Nos anos 80, o diretor Vincent Carelli deu início a três filmes que traduzem – com talento, empatia e amor – a luta pela vida e a resistência dos povos indígenas contra os ataques sistemáticos de governos e da sociedade, que se arrastam dos anos 50 até os dias de hoje, sempre visando seu apagamento e a exploração ilimitada da natureza. A história sempre se repete.
Em 1986, foi plantada a semente do filme ‘Corumbiara’ a partir da primeira experiência de Carelli com o projeto Vídeo nas Aldeias ao filmar os Nhambiquaras, em Rondônia. Foi lá que tomou conhecimento do massacre de indígenas isolados por fazendeiros e madeireiros e se interessou pele história, que foi abafada e havia caído no esquecimento. Ele levou-a às telas em 2009.
Em 1988, o diretor se aproximou dos Guarani Kayowá para registrar a situação a que eram submetidos por fazendeiros e seus capangas, a articulação de ruralistas liderados por Kátia Abreu para tomar as terras indígenas a qualquer custo, e o apelo desse povo por justiça. Chamado de Martírio, o filme foi lançado em 2016 (contamos aqui).
Mas foi para saber tudo (ou quase) sobre o último filme dessa trilogia – Adeus, Capitão! –, que conversei com Carelli. O filme estreia amanhã, 5/4, no Festival É Tudo Verdade, e será exibido em 4 sessões, sendo duas online (veja aqui). E tem Tita como parceira de direção e responsável pela montagem.
Os três filmes levaram muito tempo para serem finalizados, mas foi este que demandou maior dedicação do diretor e de sua equipe. As filmagens começaram em 1987 na reserva do povo Gavião, no Pará, logo depois que Carelli se viu diante de um dos líderes indígenas mais instigantes que conheceu: Krohokrenhum.
Capitão, como todos da aldeia o chamavam, estava sempre em busca de formas para resgatar a autoestima e a identidade de seu povo, que foi quase dizimado nos anos 50, com a invasão dos brancos e o ‘processo de pacificação’. Depois veio a pressão das grandes obras de infraestrutura.
O líder Gavião viu nos rituais dos Nhambiquara – registrados e apresentados a ele por Carelli – uma uma possibilidade para essa retomada. E, aos poucos, o diretor já estava produzindo outro filme.
Ao contar a saga de Krohokrenhum, Carelli leva para as telas não só a história de um homem da terra, que dedicou sua vida a manter a dignidade de seu povo, mas também uma reflexão urgente sobre a realidade dos povos indígenas no Brasil, com o governo de Bolsonaro.
Desde sua morte, aos 90 anos, em 2016, filhas e netas têm dado continuidade a seus ensinamentos e honrado sua jornada.
Nesta conversa, o diretor que criou o projeto Vídeo nas Aldeias para ensinar os jovens indígenas a registrar seu cotidiano, contou sobre sua preocupação com este acervo incrível da cultura de cerca de 62 povos originários e também de seu próximo filme: Djunuá.
Por que você quis contar a história do Capitão?
O filme é uma reconstituição histórica, na qual Krohokrenhum reconta sua longa trajetória, pontuada pela derrocada e o renascer pelo qual passaram diversas vezes.
Uma das retomadas dos Gavião aconteceu um tempo depois que visitei a aldeia. Capitão se encantou quando mostrei as filmagens com os Nhambiquara – fazendo furo no nariz, no queixo – Krohokrenhum. Comprou uma câmera VHS para o sobrinho, que foi meu primeiro aluno nesse povo. Queria que tudo fosse registrado por ele.
Um tempo depois, quando voltei lá, eles também tinham furado o beiço, inspirados pelos Nhambiquara. E, assim, começou uma nova fase para a superação do trauma vivido pelo ‘índio bravo’, como eles se autodenominavam.
O processo de pacificação dos Gavião foi muito violento. Eles resistiram à entrada dos castanheiros e do extrativismo, durante décadas. Foram chamados de “índios assassinos” e ficaram estigmatizados, por isso. A extinta revista O Cruzeiro se referia a eles assim, mostrando os castanheiros flechados.
Esse contato – e, como sempre, a história se repete – é uma hecatombe: 80% da população morre, também devido à gripe, sarampo, malária. Foi uma tragédia!
Em filme do diretor Hermano Pena, que registrou a CPI do índio em 1968 (realizada para provar a violência contra os indígenas, na época), há um depoimento contundente do Capitão: “Eu já era branco, eu era só cachaça”. Ele foi ao fundo do poço depois da chacina de seu povo: pra ele o mundo Gavião tinha acabado.
