Após a denúncia no mês passado sobre a transferência de 26 ararinhas-azuis e quatro araras-azuis-de-lear enviadas da Alemanha pela Association for the Conservation of Threatened Parrots (ACTP) para o Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom, zoológico que está sendo construído na Índia, sem o conhecimento ou autorização do governo brasileiro, agora a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas) entrou com uma ação no Ministério Público Federal (MPF) pedindo uma investigação sobre transações suspeitas na venda de uma propriedade em Curaçá, na Bahia, região onde é realizado o programa de reintrodução da ararinha-azul.
No documento apresentado à 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, em Brasília, a Renctas pede que seja “sustado o processo de transferência de titularidade da FAZENDA CONCÓRDIA (Curaçá/BA) – local de ocorrência da espécie silvestre ararinha-azul (Cyanopsitta spix) na natureza– e (b) instaurado procedimento investigativo para apurar a ocorrência de crimes que estejam sendo possivelmente perpetrados no citado imóvel com a participação e envolvimento direto de servidor público federal”.
O servidor em questão é Ugo Eichler Vercillo, analista ambiental licenciado do ICMBio, e que atualmente ocupa o cargo de diretor técnico da empresa particular BlueSky Caatinga, uma subsidiária da BlueSky Global, com sede em Berlim. Antes de assumir essa posição, ele esteve pessoalmente envolvido em todo o processo no Ministério do Meio Ambiente para a finalização do acordo internacional para a reintrodução da ararinha-azul, que incluía não somente a participação do criador de aves ACTP, que cederia as aves, mas outras instituições do exterior.
No texto entregue ao MPF, e ao qual o Conexão Planeta teve acesso, em treze páginas a Renctas expõe o caso sobre a venda da Fazenda Concórdia e todas as investigações realizadas, que começaram a partir de uma ação trabalhista movida por Kilma Manso Raimundo da Rocha, em 2019, que segundo levantou a organização, já exerceu a função de agente da Polícia Federal e chefe do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), órgão do Ministério do Meio Ambiente.
Kilma teria trabalhado como engenheira agrônoma e gerente na Fazenda Concórdia entre 2014 e 2018, mas deixou de receber seu salário em determinado momento.
Mas qual a ligação da Fazenda Concórdia com o programa em andamento de reintrodução das ararinhas-azuis, coordenado pelo ICMBio em parceria com a ACTP?
Para entender melhor o caso, é preciso voltar no tempo.
Al-Wabra do Catar, a proprietária da Fazenda Concórdia
A ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), espécie endêmica do Brasil e que só existe, ou melhor existia, na natureza em nosso país e em nenhum outro lugar do mundo, foi considerada oficialmente extinta no ano 2000, quando desapareceu o último indivíduo em vida livre, que era então monitorado por pesquisadores.
Acredita-se que o principal responsável por sua extinção tenha sido o tráfico ilegal de aves. Cobiçada por colecionadores e criadores internacionais, sobretudo europeus, a ararinha foi contrabandeada para outros países.
Todavia, na mesma época em que a ararinha foi declarada extinta no Brasil, o Sheikh Saoud bin Mohammed bin Ali Al Thani, do Catar, que possuía um zoológico particular de espécie raras, comprou – sob duras críticas – duas “coleções” de Cyanopsitta spixii’s, originárias de criadores das Filipinas e da Suíça.
Com o sucesso da reprodução em cativeiro, a Al-Wabra Wildlife Preservation (AWWP), criada pelo sheik do Catar, teve em mãos o maior plantel de ararinhas-azuis do mundo, 120 aves. A intenção dele era eventualmente enviar as ararinhas para o Brasil e iniciar um programa de reintrodução na natureza. Apesar do sheikh ter morrido repentinamente em 2014, com apenas 48 anos, em 2016 foi firmado um acordo com o governo brasileiro, na gestão do então ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, para a repatriação da espécie.
Em imagens da época, divulgadas pela AWWP no Facebook, é possível ver uma reunião em que estão presentes autoridades brasileiras, o fundador da ACTP Martin Guth, representantes de outras instituições internacionais de conservação e Ugo Eichler Vercillo, apontado na legenda da imagem como “figura chave” no acordo. Ele ocupava então o cargo de Diretor da Secretaria de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente.
Como parte do acordo, a Al-Wabra comprou uma propriedade de 2.231 hectares no município de Curaçá, a Fazenda Concórdia. Lá foram construídos recintos destinados às atividades de reprodução e reintrodução da ararinha-azul.
A Concórdia faz divisa com uma fazenda de propriedade da ACTP, adquirida um tempo depois, e onde hoje em dia estão as aves do programa de reintrodução.
Contudo, em 2018, a AWWP anunciou que devido a instabilidades políticas no Catar e na região foi tomada a decisão de enviar “temporariamente” todas as ararinhas para a sede da ACTP na Alemanha. Na nota divulgada então, afirmava-se que as aves continuariam sendo de propriedade da família do sheik, e a meta era que já em 2018 “uma grande quantidade de aves fosse transferida para o Brasil”.
Mas além da pandemia de 2020, parece que em algum ponto antes essa história deu pra trás, já que segundo a ação trabalhista movida pela servidora do ICMBio Kilma Manso Raimundo da Rocha, seu salário deixou de ser pago.
Registro da reunião de 2016 quando foi assinado o acordo para a futura reintrodução da ararinha-azul: Ugo Vercillo é o segundo, da esquerda para a direita, Martin Guth, da ACTP, no centro, de camisa azul
(Foto: reprodução Facebook AWWP)
Fazenda Concórdia vai a leilão
Ainda segundo a investigação feita pela Renctas e documentos entregues ao MPF, a Al-Wabra alegou que não tinha condições financeiras de pagar o valor de R$ 25 mil pleiteado por Kilma e por isso, a justiça decretou a penhora da Fazenda Concórdia em 2021.
