel a Gaza, e que acompanha esta ilustração

O confronto dos integrantes do Hamas com soldados israelenses e os ataques a um Kibutz e a uma rave lotada (que acontecia há poucos quilômetros da fronteira), resultaram na morte de 1.139 pessoas e em 240 reféns (metade foi libertada durante o primeiro e único cessar-fogo realizado em novembro; três jovens foram fuzilados por soldados israelenses ao fugirem do cativeiro; e há outros mortos comunicados à Israel, cujos corpos o governo se negou a receber).

A ofensiva orquestrada por Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelense, há 115 dias (completados hoje), como resposta à ousadia do Hamas de invadir a fronteira, já matou 26.422 palestinos (sendo mais de 11 mil crianças), 65 mil feridos e ainda há cerca de 8 mil corpos sob os escombros (fontes: Ministério da Saúde Palestino, Sociedade Palestina Crescente Vermelho e Israeli Medical Services).

São números que aumentam todos os dias e podem ser impulsionados também pela fome e pelas doenças que assolam mais de um milhão de pessoas deslocadas para o sul de Gaza, a mando de Israel “por ser mais seguro”. 

Não deve ser fácil ver oportunidades se abrirem devido a uma tragédia humanitária como a que vive seu povo, mas desejo que Motaz saiba aproveitar os caminhos que estão se abrindo neste momento para continuar lutando pela Palestina – e disseminando a realidade velada pela mídia do mundo todo -, agora de outro modo. E que seja muito feliz e possa voltar à Gaza, que ele tanto ama.

Foto: reprodução do Instagram

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Luciana De Lima Carezzato
Luciana De Lima Carezzato
1 ano atrás

Parabéns pela excelente matéria. Torço pela liberdade e paz na Palestina e pelo sucesso de Motaz, que retorne breve à sua pátria em outro contexto.

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