Meu filme retrata desde as guerras internas, dos contatos entre grupos Gavião, até esse desfecho trágico, que parecia ser o fim do povo de Krohokrenhum.
Como foi possível o resgate da identidade dos Gavião nesse cenário?
A retomada que ele liderou começou a acontecer com a aproximação de um grupo Gavião, ‘deportado’ de sua terra, onde foi construída a Hidrelétrica de Tucuruí, entre os anos 70/80.
Logo surge um novo grupo vindo Maranhão, que se junta a eles, mas era monolíngue, mais ‘índio bravo’ ainda, e queria fazer corrida de tora, usar flecha. Isso inspira Capitão a recomeçar novamente.
Ao mesmo tempo, algo muito insólito acontece, em plena ditadura militar: um general resolve inovar e passa a Funai para o controle de antropólogos. “Já que a Funai não consegue fazer nada que preste, vamos dá-la aos antropólogos, que tanto nos criticam, pra ver se eles fazem melhor do que a gente”, disse ele. E deu certo, claro.
Nessa época, aconteceram vários projetos com os Yanomami, Krahô, Tikuna, entre outros povos, dirigidos por antropólogos. E a antropóloga Iara Ferraz foi quem conduziu o projeto com os Gavião.
Iara implantou um plano de autonomia para os Gavião explorarem e comercializarem a castanha de sua reserva, sem a interferência da Funai. Era um castanhal pujante! Um dos maiores do sul do Pará. E, assim, com os três grupos unidos, Capitão inicia a reconstrução da memória do mundo Gavião.
Você acompanhou o trabalho de Iara Ferraz com os Gavião?
Foi nesse momento que eu cheguei com a câmera mostrando os Nhambiquara e seus costumes para o Capitão. E o que ele viu também o inspirou a retomar sua marca tribal. Ele resgatou todos os rituais Gavião que boa parte do povo, naquela altura, não conhecia, e me disse: “Você vai filmar pra ficar registrado para as próximas gerações”.
Tudo ia bem com o projeto da castanha e, assim, com Krohokrenhum animado, eles foram ressurgindo das cinzas.
No entanto, com a abertura da rodovia PA-70 – que ligava Marabá a Belém e hoje é conhecida como BR-222 -, nesse mesmo momento, iniciou-se a transfiguração da região, para a qual convergiram todos os grandes projetos de desenvolvimento, que atravessaram a reserva Gavião.
A Eletronorte, que já tinha desalojado os Gavião em Tucuruí – na marra, sem indenização, nada! -, chegou ali e cortou a reserva, bem na altura da casa do Krohokrenhum. pra passar uma linha de transmissão da Hidrelétrica de Tucuruí. Fazem uma estrada, duplicam a linha de transmissão, vem também uma linha de transmissão da Acelpa e a tragédia do trem da Vale, que também cortou a reserva. Enfim, um festival de iniciativas estatais contra as quais era muito difícil lutar.
Que desespero! Lembra muito o que acontece hoje, com Bolsonaro
Sim, a história se repete. Nós os assessoramos no sentido de conseguir substanciais indenizações porque todos os projetos atravessavam a reserva.
Só a primeira linha de transmissão da Eletronorte derrubou 800 castanheiras, que eram o miolo daquele castanhal maravilhoso! Eles produziam 3 mil hectolitros (medida que equivale a 100 litros) por ano, o que lhes garantia viver muito bem.
As obras comprometeram sua base de sustentação e eles passaram a viver de compensações de grandes projetos.
Você registrou todo esse processo?
Retratei tudo nas décadas 80 e 90. Voltei em 2010 e registrei a entrada das igrejas evangélicas, a paixão dos jovens pelo futebol e o abandono dos rituais. Desgostoso, Capitão se mudou da aldeia velha com a família.
Mas, de repente, com as jovens mães, surge uma nova possibilidade de renascer. Elas o procuram e dizem que ele não pode morrer “antes de ensinar a gente a cantar, a chorar, a contar as histórias e a falar a nossa língua”.
As novas gerações não falam mais a língua nativa e ele lutou contra isso até morrer.
Capitão se encantou com o convite das mamães e, até sua morte, em 2016 – portanto durante seis anos -, se deslocou diariamente à aldeia para reunir os jovens que queriam aprender sobre a cultura Gavião.
Se dedicou de forma integral à essa missão: “Eu não posso morrer assim, tenho que deixar alguma coisa para o meu povo!”, dizia.
Essa militância para que não se perdessem a cultura da fala, as tradições, as cantigas e cerimoniais, virou uma obsessão e ele morreu no meio desse processo. Eu também trabalhei com esses jovens até a morte dele, que foi uma catarse.
