
Na região do Pontal do Parapanema, no interior de São Paulo, há dois locais importantes para a sobrevivência dos Micos-leões-pretos (Leontopithecus chrysopygus). O primeiro, é o Parque Estadual Morro do Diabo, no oeste paulista, onde vivem 1.200 indivíduos da espécie. O segundo fica num fragmento florestal em área de Reserva Legal da Fazenda San Maria, a 30 km do primeiro.
Foi pra a reserva que pesquisadores translocaram cinco indivíduos da espécie, a fim de aumentar a população local – com os novos moradores, há menos de 20 indivíduos – e tentar garantir sua existência a médio e longo prazos.
Translocação é o processo pelo qual são deslocados animais de seu local natal para um outro local com as mesmas características, com o objetivo de adaptá-los ao novo habitat, tornando-os aptos a procriar, colonizar e restabelecer um grupo.
Esse é o trabalho liderado pela pesquisadora Gabriela Rezende, coordenadora do Programa de Conservação do Mico-leão-preto do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, marcando os 40 anos de atividades da instituição.
“Escolhemos a população do fragmento florestal como alvo de nossa ação porque ela apresenta sérios riscos de se extinguir nos próximos 10 ou 20 anos, devido ao tamanho reduzido e à baixa variedade genética”, explica ela.

Foto: Katie Garrett/Whitley Fund for Nature
“Suplementando essa população, levando mais micos para lá, ganhamos tempo para, a partir da restauração de corredores florestais, conseguirmos a conectividade funcional com outras áreas de floresta da região, o que pode levar entre 20 e 30 anos. Já temos observado declínio nessa população e precisávamos agir com urgência para evitar essa extinção local”, completa a especialista.
A translocação
O grupo de cinco micos está sendo monitorado desde abril de 2023 por profissionais liderados por Rezende. Mas não fazia nem um ano que esse acompanhamento estava sendo feito quando, em janeiro último, eles capturaram os animais, os identificaram com microchips e realizaram, na mesma manhã, sua soltura na nova área.

o momento da captura dos micos para a translocação
Foto: Lucas Leoni/divulgação/IPÊ
Daniel Felippi, veterinário do Programa do IPÊ, explica por que essa operação foi realizada nesse mês: “Optamos por realizar a ação na época do ano com maior disponibilidade de frutos, entre dezembro e fevereiro, pois [esse fator] aumenta as chances de adaptação e de sobrevivência dos micos na nova área”.
“Também formamos um grupo com indivíduos subadultos, pois são animais em idade de dispersão, que garantem o aumento da variabilidade genética da população, a partir da formação de novos grupos com animais do local”, acrescenta ele.
Parceiros
Além da dedicação dos pesquisadores do IPÊ, a iniciativa de translocação dos micos conta com profissionais do ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e da Fundação Florestal, gestora do Parque.