Avaliada em pouco mais de R$ 445 mil e com lance mínimo de R$ 223 mil, a propriedade foi a leilão, por duas vezes, em setembro e outubro de 2023, entretanto, não havia interessados.
Mas curiosamente, dias antes do primeiro leilão, durante uma audiência no Tribunal Regional do Trabalho para análise do caso de Kilma, na qual Ugo Vercillo estava presente, ficou acertado que ele compraria a Fazenda Concórdia “mediante pagamento à vista no valor de R$ 1.115.883,06. Esse valor seria dividido da seguinte forma, conforme descrito abaixo:
Os valores previamente acordados após a oferta da compra da Fazenda Concórdia por Ugo Vercillo
(Imagem: reprodução documento apresentado pela Renctas ao MPF)
Para a Renctas há conflito de interesses
Diante de todos esses dados e informações acima, a Renctas pede que a venda e a transferência da titularidade da Fazenda Concórdia sejam sustadas e o Ministério Público Federal investigue melhor o caso.
Em sua ação, a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres faz os seguintes questionamentos:
➢ Por que a reclamante, Sr.ª KILMA MANSO RAIMUNDO DA ROCHA, que pleiteava a quantia
indenizatória no valor de R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais) estaria sendo favorecida pelo
pagamento de R$ 955.164,48 (novecentos e cinquenta e cinco mil, cento e sessenta e quatro
reais e quarenta e oito centavos)?
➢ Por que o Sr. UGO EICHLER VERCILLO adentrou o contencioso ajuizado pela Sr.ª KILMA
MANSO RAIMUNDO DA ROCHA em face da AL-WABRA EMPREENDIMENTOS E PARTICIPACOES LTDA?
➢ Qual a origem dos recursos no valor de R$ 1.115.883,06 (um milhão, cento e quinze mil,
oitocentos e oitenta e três reais e seis centavos) PAGO À VISTA pelo FUNCIONÁRIO PÚBLICO
LICENCIADO UGO EICHLER VERCILLO para adquirir a FAZENDA CONCÓRDIA?
➢ Se eram recursos próprios do Sr. UGO EICHLER VERCILLO, estavam DECLARADOS em seu
IMPOSTO DE RENDA PESSOA FÍSICA, conforme exigido pela legislação própria?
➢ Se não são recursos próprios, como teriam sido OBTIDOS e qual a SUA ORIGEM?
➢ Por que o Sr. UGO EICHLER VERCILLO não efetuou qualquer lance nos 2 (dois) LEILÕES
realizados para a venda da FAZENDA CONCÓRDIA, efetivando a compra da propriedade pelo
LANCE MÍNIMO de R$ 223.110,00 (duzentos e vinte e três mil, cento e dez reais)?
➢ Estaria o Sr. UGO EICHLER VERCILLO representando um COMPRADOR INCÓGNITO na
reclamação trabalhista em curso no Tribunal Regional da Justiça do Trabalho da 5ª Região?
Dentre outras questões, a Renctas diz que Ugo Vercillo, na condição de servidor público, “estaria violando a Lei nº 12.813 ao adquirir uma propriedade rural com o objetivo de trabalhar com uma espécie silvestre onde, antes de se licenciar, era o principal gestor público responsável pela conservação dessa espécie” e que seria vedado a servidores públicos “prestar serviços, ainda que eventuais, a empresa cuja atividade seja controlada, fiscalizada ou regulada pelo ente ao qual o agente público está vinculado”.
Oferta da Fazenda Concórdia: lance inicial era de R$ 223 mil, mas ela foi comprada por mais de
R$ 1 milhão, apesar de só existir um interessado
(Foto: reprodução Central dos Leilões)
O Conexão Planeta entrou em contato o servidor licenciado do ICMBio Ugo Vercillo e atual diretor da BlueSky Caatinga. Ele alegou que desconhece o documento sobre o leilão da Fazenda Concórdia. Quando perguntado se ele tinha comprado a propriedade, ele se manteve calado.
Questionado anteriormente se a ACTP seria a proprietária da BlueSky Caatinga, Vercillo disse que não. “A BlueSky Global é uma empresa independente. O CEO é proprietário da empresa KauriCab”, afirmou.
A KauriCab é uma companhia que trabalha no mercado imobiliário na Alemanha e que em seu site diz apoiar a reintrodução da ararinha-azul no Brasil. Já a BlueSky Caatinga tem como objetivo “fazer a restauração e plantio de espécies nativas na região de Curaçá”. Mas na parte do “QUEM SOMOS” no site, existe apenas a informação de “Página em Construção”.
Também enviamos um e-mail para a assessoria do Ministério do Meio Ambiente solicitando uma declaração sobre o caso e recebemos a seguinte nota, por e-mail:
“O ICMBio esclarece que um Acordo de Cooperação Técnica com a instituição ATCP foi assinado em 6 de junho de 2019. O objetivo é reintroduzir a ararinha-azul em seu ambiente natural.
Por meio do ACT foram reintroduzidas 20 ararinhas azuis, das quais 11 sobrevivem na natureza.
Por decisão da atual gestão do ICMBio, o acordo de cooperação está em análise para revisão.
O servidor Ugo Vercillo obteve, em 29 de novembro de 2021, licença do instituto para tratar de assuntos particulares.
Sobre eventual conflito de interesse, cabe aos órgãos de controle analisar.
Kilma Raimundo da Rocha não é servidora do ICMBio.
O ICMBio atua para a repatriação de todos os animais silvestres ameaçados de extinção”.
*Texto atualizado às 15h para incluir a nota enviada pelo ICMBio
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Foto de abertura: divulgação ICMBio