Foi o que o manteve vivo…
Certamente. E, durante esse processo, os jovens fizeram gravações com o velho Krohokrenhum, que contou desde sua infância, passando pelas guerras internas (anos 30) – ele se tornou um guerreiro temido! -, até o contato com os brancos e seus grandes projetos, que começou em 1956. Os jovens também produziram um livro.
O que fiz foi uma narrativa em paralelo, contextualizando essa trajetória. O depoimento dele é a peça central do meu filme: ele falando com seus filhos, com suas netas, com sobrinhos, contando sua vida.
É uma reconstituição histórica, na qual ele reconta toda essa saga, essa longa trajetória, a derrocada e o renascer incansável.
Está tudo ali: o capitalismo, o consumo, a desagregação do coletivo, a complexidade, ao mesmo tempo em que há os movimentos de retomada de querer aprender, de fazer as coisas, enfim, é um processo de assimilação de tudo que acontecia e, ao mesmo tempo, a angústia sobre o que será de nós?’.
Vincent, você já apresentou o filme para os Gavião?
Eu estava muito atrasado. Os festivais, de alguma forma, acabam pressionando a finalização. Mas durante o processo de montagem, convidei um casal da aldeia – a moça é personagem do filme – para vir aqui e assistir o que já estava montado, mas ainda meio cru: uma hora de filme. Eles adoraram, mas pra eles não tinha nenhuma questão estética.
Disseram “entendemos tudo”. Sim, claro! Eles viveram a história. O que queríamos fazer era torná-la compreensível para um público virgem no assunto. Esse é o nosso grande desafio.
Mas claro que, depois do festival (É Tudo Verdade), devemos exibir o filme em várias aldeias. Inclusive, pra mim, esse filme, antes demais nada, é importante para eles. É uma reconstrução desse povo.
Tem foto de 1957, com os Gavião recém-contatados. Fotos de um missionário de 1961 a 1964, enfim… é uma reconstituição realizada durante mais de uma década, portanto, mostra muitas pessoas que já estão mortas: tios, avós, pai, mãe. Vai ser meio chocante, mesmo eles conhecendo esse material, que eu sempre mostrava pra eles.
Há muitas gerações novas. E essa reconstituição histórica é importante. Até os Gavião dissidentes, considerados ‘inimigos’, estão curiosos pra ver. Eles sempre disseram: ‘Capitão é muito importante pra nós!”. Ou seja, ele é um mito, um ícone do povo.
Você comentou que a morte do Capitão foi uma catarse. Pode falar mais?
A morte, o velório e o enterro de Krohokrenhum foi muito impactante. Eles reagem frente à morte de uma maneira muito sofrida, muito trágica. É um jeito de reagir.
Os Guarani, como são super espiritualizados, conversam com Deus, têm outra reação à morte. Tem povos que ficam muito inconformados com a morte.
No caso dos Gavião, as cenas do velório e do enterro são muito impactantes pelo abalo emocional de todos.
Você acredita que este filme pode ajudar os brasileiros a refletirem sobre o que acontece hoje com os povos indígenas?
Como disse, a história se repete. Nunca tem dinheiro para os indígenas. É uma tradição do Estado brasileiro de sempre. O SPI – Serviço de Proteção ao Índio seguia a mesma filosofia: era preciso explorar as terras indígenas para subsidiar a proteção dos povos. Então, em todo esse processo de desenvolvimento da Amazônia, nunca teve dinheiro para assistência aos índios, mas quando surge um projeto que lhes interessa geopoliticamente, aí sobra dinheiro.
O caso dos Gavião é importante para que os outros povos reflitam sobre o que está acontecendo. Toda vez que tem que fazer uma estrada, uma linha de transmissão, uma ferrovia, esses grandes projetos, aí, sim, investem uma grana pesada! Enquanto os índios ficam à míngua. São investimentos estratégicos do Estado para surrupiar os recursos naturais. É um clássico.
Esse caso aconteceu nas décadas de 70, 80, 90, 2000 e se repete, hoje, com Bolsonaro tentando arrombar as reservas indígenas no Cerrado, em Mato Grosso… pra botar soja. Tudo isso é um pacote.
Então, o caso em profundidade que acontece com os Gavião ao longo dos últimos 30, 40 anos é perfeito para refletirmos sobre essas estratégias.
Como eles vivem hoje? Estão bem?
Sim, estão bem, mas numa eterna pressão porque, agora, querem fazer a duplicação da ferrovia de Carajás. E o que acontece é que a ferrovia está duplicada até o começo da reserva, que a interrompe, e continua duplicada depois do fim da reserva. E essa negociação não se resolve nunca.
