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“Comi lama”, disse o pescador Belmiro Tavares, 85 anos, surpreendido pela seca extrema no rio Solimões: ele ficou atolado por três dias

"Comi lama", disse o pescador Belmiro Tavares, 85 anos, surpreendido pela seca extrema no rio Solimões: ele ficou atolado por três dias

Por Leanderson Lima*

A imagem de um homem sozinho, coberto de barro preto, em meio à seca do maior rio da bacia amazônica, o rio Solimões, surpreendeu o Brasil na semana passada. Era o pescador Belmiro Tavares, de 85 anos,  que ficou por três dias preso em um atoleiro de lama numa praia isolada, que surgiu com a estiagem severa que afeta o município de São Paulo de Olivença, distante 991 quilômetros de Manaus, oeste do Amazonas.

Ele foi dado como desaparecido, em 26 de julho, e encontrado três dias depois, após buscas da Defesa Civil municipal com ajuda de imagens de um drone

“Comi lama. Tinha muita sede e fome,” relatou Belmiro à agência Amazônia Real. O depoimento dado à reportagem foi intermediado por sua neta, Ketlen Müller Rodrigues, de 29 ano. O contato foi possível graças a várias ligações por telefone e mensagens no Whatsapp. A forma como Belmiro descreveu a experiência dramática, na qual ele ficou sem comida e água, pode ser considerada um deserto amazônico nestes tempos de crise climática.

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A embarcação do pescador encalhou em uma área conhecida como Barro Preto, devido à rápida descida do rio. Ele tentou sair da canoa para empurrá-la, mas acabou atolado na lama. Segundo a neta Ketlen, Belmiro contou que entrou em desespero ao perceber que não conseguiria sair sozinho do atoleiro. 

“À noite, pensava que não conseguiria mais sair dali. Mas, ao mesmo tempo, imaginava que minha família estava me procurando”, contou. “Em alguns momentos, ele chegou a ouvir vozes dos envolvidos no resgate, mas já não tinha forças para responder”.

"Comi lama", disse o pescador Belmiro Tavares, 85 anos, surpreendido pela seca extrema no rio Solimões: ele ficou atolado por três dias
O resgate de Belmiro Tavares, em 29/8, só foi possível após a Defesa Civil encontrá-lo a partir de imagens de um drone usado nas buscas

Morador da comunidade de Santa Rita do Well, Belmiro  continua se tratando em casa, após passar pela internação no Hospital Robert Paul Backsmann, que fica em São Paulo de Olivença, de onde recebeu alta em 5 de agosto. 

“Eu já estava sem forças. E eu só pedia a Deus que me mostrasse alguém que me encontrasse e me tirasse daquele lugar, porque eu já não aguentava mais”, contou Belmiro à neta, que se emocionou. 

“É muito difícil relatar isso. Ele é muito especial para nós, e ele voltou vivo porque Deus ainda tem um grande plano para a vida dele,” afirma Ketlen. “Nos dias em que ele desapareceu, pensávamos muito nele na hora das refeições, imaginando o que poderia estar comendo. Ele ingeriu muita lama e precisou passar por uma lavagem gástrica,” conta Ketlen.

A pescaria

O pescador Belmiro Tavares saiu de casa no Distrito de Santa Rita do Well em 23 de julho, por volta de 11h. Era uma terça-feira. “Ele disse que ia pescar, caminhar na praia e que, se não retornasse, era porque estaria no dia seguinte com outros pescadores da região,” relatou Kellen.

"Comi lama", disse o pescador Belmiro Tavares, 85 anos, surpreendido pela seca extrema no rio Solimões: ele ficou atolado por três dias
Belmiro Tavares, de 85 anos, passou três dias desaparecido em praia isolada do rio Solimões
Foto: Defesa Civil/AM

O idoso é casado com Cytheria Müller Tavares, de 87 anos, tem cinco filhos adultos e é aposentado do INSS. “Ele ama pescar e estar em roças”, revela a neta.

Quando passou do meio-dia do dia seguinte, a família começou a perguntar aos pescadores locais se alguém havia visto Belmiro. Um deles informou que o avistou pela última vez na praia de Pedral, em 24 de julho. 

Depois disso, Belmiro não foi mais visto. “Foi quando o desespero tomou conta da família. Foram dias e noites de busca por pistas,” descreveu ela.

Os ataques de insetos

Durante os dias em que esteve atolado na lama, Belmiro contou (sempre por intermédio de sua neta) que foi difícil suportar os ataques das carapanãs e mutucas, insetos endêmicos na região amazônica.

Ele relatou que entrou em desespero ao perceber que não conseguiria sair sozinho do atoleiro. “Para você ter ideia, meu irmão foi duas ou três vezes ao local onde ele foi encontrado pelo drone. Mas meu irmão não conseguiu acesso, não tinha como chegar lá. Só de cima era possível ver,” conta Ketlen.

O resgate

Ketlen disse que, em 26 de julho, a família resolveu comunicar o desaparecimento de Belmiro à Polícia Civil. “Nós procuramos uma prima para fazer um Boletim de Ocorrência, mas não estavam atendendo porque já tinha terminado o expediente. Então, eles mandaram minha prima ir na segunda-feira para fazer o BO e acionar o Exército de Tabatinga para ajudar nas buscas”.

