João e Maria é um clássico da literatura infantil. O conto de fadas dos irmãos Grimm, escrito em 1812 na Alemanha, conta a história dos filhos de um lenhador, que se perdem em uma floresta e acabam presos na casa de uma bruxa que devorava crianças. Sim, é uma história que pode parecer assustadora, mas outros tanto livros infantis abordam temas similares, como fome, violência, solidão, ciúme, inveja e perda.
Apesar disso, especialistas da área de educação afirmam que é importante que crianças sejam familiarizadas com essas questões e consigam entender a diferença entre o certo e o errado, o bom e o mau, o bonito e o feio.
Todavia, não parece que o Ministério de Educação concorde com a opinião de educadores e escritores, entre eles, alguns dos nomes mais consagrados da literatura infantil brasileira. No final de 2019, a Secretaria de Alfabetização, ligada ao MEC, lançou a coleção “Conta Pra Mim”. Parte do Programa Nacional de Alfabetização (PNA), os 40 livros estão disponíveis gratuitamente online e têm como foco famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica.
Mas histórias como João e Maria, O Flautista de Hamelin e Chapeuzinho Vermelho foram adaptadas e perderam partes importantes de seu contexto. Chapeuzinho Vermelho é uma menina loira e o lobo não é morto pela caçador. No final, o animal morre afogado em um rio. João e Maria não são abandonados pelos pais e as pedrinhas que o garoto usa para marcar o caminho viram miolos de pão dados pela mãe (que no conto dos Grimm é madastra).
Na versão original da lenda brasileira do Curupira, o menino protetor da natureza, com os pés voltados para trás, faz com que os caçadores de bichos fiquem perdidos na mata. Na versão da coleção do MEC, eles se arrependem e viram bonzinhos.
Preocupados com as alterações feitas, mais de três mil educadores, professores, pesquisadores, escritores, editores, profissionais da área e representantes da sociedade civil assinaram o manifesto “Não ao retrocesso nas políticas públicas do livro e da leitura”. A crítica não é apenas sobre as mudanças, mas também sobre a seleção dos livros e o projeto editorial implementado.
Diz o texto:
“O programa Conta pra mim expõe mais uma face do projeto autoritário em curso no país. Sustentado por concepções ultrapassadas, preconceituosas e excludentes de educação e de família, oferece à primeira infância (crianças de zero a cinco anos) e às suas famílias produtos (cartilhas, vídeos, “livros”) e muita propaganda sobre o que alguns desconhecidos elegeram, a partir de valores morais e religiosos, como o certo e o errado, o bom e o mau, o bonito e o feio.
Desconsiderando o vasto e qualificado conhecimento acumulado de pesquisas sobre a literatura infantil e formação de leitores, experiências sobre leitura e infâncias e a intensa criação e produção editorial brasileiras, que contam com reconhecimento e prêmios nacionais e internacionais, de outras políticas públicas exitosas já implementadas, o programa do Governo Bolsonaro, coerente com a atuação do atual Ministério da Educação, investe na conformação e na redução de horizontes para o livro e a leitura no país.
Dentro de uma proposta denominada “Literacia familiar”, nega-se a bibliodiversidade, característica da produção editorial brasileira, ao serem disponibilizados livros com formatos idênticos, com a mesma proposta de ilustração, em títulos e gêneros diversos, adaptações restritas de narrativas clássicas, representadas com linguagem empobrecida. Além disso, desconsidera-se sua materialidade – que livro é esse que pode ser lido on line e impresso em casa (como se toda casa brasileira tivesse condições materiais para isso), inclusive em formatos para colorir?”
Para os já mais de 3 mil signatários do manifesto, os livros da coleção “Conta pra Mim” privilegiam narrativas que estabelecem “verdades prontas e fechadas ao invés de proporcionar um repertório que contemple os conflitos, os desejos, os medos, as alegrias e os sonhos humanos, com convites para caminhos plurais”
“A oferta da língua que narra, canta, orienta, comunica, ordena e subverte já é promessa de alguma liberdade. Entender e se apropriar da língua, falada ou escrita, ampliam os horizontes do pensamento. Em contato com os livros e a leitura, desde muito pequenas as crianças começam a participar da cultura escrita. E começar cedo não quer dizer aprender a decifrar precocemente símbolos gráficos, sair na frente para competir, mas significa, isso sim, contar, desde os primeiros dias de vida, com a abertura para novos horizontes, que as ajudem a compreender o tempo e o espaço em que vivem e as relações de que participam“.