Há disputas internas porque tem os indígenas que querem e os que não querem. E, como eles vivem dessas indenizações, a Vale, todo ano, cria um caso: “Ah, não, vamos rediscutir o convênio”. E eles ficam completamente rendidos se não sai o dinheiro da Vale.
A negociação é um instrumento de pressão. Os Gavião têm um capital de giro e, de repente, para o fluxo de dinheiro da Vale, as dívidas se acumulam, aí eles entram em agiota.
Já estão todos dependendo da alimentação de supermercado, e isso tem impacto na saúde.Aliás, toda a primeira geração morreu com problemas na vesícula, de doenças provocadas por essa alimentação,
É um jogo muito pesado entre essas grandes companhias e eles. E ainda tinham o projeto de uma hidrelétrica em Marabá, que alagaria uma parte da reserva e só está parado por causa da situação do país e do mundo.
Esta é a história de depredação de um patrimônio de 60 mil hectares, que é uma ilha de floresta no meio de um deserto de pasto degradado. E é incrível porque 60 mil hectares é quase uma ilha de mata que tem dificuldade de sobreviver.
Tanto é que os Gavião de Tucuruí entraram no Supremo Tribunal Federal contra a Eletronorte pra comprar uma área para os índios, e ganharam. A empresa queria oferecer uma área anexa à reserva, que é de pasto – toda desmatada! – e que é tudo grilagem, ninguém tem documento.
Estamos vendo isso na Amazônia também…
Sim, e que se gravou com uma intensidade grande neste governo. Provavelmente, a Amazônia já passou do ponto de não retorno. Se fizerem as contas direito já está lá. A devastação está crescendo numa velocidade absurda. É uma loucura!
Li o livro da Eliane Brum, o desespero dela, mas também a vontade de lutar. Eu que tô nessa há 50 anos, gostei de ler pelo ânimo de luta a que ela se propõe. Até anima. Mas com 50 anos de derrota, a gente pensa: “Putz! A humanidade não tem jeito”.
Você acredita que ainda dá tempo?
Precisamos mudar este governo. É a única possibilidade. O próprio governo está massacrando o povo. A quantidade de gente que bate à minha porta, todos os dias, pedindo comida, é assombrosa. Muita gente morando na rua. Uma tragédia! E com as fake News, com esse mundo fictício, o cara ainda tem 30% de aprovação! Que país é este?
Quando o Congresso aprova uma PL ao mesmo tempo em que há uma mobilização e um show na Esplanada dos Ministérios – como o que foi liderado por Caetano Veloso -, não se intimida com o que diz o povo, é um acinte! Uma tragédia!
Como vai ser a trajetória do filme, depois deste festival?
O festival É Tudo Verdade é um bom começo. O filme deve participar de outros festivais e ainda não sei se vai entrar em circuito comercial. Martírio entrou porque estávamos em 2016, em meio a um golpe, com o fascismo latente. Então, ele pegou muito pesado e foi bem. Mas não sei ainda se este vai para os cinemas.
Certamente vou distribuir pela produtora Embaúba. Acredito que ele vai circular por algumas redes, pelas ONGs, pelas escolas. Certamente num circuito paralelo.
Martírio também circulou de outras formas: distribuímos 3 mil cópias em DVD na região, onde os Guarani Kayowá vivem. Os indígenas também distribuíam. Passou em universidades regionais. O Ministério Público também exibiu muito.
E, como tínhamos feito uma campanha de crowdfunding, mil pessoas contribuíram com o filme. Criou-se uma rede de apoio a esse povo. Fiquei muito satisfeito, também com a recepção dos indígenas. Uma garota contou que mostrou para o pai e ele ficou uma semana inteira assistindo.
E o projeto Vídeo nas Aldeias? Quantos povos estão registrados e quais são os planos para ele?
Esse projeto tem 36 anos e aprendeu a ficar pequeno como estrutura, a encolher quando há crise e a crescer quando os tempos são mais favoráveis.
Estamos vivendo um momento bastante difícil porque, na verdade, não temos mais o apoio da Cooperação internacional e a da Ancine, o fundo setorial travou.
Acredita que fiz o ‘Adeus, Capitão!’ ainda com o dinheiro do fundo setorial da era Dilma? E eu ainda tenho outro longa – que é um retorno ao meu ponto de partida, minha relação com os índios Xikrin, de Carajás – que também está sendo feito com esse dinheiro. Hoje, a gente não consegue nada!
