*Por Aldem Bourscheit
Marcadas para desaparecer nas próximas cinco décadas, as florestas com araucárias resistem em diminutas parcelas em relação ao que um dia ocuparam no país. Apesar da pindaíba, são eliminadas ilicitamente ou com aval de órgãos públicos. A legislação nacional traz meios para sua proteção e recuperação, contam especialistas.
A majestosa araucária (Araucaria angustifolia) é uma árvore natural de porções mais altas e frias das regiões Sul e Sudeste. Existe há 200 milhões de anos e pode chegar a 50 metros de altura, mesmo porte de uma castanheira amazônica. Desponta na chamada floresta ombrófila mista, uma das formações da Mata Atlântica, que abriga até mil espécies distintas de plantas e de animais.
O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) proíbe o corte de espécies ameaçadas desde 2001. Até então, as matas com araucária haviam encolhido 98%, de 182 mil km2 para 3,6 mil km2.
À esquerda, em verde-escuro, a extensão original de matas de araucária no Brasil. À direita, seus remanescentes. A área total de Mata Atlântica está em verde-claro
(Imagem: SOS Mata Atlântica)
Mas a proibição não freou a destruição. Ações de órgãos judiciais, policiais e ambientais somam R$ 102 milhões em multas pela derrubada de 255 km2 de Mata Atlântica, de 2018 ao ano passado. Pinheiros ilegalmente cortados são comuns nas fiscalizações, reconhece o Ministério Público do Paraná (MPPR), coordenador da operação nacional.
“Como os estados ainda não informam os desmates que autorizam, aumentam as evidências de que a grande maioria dessas derrubadas é ilegal”, destaca Luís Fernando Guedes Pinto, diretor de Conhecimento da SOS Mata Atlântica. A ONG mapeia os remanescentes nacionais do bioma, desde 1989.
Estados onde matas bem conservadas com araucárias quase sumiram não levantam sua situação há duas décadas e ainda licenciam obras com eliminação de pinheiros. No Paraná e em Santa Catarina, linhas de transmissão somando 1.500 quilômetros avançam sobre milhares de pinheiros — 4 mil só no Paraná — e outras espécies ameaçadas, como cedro, juçara, imbuia, xaxim e canela. Entidades civis acionaram a Justiça.
“Critérios técnicos são falhos e não há alternativas locacionais para as obras. Órgãos ambientais são coniventes com isso e licenciam o que é mais cômodo para os empreendedores. Buscar melhores alternativas de traçado reduziria impactos sociais e ambientais”, disse João de Deus Medeiros, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Em Almirante Tamandaré, município vizinho da capital Curitiba (PR), o governo estadual permitiu o corte de mais de 600 árvores, incluindo 172 araucárias, para um loteamento privado. Episódios como tais se multiplicam no Sul do país, denuncia a SPVS – Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental.
Conforme o diretor da entidade, Clóvis Borges, virou praxe do Judiciário autorizar obras de “utilidade pública” que eliminam florestas com araucárias. Além disso, mitigar as derrubadas com recursos para áreas protegidas ou plantio de mudas não compensaria a destruição de ambientes consolidados e ricos em biodiversidade.
“Licenças pouco criteriosas são concedidas e validadas com frequência por interesses econômicos. Em época de crises hídrica e climática, eliminar o que resta de florestas com araucárias arrisca nossas qualidade de vida e sobrevivência futuras. Protegê-las também é de interesse público”, ressaltou Borges, mestre em Zoologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Projetos federais e estaduais para corte de pinheiros não plantados que foram engavetados ou barrados na Justiça na última década voltam à baila. Uma lei paranaense reduziu a proteção da espécie para “manejo sustentável”. O novo Código Florestal de Santa Catarina, aprovado em janeiro, permite derrubadas de araucárias e outras árvores ameaçadas de extinção.
No Congresso, propostas apoiadas por ruralistas e pelo governo Jair Bolsonaro enfraquecem a Lei da Mata Atlântica para expandir o agronegócio, inclusive sobre campos nativos e florestas com araucárias. A ideia é enquadrar a legislação ao Código Florestal de 2012, eliminando a única normativa nacional que protege um bioma específico.
