
“É interessante tocar no status de biblioteca com a espontaneidade de uma criança. Sem aquele silêncio (faz sinal com o dedo indicador, pedindo silêncio). É legal a gente pensar numa biblioteca irreverente, uma biblioteca que fala, que não pede silêncio. Eu acho o maior barato a gente ensaiar uma experiência de biblioteca que não pede silêncio”.
Foi assim que o líder indígena, pensador e autor Ailton Krenak recebeu este presente – a Biblioteca Ailton Krenak – da comunidade do Selvagem – Ciclo de Estudos, do qual ele faz parte desde 2018.
Foi durante live de lançamento em 11 de junho, na companhia de Anna Dantes, diretora da Dantes Editora e idealizadora do ciclo, e Mari Pelli, que coordenou a iniciativa.
“Eu vejo como uma provocação, num certo sentido, a gente chamar de biblioteca um acervo de falas, imagens, que não estão obrigatoriamente editadas, no sentido bíblico, de biblioteca. Mas que têm uma fluidez, que permite uma conversa com aquele lugar que ficou muito configurado como a biblioteca no sentido da pesquisa, da academia, do status de biblioteca”, acrescentou.

“Um grupo de voluntários realizou esse sonho de reunir as falas do Ailton numa casa flutuante, numa biblioteca comunitária, numa casa de palavras, de lindas palavras, belas palavras, difíceis palavras”, destacou Anna Dantes.
“A gente está chamando de biblioteca um espaço que reúne 150 horas ou mais de falas, falamos de um outro jeito de circular conhecimento ao qual essa palavra ‘biblioteca’ se refere”, acrescenta Mari Pelli, que coordena o projeto.
“A gente volta um pouco para essa sabedoria da oralidade. Eu acho fantástico que a gente chame de biblioteca um lugar que reúne falas, que chama para o encontro e para esse conversar de ideias. O que me encanta mais ainda: é um reunir não o objeto livro, mas para soltar essas ideias”.
A Biblioteca Ailton Krenak é, assim, uma homenagem e tanto a este pensador indígena, que é inspiração e alerta, e que se tornou essencial ouvir e ler nestes tempos tão sombrios, intensificados pela pandemia do coronavirus e pelo momento político desastroso que vivemos.
Que benção poder acessar sua sabedoria em qualquer tempo, não só pelos livros, mas também por suas falas online, agora organizadas em um único link.
Nesse espaço, Krenak aparece em reflexões solitárias, editadas a partir de uma entrevista, ou na companhia de ótimos interlocutores como o neurocientista Sidarta Ribeiro, os indígenas guarani Carlos Papá e Cristine Tekoá, o físico Marcelo Gleiser, a historiadora Lilian Schawrtz, o músico Gilberto Gil, o cientista e querido amigo Antonio Nobre e a própria Anna Dantes, do Selvagem, entre outros.
A Biblioteca do Ailton reúne a preciosidade de suas ideias, reflexões e declarações registradas online desde 2012.
Isto sem falar do Programa de Índio, programa de rádio comandado por Krenak de janeiro de 1985 a março de 1991, que também integra este acervo encantado.
Comunidade e colaboração
A biblioteca está sendo constantemente atualizada e aprimorada por integrantes da Comunidade Selvagem. São 11 os voluntários que têm catologado os conteúdos e tornado possível este sonho, até agora:
Karla Souza, Giovanni Nachtigall Mauricio, Bete Santana, Patricia Britto, Mauricio Gonçalves Simões, Amanda Viana de Souza, Ana Paula, Laís Furtado, Christine Keller, Cris Muniz Araujo, Stephane Sena.
Esse grupo também conta com a colaboração de usuários, que, por meio de um formulário, podem indicar vídeos do YouTube, entrevistas, matérias ou artigos assinados pelo pensador indígena para que sejam incluídos na biblioteca. Mas, antes de fazer sua contribuição, é importante pesquisar os conteúdos disponíveis para evitar duplicidade.
E se você quiser integrar a Comunidade Selvagem, é só entrar em contato.
Pelas telas, maior impacto
Autor do best-seller Ideias para Adiar o Fim do Mundo, de 2019, e de A Vida não é Útil, lançado no ano passado, Krenak tornou-se um dos brasileiros mais celebrados em encontros digitais do país, devido ao isolamento e ao distanciamento que a pandemia impôs.
Em vez de cumprir a agenda agitada que estava programada para boa parte do ano passado, com o lançamento de seu primeiro livro nas principais capitais, ele voltou à sua aldeia, às margens do Rio Doce, em Resplendor, Minas Gerais, de onde fala pelas telas do celular e do computador.
“Participo de três a cinco lives todos os dias”, me contou Krenak em setembro do ano passado, durante entrevista sobre o Prêmio Juca Pato, que acabara de ganhar da União Brasileira de Escritores.
Na ocasião, ele se declarou cansado com tanta procura, ao mesmo tempo que reconhecia que não poderia negar os convites. Não eram (nem são) só para lives nas redes sociais, mas também para conversas com públicos específicos como professores, estudantes e indígenas pelo Brasil.
Em seguida, rindo muito, me contou que, em breve, partiria para um paraíso na Terra, onde não existem lives, para poder descansar.
“Em algum momento, vou sair de férias. Vou deixar um aviso: “Krenak foi para Tangolomango”. Você conhece? É um paraíso terráqueo. Mas você não entrega esse lugar pra ninguém, se não, o pessoal vai pra lá antes e, quando eu chegar lá, já vai estar cheio de lives (risos)”.
Que nada!!! Na verdade, Krenak parece gostar da possibilidade de falar com um público maior pelas telas, sem ter que se deslocar como antes.