As duas instituições participaram de todas as fases do processo, desde o planejamento, passando por emissão de autorizações e atualizações. E a ação ainda recebe a chancela do Grupo de Assessoramento Técnico do Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Primatas da Mata Atlântica e da Preguiça-de-coleira (PAN PPMA).
Além do Mico-leão-preto, esse plano contempla 0utras 13 espécies ameaçadas de extinção: Bugio-ruivo, Bugio-marrom, Muriqui-do-sul, Muriqui-do-norte, Preguiça-de-coleira, Guigó, Sauá-de-cara-preta, Sagui-da-serra-escuro, Sagui-de-serra-claro, Mico-leão-da-cara-preta, Mico-leão-da-cara-dourada, Mico-leão-dourado e Mico-prego-de-crista.
Vale destacar que, durante oficina realizada em 2023 para o desenvolvimento do Programa de Manejo Populacional do Mico-leão-preto, foi estabelecido um grupo de acompanhamento formado por pesquisadores presentes, de acordo com a representatividade de cada um.
A pesquisadora Gabriela Rezende assumiu a coordenação desse programa (que tem validade de dez anos: até 2033) assim que ele foi aprovado pelo ICMBio e publicado no site do órgão.
27 micos-leões-pretos já translocados
A transferência dos micos-leões-pretos para a área de Reserva Legal da Fazenda San Maria é a sexta realizada pelo programa de conservação mais longevo do IPÊ. A primeira foi em 1995 e, desde então, outras quatro ocorreram até 2008.
Juntas, essas ações de manejo movimentaram 22 micos-leões-pretos para a Fazenda Mosquito (também na região do Pontal do Paranapanema) em um fragmento florestal no qual a espécie não estava mais presente. Gabriela conta:
“Alguns micos vieram da Fazenda Rio Claro (Lençóis Paulista/SP) e outros de fragmentos desmatados na região de Buri/SP. Desde então, o IPÊ acompanha esses animais na Mosquito e sabemos que essa nova população conseguiu se estabelecer e permanecer na área”. E ela acrescenta:
“Estamos planejando realizar um censo para avaliar se essa população já é viável e autossustentável ou se ainda precisamos de mais translocações para garantir sua existência no longo prazo”.
Morte, emigração ou incêndios?
Dados do monitoramento desta última translocação para a área de fragmento florestal na Fazenda San Maria já revelam informações importantes, como por exemplo: dois dos cinco micos permanecem juntos; um deles é a fêmea subadulta que carrega o rádio-colar.

“Não é possível afirmar se a redução do grupo foi em decorrência de morte ou emigração, sendo ambas as causas plausíveis, considerando que o grupo era composto por indivíduos subadultos, em fase de dispersão”, comenta Gabriela. “Por isso, estão em andamento tentativas de recaptura do grupo para avaliar a condição de saúde dos animais e identificar quais indivíduos ainda fazem parte”.
É fato que os focos de incêndio que se espalham pelo país também foram registrados, em junho, na área da Reserva Legal onde os micos foram soltos. Mas essa área é monitorada por satélite, em tempo real, pelo projeto Corredores de Vida, do IPÊ, para prevenção e contenção de incêndios florestais (saiba mais sobre esse projeto mais adiante, neste texto).
“Sem dúvida, foi um susto, mas os micos estão bem!”, celebra Gabriela. “O foco de calor gerou notificação de alerta imediato, o que possibilitou acionarmos as brigadas locais, que integram o Plano de Auxílio Mútuo Emergencial (PAME). A ação conjunta e coordenada das organizações do PAME garantiu rápido controle do fogo, evitando a propagação da queimada na vegetação. Assim, somente dois hectares na borda do fragmento foram afetados”.
Apesar dos desafios, Gabriela garante que a translocação é a ferramenta mais vantajosa para populações em risco em decorrência do baixo fluxo gênico.
“As principais ações que contribuíram para salvar o mico-leão-preto da extinção incluíram o manejo de populações, feito através de movimentações de micos-leões de um fragmento a outro onde a espécie não era mais encontrada. Isso resultou no estabelecimento de uma nova população”, declara a coordenadora.
“O manejo de populações é uma estratégia de curto prazo que deve ser trabalhada junto com o manejo do habitat: a restauração”, completa.
Próximos passos
Neste mês, a equipe do programa deu início ao novo censo no fragmento florestal, utilizando tanto o monitoramento acústico passivo (com gravadores autônomos),quanto o transecto com playback que emite vocalizações.
O objetivo é atualizar os dados sobre tamanho populacional e identificar padrões de uso e ocupação do espaço pelos grupos que vivem no fragmento. Gabriela explica:
“A partir [do uso] de tecnologias como gravadores autônomos e armadilhas fotográficas, é possível, de fato, identificar informações valiosas sobre os primatas e as condições do ambiente em que vivem, como, por exemplo, monitorar o tamanho dos grupos e as áreas que estão utilizando no fragmento, ou mesmo determinar o momento do dia em que estão mais ativos. Temos seguido nessa direção nessa área emergente para a conservação de diferentes espécies de primatas”.
E a pesquisadora destaca uma inovação do projeto: o uso, desde 2016, de ocos artificiais em fragmentos florestais, que ainda não contam com a oferta de ocos naturais ou que têm baixa disponibilidade destes.