"Comi lama", disse o pescador Belmiro Tavares, 85 anos, surpreendido pela seca extrema no rio Solimões: ele ficou atolado por três dias
O pescador sendo resgatado por servidores municipais
Foto: Defesa Civil

A Defesa Civil de São Paulo de Olivença foi acionada e iniciou as buscas no sábado (27 de julho). Segundo Lucas Gomes, coordenador de operações do órgão, a equipe se deslocou até o distrito de Santa Rita do Well, a 51 quilômetros da sede do município.

Após coletar depoimentos de parentes e pescadores à procura de pistas, a Defesa Civil iniciou as buscas utilizando um drone. “[O equipamento] foi crucial para encontrarmos seu Belmiro com vida,” afirmou Lucas.

As buscas continuaram no dia 28, sendo interrompidas apenas à noite, pois o drone não possuía câmera de visão noturna. Além dos quatro membros da Defesa Civil, vários parentes de Belmiro também participaram das buscas.

Na manhã de 29 de agosto, a sete quilômetros da comunidade de Santa Rita do Well, a embarcação foi localizada pelo drone da Defesa Civil. No entanto, inicialmente, Belmiro não foi visto, pois estava coberto de lama. “A lama funcionou como uma camuflagem,” explicou Lucas.

Após algum tempo, o drone captou algo se movendo no local. “Se havia algo se movendo, significava que ele estava vivo”, pontuou Lucas.

“Aquela lama nos assustou, parecia areia movediça. Tivemos muita dificuldade para resgatá-lo, foi preciso uma força surreal para retirá-lo de lá, senão até nós poderíamos ter ficado atolados,” revelou o coordenador da Defesa Civil sobre o momento do encontro do pescador.

Lucas disse que Belmiro estava lúcido quando foi encontrado, mas bastante debilitado. “Ele entendia o que estávamos fazendo, nos reconhecia, mas não conseguia pronunciar uma palavra,” disse.

Para Lucas, todo o problema foi causado pela rápida descida do rio. “Conhecemos seu Belmiro, ele é um pescador muito experiente, entende bem o Alto Solimões. A descida do rio foi muito rápida e o pegou de surpresa,” analisou.

Após os primeiros socorros e hidratação, Belmiro foi levado de volta ao distrito para receber atendimento na Unidade Básica de Saúde. “O médico realizou todos os procedimentos iniciais e o encaminhou para o Hospital Robert Paul Backsmann, em São Paulo de Olivença,” relatou Lucas Gomes, coordenador de operações da Defesa Civil. Belmiro ficou internado do dia 29 até a segunda-feira, 5 de agosto.

A recuperação

"Comi lama", disse o pescador Belmiro Tavares, 85 anos, surpreendido pela seca extrema no rio Solimões: ele ficou atolado por três dias
Belmiro com a equipe médica do Hospital Robert Paul Backsmann,
em São Paulo de Olivença, AM
Foto: Defesa Civil

O gerente de enfermagem do Hospital Robert Paul Backsmann, Vitor Campos, deu mais detalhes sobre o estado de saúde de Belmiro quando ele chegou ao centro médico.

“Ele estava com hipotermia, dispneia, tosse, dificuldade respiratória e calafrios, sem resposta motora, o que exigiu ainda mais cautela no tratamento. Foi um verdadeiro milagre,” disse Vitor. “Pela idade dele e pela minha experiência, esse caso foi realmente um milagre de Deus”, completou o coordenador da Defesa Civil.

No hospital, Belmiro teve a companhia de sua sobrinha-neta, a autônoma Karlene Tavares, de 32 anos. “Eu o acompanhei desde que ele chegou a São Paulo de Olivença. Passei uma semana com ele no hospital. O que aconteceu foi um milagre, pois o rio Solimões em São Paulo de Olivença é conhecido por suas histórias. Várias pessoas já desapareceram ali, mas sempre tivemos confiança de que o encontraríamos vivo”, comemorou ela.

Belmiro agora se recupera em casa, no Distrito de Santa Rita do Well. A neta Ketlen disse que ele dorme bastante e, quando acorda, sempre tem um parente para visitá-lo e ouvir sua história de resistência e sobrevivência. Uma história que nunca será apenas mais uma “história de pescador.”

Ketlen conta que seu avô, que a criou como pai, já havia se perdido na roça antes, mas nunca demorou tanto para voltar. “Logo fomos atrás dele, mas ele nunca havia passado dias desaparecido,” disse a neta.

Karlene revelou que o tio-avô já fala em “andar para todo lado” daqui a alguns dias. “E a gente diz: a partir de agora o senhor não vai mais sair assim. Eu vou ser mais presente com ele,” contou.

A seca nos rios da Amazônia é um fenômeno natural, mas nos últimos anos tem sido recorrentes por causa da crise climática. Uma combinação de chuva abaixo do normal, ondas de calor, altas temperaturas, fumaça e efeitos da degradação ambiental têm atingido a população amazônica de forma mais grave. As pessoas em condição de vulnerabilidade são as maiores vítimas da emergência climática. No Amazonas, as vias de transporte são quase que exclusivamente via fluvial.

Este ano, dos 62 municípios do Amazonas, 20 estão em situação de emergência decretados. Em 2023 todos os municípios amazonenses sofrerem com a seca. 

A seguir, assista a imagens da localização de Belmiro pela Defesa Civil:

* Este texto foi publicado originalmente no site da agência Amazônia Real em 9/8/2024

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Foto (destaque): Defesa Civil/divulgação

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