*Atualização em 17/09/23
Há poucas semanas a Federação de Futebol da Espanha anunciou a demissão do técnico da equipe feminina, Jorge Vilda. Além disso, Luis Rubiales pediu demissão definitivamente de seu cargo. E a justiça espanhola determinou que ele não pode chegar perto ou se comunicar com a jogadora Jennnifer Hermoso.
Atualização em 30/10/23
O Comitê Disciplinar da Fifa anunciou na manhã da segunda-feira (30/10) que o ex-presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, Luis Rubiales, está banido de atividades relacionadas ao futebol por três anos.
Segue abaixo o texto original da reportagem.
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Que lamentável que o brilho das jogadoras da Seleção Espanhola em campo e a vitória na Copa do Mundo Feminina tenham sido ofuscados por um incidente lamentável, que foi apenas a ponta do iceberg de um escândalo ainda maior e que escancarou uma cultura machista e tóxica dos bastidores do futebol do país e, denunciam muitos, de sua própria sociedade.
Quando Luis Rubiales, o presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), beijou na boca a jogadora Jennifer Hermoso após a final da Copa, em Sidney, não imaginava que o ato custaria seu cargo e uma investigação por “suposto crime de agressão sexual” aberta na segunda-feira (28/08) pelo Ministério Público da Espanha.
A seleção da Espanha já tinha chegado na Austrália sob um clima de tensão. Antes da competição, 15 atletas enviaram uma carta à federação pedindo a troca do técnico Jorge Vilda. Foram completamente ignoradas. A maioria das signatárias não foi escalada para representar o país no mundial.
A decisão da entidade refletia uma postura de Rubiales, que segundo relatos, age como um ditador. Prova disso foi sua reação após a polêmica do beijo começar a ganhar as manchetes nacionais e internacionais.
Rubiales afirmou que o beijo foi consentido e, depois, disse que Jennifer o havia beijado e inclusive “o tirado do chão”. Com a declaração em suas redes sociais, ela reforçou que “em nenhum momento consentiu com o beijo”.
Quando o assunto tomou proporções ainda maiores, o czar do futebol espanhol declarou que não iria renunciar. Por quatro vezes seguidas afirmou em alto e bom som: “No voy a desistir”. E voltou a insistir na versão que a jogadora o tirou do chão e que, antes de beijá-la, pediu permissão e ela teria dito “ok”.
Celebração do time espanhol foi ofuscada pela cultura machista da federação
(Foto: divulgação RFEF)
Acuada pela repercussão mundial, a Federação Internacional do Futebol, a FIFA, suspendeu Rubiales por 90 dias, enquanto tramita um processo disciplinar contra ele. Não satisfeito, Rubiales ameaçou processar Jenni, como é conhecida.
Logo a hashtag #SeAcabó começou a ganhar força. Mulheres foram às ruas protestar contra o dirigente e os abusos sofridos pelas espanholas diariamente. É a hora e a vez do movimento #MeToo no país espanhol.
Ao pedir “medidas exemplares” à Real Federação Espanhola de Futebol, Jennifer agora conta com o apoio de várias organizações internacionais. A Anistia Internacional se manifestou sobre o caso e ressaltou que “o beijo não consentido é uma forma de violência sexual que, como qualquer outra, não pode ser justificada de forma alguma. A ação de Luis Rubiales é um comportamento de violência sexual perpetrado no local de trabalho e por parte de um superior”.
Nesta terça-feira, o Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, Volker Türk, também se pronunciou sobre o assunto.
“As mulheres no esporte continuam enfrentando assédio sexual e abuso — cada um de nós tem a responsabilidade de denunciar e desafiar esses abusos. Unimo-nos à espanhola Jenni Hermoso e a todos aqueles que trabalham para acabar com o abuso e o sexismo no esporte. Que seja um ponto de virada. #SeAcabó”, afirmou o austríaco no X (ex-Twitter).
Não foi apenas contra Jennifer Hermoso que Rubiales demonstrou um excesso de intimidade. Fotos de agências de notícias mostram o dirigente abraçando de forma bastante apertada outras atletas, dando tapinhas no bumbum e uma dança de mãos certamente inapropriada de um chefe para com suas subordinadas.
Jenni, a camisa 10 da seleção espanhola, afirmou que quer “medidas exemplares” contra Rubiales
(Foto: Instagram Jennifer Hermoso)
Não é só Rubiales
Infelizmente o comportamento de Rubiales não é um caso isolado. E não é apenas o machismo que permeia o mundo do futebol espanhol. O racismo é outro grave problema a ser enfrentado. Vale lembrar dos insultos sofridos pelo jogador brasileiro Vini Jr. em maio deste ano.
Ao tomar as ruas protestando contra o agora ex-presidente da federação e apoiando Jenni, os espanhóis e as espanholas buscam mudar uma cultura inaceitável e clamam por mudança, ações do governo e punição.
O texto publicado pela blogueira Carlota M. reflete bem esse desejo.
“O fácil agora é criticar Rubiales. O difícil é enfrentar caras como ele no dia a dia, nas situações do dia a dia. Em qualquer lugar, em qualquer contexto. O difícil é continuar lidando com a existência de pessoas pouco apresentáveis que todos conhecemos. A parte difícil é falar abertamente quando testemunhamos qualquer tipo de abuso semelhante. O difícil é se sentir segura.
O mais fácil agora é acabar com Rubiales. O difícil é derrubar a estrutura em que ele está apoiado. O difícil é fazê-los parar com todos aqueles aplausos embaraçosos que refletem tão bem o calor da matilha que os protege. Ele e todos que se parecem com ele. Que acabem os silêncios que legitimam seus atos e desapareçam aqueles que riem deles.
Ele disse há algumas horas, entre todo o lixo que cuspiu da boca, que a bitoca que deuem Jennifer Hermoso é como se tivesse dado em uma de suas filhas. Ele esquece, se é que alguma vez soube, que elas não são suas filhas. Elas não são suas garotas. Embora as também use. Elas são mulheres. E, como se não bastasse, suas subordinadas. Dupla culpa.
Como comentou Marga G. Aller, “se Rubiales vai continuar representando o futebol espanhol, será porque representa o futebol espanhol”. E é que o que aconteceu nos últimos dias à vista de todo o mundo, manchando o incrível feito das jogadoras, é um reflexo perfeito do país em que, infelizmente, ainda vivemos. Uma realidade que deveria realçar as cores de qualquer pessoa com um mínimo de decência e dignidade. Um conjunto de depoimentos, gestos e imagens que mexem com qualquer indivíduo que acredite na vida fora das cavernas. Um espetáculo vergonhoso do qual a Espanha é a triste protagonista.
O fácil agora é apontar para Rubiales. Justamente porque ele é a personificação impecável desse machismo, dessa camaradagem, desse despotismo, desse abuso de poder, dessa grosseria e daquela impunidade que já é insuportável. A parte difícil é limpar as nossas ruas, os nossos bares, as nossas casas, as nossas aulas, os nossos empregos e os nossos relacionamentos de qualquer pessoa que cheire a isso. De qualquer um que fede a eles”.
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Foto de abertura: divulgação RFEF