Foto: divulgação/IPÊ
“Os ocos são um recurso valioso para a proteção dos micos-leões-pretos, em especial durante a noite, mas não estão disponíveis de maneira natural em florestas recentemente restauradas. Nossas pesquisas mostram que diversas espécies arborícolas (vivem nas árvores e não costumam pisar no chão da floresta, como gambás e algumas aves, além dos micos) também dependem e utilizam esses ocos artificiais quando disponibilizados”, destaca.
Entre os próximos passos definidos pelo programa do IPÊ, estão:
– consolidar o programa de Saúde Única, integrando a saúde dos micos à saúde ambiental e humana. Na prática é a avaliação sobre o ciclo das doenças que se apresenta nos micos, nos animais domésticos e, especialmente, nas comunidades que vivem próximas às áreas de floresta;
– avançar nas pesquisas usando bioacústica, por meio de gravadores autônomos, e
– avaliar o impacto das mudanças climáticas nos micos, e
– desenvolver ações de educação ambiental e de comunicação.
As ações de manejo das populações e do hábitat integram os resultados das pesquisas e se fundem às estratégias de envolvimento comunitário promovidas pelo IPÊ, a fim de impulsionar a conservação do mico-leão-preto e da Mata Atlântica em suas áreas de ocorrência.
Corredores de Vida
A restauração de habitats, iniciada devido à presença desse primata, ganhou escala e deu origem a outro projeto do IPÊ, o Corredores de Vida, que traz a floresta de volta a partir da restauração florestal de áreas estratégicas para a conectividade entre os fragmentos florestais.
Na região do Pontal do Paranapanema, essas áreas conectam duas Unidades de Conservação: o Parque Estadual Morro do Diabo e a Estação Ecológica do Mico Leão-preto, estabelecida em 2002.
Gabriela Rezende explica que, para seu sucesso, é essencial que o Programa de Conservação do Mico-leão-preto siga, paralelamente, em duas direções: manejo e cuidado com o habitat.
“Se focarmos no manejo e não cuidarmos do habitat, não teremos o resultado esperado, por outro lado se cuidarmos do habitat sem realizar o manejo, pode ser que a gente perca populações durante o tempo em que essa floresta está sendo restaurada”.
Com o projeto Corredores de Vida, o IPÊ já plantou mais de 6 milhões de árvores na região, incluindo 2,4 milhões que formam o maior corredor florestal já restaurado no bioma. “São duas demandas que devem ser trabalhadas de maneira simultânea, já que uma contribui com a conservação no curto prazo e a outra no longo prazo”, esclarece a pesquisadora.
O artigo científico publicado, em março deste ano, na revista Conservation Biology – Efeitos da cobertura de áreas protegidas e da pesquisa sobre o estado de conservação dos primatas no mundo – revelou que, entre os primatas ameaçados de extinção (em todo o mundo), apenas o mico-leão-preto teve melhora em seu status de conservação nas últimas décadas.
Isso é muito representativo visto que a espécie foi considerada extinta na região por mais de 60 anos – de 1905 a 1969. Redescoberta em 1970, no Pontal do Paranapanema, em 1982 entrou para a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas, da IUCN (International Union of Conservation of Nature / União Internacional para Conservação da Natureza), como “Ameaçada“.
Na época, essa era uma categoria abaixo da Extinta, apenas, num espectro mais limitado do que o de hoje: “Extinta”, “Ameaçada”, “Vulnerável”, “Rara” ou “Indeterminada”.
Em 2000, passou a integrar a lista das 25 espécies de primatas mais ameaçadas do mundo, elaborada pelo Grupo Especialista de Primatas da IUCN.
E, em 2008, a partir de novos critérios estabelecidos pela IUCN – que consideravam extensão de ocorrência, extremamente fragmentada e reduzida -, a classificação do Mico-leão-preto foi revista e ele foi considerado como “Criticamente Ameaçado”.
Gabriela Rezende conta que, nesse ano, a IUCN reavaliou a situação da espécie, levando em conta as pesquisas de campo em andamento, o manejo de populações e a melhoria do habitat alcançados a partir do projeto de restauração iniciado na região do Pontal do Paranapanema. “Novas populações foram descobertas no Alto Paranapanema, aumentando, assim, o tamanho populacional e a extensão de ocorrência”.
“Além disso, tivemos o início do projeto de restauração de corredores do IPÊ, a criação da Estação Ecológica Mico-leão-preto (ICMBio), entre outras ações que fizeram a diferença na avaliação da IUCN”. O Mico-leão-preto migrou, então, para a categoria “Em Perigo”, que é “mais esperançosa”, define ela.
Na estimativa mais recente, há 1.800 indivíduos na natureza, distribuídos em cerca de 20 localidades no estado de São Paulo – entre o Rio Tietê e o Rio Paranapanema, e cerca de 65% deles estão no Parque Estadual Morro do Diabo.
Um pouco de história
As pesquisas com o mico-leão-preto foram iniciadas por Claudio Valladares Padua, em 1984. Ele abandonou a profissão de administrador de empresas no Rio de Janeiro para tornar-se biólogo: queria dar um novo propósito à sua vida atuando pela conservação da natureza.
Na ocasião, a oportunidade para atuar pela biodiversidade se deu por meio de pesquisas com o mico, no Pontal do Paranapanema.
Essas pesquisas avançaram com um componente de educação ambiental, liderado por sua esposa
Suzana Padua, e de restauração de habitats, por meio de diversos outros projetos.