Com as lives, o que era restrito a um público local – como nos encontros dos quais participou em 2019 e início de 2020, em São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus para lançar seu primeiro livro, por exemplo – tornou-se popular e as reflexões de Krenak se disseminaram ainda mais.
Durante a conversa gostosa com Anna e Mari na semana passada, contou que, uma vez, para dar uma palestra – “que durou algumas horas apenas” – no Rio de Janeiro, dedicou três dias devido aos deslocamentos. Isso é insano! A pandemia nos trouxe uma boa oportunidade para rever esta dinâmica insustentável de vida”.
Sobre os encontros do Ciclo de Estudos, ao mesmo tempo que eram momentos preciosos realizados em lugares bonitos como o Jardim Botânico, no Rio de Janeiro (acima), ficavam restritos a 400 pessoas.
“Hoje, online, atingimos muito mais gente, sem dúvida”, disse Anna, que revelou que o primeiro audiovisual da série Flecha Selvagem – lançado em maio -, desenvolvida para suprir a falta do Ciclo de Estudos, já registra mais de 44 mil visualizações!

Bem viver e animação
Lembro que, na mesma entrevista que citei acima, Krenak comentou que sentia “um aperto ao imaginar que, no meio de tanto tumulto, você seja convocado como uma voz de sentido. Um alento”.
Disse que “ser conselheiro ou facilitador numa pequena comunidade, tudo bem. Mas, num país deste tamanho, vira uma convocatória extravagante!”. E que sentia isso não só em relação às lives e sentenciou: “Gosto muito de escutar tudo o que os mestres já falaram, mas eu não vou vestir essa túnica”.
Tenho a impressão de que Krenak se ajeitou bem nesse cenário de tanta convocação. É mestre da filosofia indígena e do bem viver.
É inspiração que nos ajuda a enfrentar a compreender melhor estes momentos, a ficar mais atento, a driblar as sequelas do isolamento social, do adoecimento e da morte repentina de entes e amigos queridos, da perda do emprego, do empobrecimento, da fome que se alastrou pelo país, para exacerbar a compaixão e também lutar contra a gestão genocida do governo brasileiro.
Krenak é inspiração para se imprimir uma nova rota, um outro rumo. Para criar coisas bonitas como a Biblioteca que leva seu nome, como também o livrinho Caminhos para a Cultura do Bem Viver, fruto de uma live com integrantes da Escola Parque, do Rio de Janeiro, disponível para download.
Ou, ainda, uma animação baseada em seu livro A Vida não é Útil, que apresento a seguir, logo após a conversa de Krenak com Anna Dantes e Mari Pelli. Deleite.
Foto (destaque): Reprodução live de lançamento da biblioteca