“Pressões vêm sobretudo do Paraná e Santa Catarina, líderes em derrubadas de Mata Atlântica. Esses ataques são inconstitucionais, porque a Lei da Mata Atlântica agrega valor ao Código Florestal. Derrubá-la seria uma ameaça enorme ao clima, à biodiversidade e às fontes de água para regiões onde vive a maioria dos brasileiros”, alerta Guedes Pinto, da SOS Mata Atlântica.
Um antigo pinheiral desenhado a bico-de-pena por Percy Lau (Arequipa, 1903 – Rio de Janeiro, 1972). Fonte: Tipos e Aspectos do Brasil (IBGE, 1966)
Araucárias: risco de extinção até 2070
A araucária é listada como ameaçada de extinção no Brasil e pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Parques nacionais e outras unidades de conservação abrigam apenas 2,5% das matas em bom estado com a espécie.
Especialistas alertam que ela pode desaparecer até 2070. Pesquisas nas revistas Global Change Biology e Applied Vegetation Science apontam que o desmate e a alta da temperatura global encolherão para até 3,5% as florestas e para 28,4% os campos de altitude favoráveis aos pinheiros.
“Precisamos salvar sobretudo as florestas com araucárias fora de áreas protegidas, garantindo diversidade genética para repovoamento da espécie. Mas suas florestas seguem desmatadas ou degradadas pela retirada seletiva de árvores, o que fiscalização e satélites não identificam”, ressaltou Ricardo Brites, biólogo e doutor em Engenharia Florestal.
O manejo comercial de árvores naturais é economicamente inviável e destruiria florestas em seu entorno. Plantios precisam de áreas abertas e ensolaradas, capacidade técnica e fiscalização rígidos. Madeira de qualidade exigiria pelo menos três décadas de crescimento. “Há mercado para essa madeira, mas os investimentos são altos e de longo prazo”, ressalta Brites.
Araucárias nativas ou plantadas produzem pinhões (sementes), alimento muito procurado na Região Sul, geralmente a partir dos 12 anos. Uma técnica da Embrapa reduziu o tamanho das árvores e adiantou a produção para metade do tempo, de 6 a 8 anos.
Conjunto de araucárias no Parque Estadual de Campos do Jordão (SP), uma das poucas unidades de conservação com grandes extensões de pinheirais nativos
Foto: Ana Taemi, CC BY-SA 3.0
Ainda não regulamentados, incentivos econômicos previstos no Código Florestal Brasileiro e na Lei da Mata Atlântica injetariam recursos para a conservação e a recuperação das matas com araucárias, em áreas públicas e privadas. Levantamento da SOS Mata Atlântica mostra que 4,5 milhões de hectares de mata nativa deveriam ser recuperados em imóveis listados no Cadastro Ambiental Rural.
“São entraves muito grandes que seguem alimentando uma lógica de que rende mais dinheiro infringir a lei, derrubar as florestas, vender a madeira e seguir avançando com uma produção insustentável no campo”, completa Medeiros, da UFSC.
Por email, os órgãos ambientais do Paraná e de Santa Catarina afirmaram que cortes ilegais de araucárias são multados, que atuam no reflorestamento da espécie com variedade genética e que seu corte pode ser licenciado mediante riscos de quedas de árvores sobre estruturas privadas ou públicas, e para obras de interesse público e social, como construção de estradas e de linhas de energia elétrica e caso sejam araucárias plantadas.
O Instituto do Meio Ambiente catarinense comentou que o licenciamento de empreendimentos “sempre foi participativo, após discussões com instituições de ensino, órgãos ambientais de outros estados, empresas privadas e o público em geral” e que “a legislação ambiental traz condições para o corte de espécies ameaçadas, seja de indivíduos isolados ou presentes em fragmentos florestais (comprovação de ausência de alternativa locacional e comprovação de que o corte não agravará o risco de extinção in situ), e institui a necessidade de medidas mitigatórias”.
*Texto divulgado originalmente em 15/03/22 no site do Mongabay Brasil
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Foto de abertura: Heris Luiz Cordeiro Rocha, CC BY-SA 3.0 (araucárias no Parque Nacional da Serra da Bocaina (SP)