Ainda temos outros projetos para realizar – já aprovados -, mas o grande desafio, pra mim, neste momento, é que destino dar para o incrível acervo do Vídeo nas Aldeias? Para esse material analógico digital – sem contar o material digital nativo -, que deve ter mais de 4 mil horas de filme.
Já conseguimos digitalizar duas mil horas. Ainda falta metade. E também ainda faltam o trabalho de catalogação e a criação do sistema de busca pra que esse acervo seja um arquivo da memória desses povos, que são 62 povos até agora: uns mais, outros menos. Também reúne toda a produção dos jovens indígenas a partir de oficinas.
Então, o Vídeo nas Aldeias é um patrimônio indígena. E o Brasil não honra.
Você quer doar esse acervo?
Preciso dar um destino para ele. Mas onde posso colocá-lo? No Museu do Índio? Num museu governamental, que ou pega fogo ou colocam um general pra dirigir? Não dá!
Em arquivos particulares como o do IMS – Instituto Moreira Salles? Mas esse tipo de arquivo é proprietário. A gente quer preservar a propriedade dos indígenas. Que vá para um lugar que seja acordado com eles. Afinal de contas, é a imagem deles. E quero muito que esse princípio seja respeitado.
Você vai à Noruega, e vê os Sami, que são os indígenas de lá, negociando com o parlamento. O país deu aos indígenas um status dentro do espaço do estado e subsidiado pelo estado.
Aqui, só se tira dos índios. Eles não têm um espaço de autonomia, dirigido por eles. Mas eles têm dado um exemplo pra gente que, apesar de todas as suas dificuldades, estão crescendo, aparecendo, dando um show de política, resistindo, lutando. E se conectando no mundo da comunicação para sobreviver.
(hoje, 4/4, começa o Acampamento Terra Livre 2022, em Brasília, que vai até o dia 14).
Então, como equacionar? Temos duas questões para resolver. A primeira, é definir a instituição na qual nosso acervo será depositado. Depois, arrumar dinheiro para terminar de digitalizar os filmes e transformar o acervo em um arquivo consultável.
A gente estava trabalhando muito nisso, antes da pandemia, com a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), mas tivemos que suspender tudo por dois anos, e vamos retomar. Vamos ver se, em 2023, as coisas melhoram. Quem sabe dá uma guinada.
Hoje pra sobreviver espiritualmente, a gente tem investido no que a gente acreditou sempre. Precisamos nos ligar a movimentos positivos pra energizar. Porque há o Brasil do poder, mas também há o Brasil da fabulação, da inovação, da esperança. Há os movimentos que convivem com essa tragédia, mas que não morrem.
Agora, conte sobre seu próximo filme, dedicado ao povo Xikrin
É um longa sobre os Xikrin. Foi com eles que comecei minha carreira, aos 16 anos. Cursei a USP (Universidade de São Paulo) por um ano e, depois, fui morar com deles, no Pará.
Foi uma experiência radical o convívio com esse povo, na adolescência. Uma fase muito importante que fez de mim quem eu sou. Tenho uma grande gratidão por essa oportunidade e privilégio de conviver com eles. Fui adotado. O filme chama Djunuá, que significa pai. Eu tive um pai adotivo lá.
Com esse filme retorno ao meu ponto de partida. E também, ao povo da floresta mesmo, que eu conheci, que tinha muito pouca ligação com a cidade de Marabá.
A vida que eu vivi lá não existe mais. Eles também estão num processo de negociar com a Vale. Eles estão assentados na Serra dos Carajás. O rio Cateté está poluído com metais pesados dessa companhia.
Os Gavião estão lá também, mas os Xikrin são vizinhos diretos do projeto Carajás e de todos os seus anexos. Então, lá existe também essa disputa, esse mundo das novas gerações se batendo pra encontrar seu lugar, seu meio de vida. Mas uma transformação de outra forma.
Os Xikrin e os Kayapó, de maneira geral, não perderam a língua nativa. As novas gerações falam a língua. Têm dinheiro, então fazem rituais monumentais, muito incríveis. Mas também estão envolvidos com essa vida do desenvolvimento, com essa alimentação nada saudável, com essa mudança de cenário, que é um mundo novo a cada geração. Mas eu sou otimista.
Djunuá será um filme menos pretensioso, de memórias afetivas, pra falar de onde eu vim, o que vivi com eles. Não vai levar três anos para montar.
Abaixo, vídeo de um trecho do filme Adeus, Capitão!, divulgado pelo festival ‘É Tudo Verdade’.
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Foto: cartaz do filme ‘Adeus, Capitão!, de Vincent Carelli’