[Este texto, de autoria de Alex Rodrigues e originalmente publicado em 2/4/2023 pela Agência Brasil, foi complementado com outras informações que o Conexão Planeta considera importante sobre este pedido de desculpas da Comissão de Anistia]
Pela primeira vez desde que foi criada, em novembro de 2002 (primeiro mandato de Lula), a Comissão de Anistia aprovou pedido de reparação coletiva por graves violações aos direitos de comunidades indígenas durante o regime militar (1964/1985).
Além de reconhecerem as graves consequências da ação e omissão estatal contra membros das etnias Krenak e Guarani-Kaiowá, os membros do colegiado consentiram um pedido de desculpas formal em nome do Estado brasileiro. Também aprovaram uma série de recomendações a serem implementadas por órgãos públicos a fim de evitar que os fatos se repitam.
“Queria me ajoelhar perante o senhor. Estou muito emocionada, mas, em nome do Brasil, do Estado brasileiro, quero pedir desculpas. E que o senhor leve esse pedido de desculpas a todo seu povo, em nome da Comissão de Anistia e do Estado brasileiro”, disse, de joelhos, a presidenta da comissão, a advogada Enéa de Stutz e Almeida, à representante da comunidade Krenak.
[Nota do Conexão Planeta: reproduzimos, a seguir, a íntegra do pedido de desculpas, declarado pela presidente da Comissão de Anistia]
“Com a sua benção, em nome do Estado brasileiro, eu quero pedir perdão por todo o sofrimento que o seu povo passou. Eu quero pedir perdão na presença do seu pai, que está aqui conosco, e de todos os seus ancestrais. E, na verdade, eu não estou pedindo perdão pelo que aconteceu durante a ditadura, eu estou pedindo perdão pela perseguição que nos últimos 524 anos o seu povo, assim como todos os povos originários sofreram por conta da invasão que os não-indigenas fizeram nessa terra, que é de vocês. Então, a senhora como liderança, como matriarca dos krenak por favor leve o nosso respeito, as nossas homenagens e o nosso sincero pedido de desculpas pra que isso nunca mais aconteça.
Estamos deferindo e concordando com todos os pedidos que o seu povo fez, aqui, neste julgamento, e estamos fazendo as recomendações devidas aos órgãos do estado brasileiro, à União, ao Poder Legislativo, ao Poder Judiciário, à Funai, para que a terra seja demarcada, para que o povo volte a se reunir, para que vocês continuem sendo nossos protetores, protegendo o meio ambiente como ancestralmente veem fazendo. Então, por meio deste momento solene, declaro o povo Krenak anistiado político coletivo brasileiro”.
Enéa repetiu o gesto diante do representante da comunidade Guarani-Kaiowá, cujo pedido de reparação foi o segundo a ser julgado e aprovado ontem (2).
[As duas ações foram rejeitadas pela Comissão de Anistia em 2022, formada por integrantes nomeados por Bolsonaro. Em ambos os casos, no entanto, o Ministério Público Federal recorreu]
Reparação coletiva
Vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, a Comissão de Anistia é responsável por analisar os processos de anistia motivados por perseguição política estatal entre setembro de 1946 e outubro de 1988.

No ano passado, os membros do conselho aprovaram mudanças no regimento interno do colegiado, possibilitando a apresentação de requerimentos coletivos de anistia. Os pedidos das comunidades Krenak e Guarani-Kaiowá são os primeiros a serem julgados no país.
“Debatemos muito e concluímos, com a ajuda de muita gente para além do conselho da comissão, que, em relação aos povos indígenas, por exemplo, não faz muito sentido o requerimento individual. O que faz sentido para essas comunidades é exatamente a reparação coletiva”, explicou Enéa.
Nos requerimentos apresentados à comissão, o Ministério Público Federal (MPF) sustenta que, entre 1957 e 1980, os povos indígenas em geral, e não só as comunidades Krenak e Guarani-Kaiowá, foram alvo da intervenção governamental e empresarial em seus territórios, o que resultou em mortes, violações à integridade física e profunda desintegração de seus modos de vida tradicionais.
Reformatório Krenak
Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade concluiu o relatório sobre seus dois anos e sete meses de investigações a respeito de violações de direitos humanos cometidas durante o período da última ditadura civil-militar brasileira, apontando que ao menos 8.350 indígenas foram assassinados e tantos outros sofreram violências e abusos de toda ordem.