Parque Estadual Morro do Diabo, em 1988
Foto: arquivo pessoal
Novos pesquisadores que se juntaram ao casal devido ao interesse em pesquisas nessa linha, que culminaram com a origem do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, em 1992. De lá para cá, os esforços – a princípio de pesquisas sobre a ecologia da espécie – foram ampliados.
“Comecei querendo salvar o mico-leão-preto, mas vi que não conseguiria salvá-lo mesmo que eu estudasse tudo o que era possível sobre ele”, explica ele. Descobri que era preciso incluir outras pessoas, trabalho que foi liderado a princípio por Suzana, mas ainda assim havia o lado econômico que influencia tudo. Passamos a atuar também na conservação do habitat do mico e na economia regional, trabalhando no planejamento da paisagem e na influência em políticas públicas. Foi assim que criamos o modelo IPÊ de conservação que tem, como alicerces, a ciência e o envolvimento da comunidade”.
Tanto Claudio Padua quanto Gabriela Rezende são pesquisadores reconhecidos internacionalmente pelo trabalho de conservação do Mico-leão preto. Ambos já receberam o Whitley Award, do Whitley Fund for Nature (WFN), considerado o Oscar Verde da Conservação: Claudio em 1999 e Gabriela em 2020 (como contamos aqui).
Em 2023, o IPÊ foi reconhecido numa categoria extra do Whitley Award pela magnitude do trabalho de conservação que desenvolve. E, em março de 2024, Gabriela foi reconhecida pelo Disney Conservation Fund como uma das 11 mulheres incríveis que causam impacto positivo na conservação em todo o mundo (como contamos aqui). O prêmio, no valor de US$ 50 mil (o equivalente a R$ 271,275) foi investido no Programa de Conservação do Mico-leão-preto.

Foto: Leonardo Silva/divulgação/IPÊ
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Foto: Miguel José Rangel Jr./divulgação/IPÊ