Em artigo publicado em seu site, intitulado “Não conta pra mim”, a escritora Marina Colasanti, uma das mais premiadas autoras brasileiras, ganhadora de vários prêmios Jabutis, dentre tantos outros, criticou duramente o programa do governo.
“João e Maria foram sim, ao contrário do que consta na nova coleção, levados ao bosque pelos pais que, em plena miséria, não tinham como alimentá-los. Era prática recorrente na Idade Média em períodos de fome”, diz Marina. “No Brasil nunca tivemos Idade Média, mas sempre tivemos fome e sempre tivemos crianças rondando nos bosques urbanos. Para essas crianças pode ser muito proveitoso saber que João e Maria estiveram na mesma situação, e conseguiram achar uma saída. Bem mais do que ler que uma boa mãe lhes ensinou o truque das pedras, para que pudessem colher flores”.
Para a escritora, a adaptação dos contos e histórias está recheada de moralismo. “Quem orquestrou este insulto a narrativas milenares, desconhece que elas se mantêm vivas através do tempo e da geografia porque têm infinitas portas, permitindo que cada leitor – ou ouvinte – abra a sua e se enriqueça”, afirma.
Autora de mais de 50 livros infantojuvenis e também detentora de dois Jabutis, Januaria Cristina Alves é outro nome consagrado da literatura nacional que assina o manifesto, que pede a suspensão da coleção (que custou aos cofres públicos mais de 18 milhões de reais).
“O governo selecionou histórias de tradição oral, do folclore brasileiro, clássicos da literatura universal, leituras de indiscutível representatividade para a formação leitora de qualquer criança e…. contou essas histórias do jeito que quis. Ou melhor, contou-as de modo a atender a um projeto maior, que “seleciona” apenas o que favorece os interesses, ideias e conceitos que defende, e que mostram um Brasil fictício, do qual os cidadãos não participam e que nem sequer conseguem ver”, enfatiza Januaria.
“Os livros do MEC transformaram personagens icônicos, histórias de alto valor mítico – tão necessárias para propiciar o desenvolvimento do gosto pela literatura e de valores caros à formação ética e moral das crianças, como a empatia e o respeito às diferenças – em aventuras insossas e desprovidas de qualquer encanto, porque distantes não apenas do público a qual estão destinadas, mas especialmente porque não oferecem qualquer conexão com o universo simbólico no qual as crianças estão inseridas”, finaliza (leia o artigo completo de Januaria neste link).
Questionado sobre as críticas e o manifesto, o Ministério da Educação garantiu que a livre adaptação das obras foi feita sob a avaliação de especialistas internacionais sobre literacia familiar e está em acordo de cooperação com a Unesco.
Se você também quer assinar o manifesto, acesse este link.
*Texto atualizado em 24/10/20 para corrigir uma informação incorreta sobre a história da Branca de Neve.
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Imagem: reprodução da ilustração do livro Chapeuzinho Vermelho da coleção “Conta pra Mim”
Há um erro crasso na matéria, no trecho abaixo:
“Em outra adaptação, pra lá de conservadora, Branca de Neve não é beijada pelo príncipe. Uma situação bizarra é retratada pela “Conta pra Mim”.
É bom que se diga quem na versão dos Irmãos Grimm do conto “Branca de Neve”, não há beijo ‘despertador’ (isso ocorre na versão cinematográfica da Disney), e a moçoila realmente acorda de seu sono de morte quando um dos anões que conduziam o seu caixão tropeça, fazendo com que o pedaço de maçã envenenada se soltasse. É bizarro, mas é assim que é narrado pelos Grimm.
Marcus,
Muitíssimo obrigada pela mensagem.
Você tem toda razão. A história original não contem mesmo o beijo. Já retirei a informação incorreta do texto.
Abraço,
Suzana
Obrigado, Susana. O projeto do MEC é um festival de absurdos, mas, no presente caso, o episódio consta mesmo na versão canônica de Branca de Neve, registrada pelos Grimm.
Eu que agradeço o alerta!
Abraço,
Suzana