[O documento foi entregue à Presidenta Dilma Rousseff em 10 de dezembro daquele ano, em cerimônia realizada no Palácio do Planalto: veja na foto abaixo]

em cerimônia realizada em 10 de dezembro de 2014 no Palácio do Planalto
Foto: Fabrício Faria|CNV
Além disso, já em 1968, extenso documento – chamado Relatório Figueiredo – elaborado a pedido do extinto Ministério do Interior, do governo militar, apontava uma série de crimes bárbaros cometidos contra os povos indígenas.
“Seus direitos foram desrespeitados, tanto em relação a suas terras, quanto a suas liberdades. E os governos militares foram caracterizados pelo desrespeito às instituições indígenas e pela sistemática expulsão de seus territórios tradicionais, bem como pela vulnerabilização e destruição biológica e cultural de suas comunidades”, acrescentou, ontem, o relator do pedido de anistia dos Krenak, o conselheiro Leonardo Kauer Zinn, para quem os “atos da ditadura militar provocaram a desagregação social e cultural do povo Krenak”.
“Hoje, não há dificuldade alguma na análise do mérito desse requerimento. Estamos diante de um acervo probatório notável carreado aos autos. Para além das provas produzidas listadas exaustivamente no relatório, é forçoso reconhecer que os casos de violações dos direitos dos povos indígenas seguramente inscrevem-se entre os mais fartamente documentados. A literatura acadêmica de qualidade em diferentes áreas do conhecimento dão conta das violações, perseguições, torturas e extermínio que se abateram sobre os Krenak”, apontou Zinn.
Ele citou, como exemplo, a instalação, em 1969, na cidade de Resplendor (MG), do chamado Reformatório Agrícola Indígena Krenak, para onde indígenas de todo o país, considerados “rebeldes”, eram enviados a pretexto de serem “reeducados”.
[Em setembro de 2021, a Justiça condenou a União, a Funai e o estado de Minas Gerais por campo de concentração indígena Krenak, durante ditadura militar. Leia aqui. Na ocasião, o líder e pensador indígena Ailton Krenak declarou que a decisão da Justiça foi “um passo importante para que as pessoas conheçam como funcionava a prática genocida do povo indígena durante a ditadura. Para nós, este período ainda é muito vivo. Até agora, ninguém se retratou. O que há é uma decisão judicial que determina isso. Mas ninguém veio pedir desculpas”. Demorou, mas o pedido de desculpas, chegou]
“O reformatório ficou tão famoso que muitas pessoas, ao ouvirem a palavra Krenak, pensam que está se falando do presídio e não do povo indígena. A própria Comissão Nacional da Verdade já reconheceu que o reformatório, bem como a Fazenda Guarani, instalada na cidade de Carmésia (MG), com sua abrangência nacional para prender “índios rebeldes” de 23 etnias, “assumem um caráter de campo de concentração” [indígena]”, lembrou Zinn.
Em casos de requerimentos coletivos, o reconhecimento dos pedidos de anistia não prevêm reparação econômica.
Resgate da memória e reparação histórica
Para Joenia Wapichana, presidenta da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), que acompanhou presencialmente a sessão de julgamento, a decisão é um importante resgate da memória de fatos ainda pouco conhecidos.
“A memória tem uma importância muito grande para os povos indígenas. Graças a ela, sabemos de onde viemos e para onde queremos ir. Ela não é simplesmente apagada. Ela serve para corrigir erros e fazer acertos, principalmente na administração de um país. É essencial que esta memória seja colocada ao público. Para nós, tanto povos indígenas, como Funai, é importante estarmos visibilizados. Não apenas em relatórios – porque sabemos que houve muita violência – mas também em termos de reparação e de políticas públicas. Para que os erros e a violência sejam, de fato, reparadas e justiçadas”, comentou Joenia ao acrescentar que “todos os povos indígenas merecem justiça”.
“A reparação histórica é extremamente importante”.
[Ontem, ainda estava prevista a análise de solicitação semelhante feita pelo povo indígena Guyraroká, que vive no Mato Grosso do Sul]
A seguir, assista ao pedido de desculpas da presidente da Comissão de Anistia à liderança do povo Krenak, reproduzido pela Mídia Ninja em seu Instagram:
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Foto (destaque): reprodução do video de transmissão da cerimônia