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Filhotinho de arara-azul traz alegria e esperança para biólogos que enfrentam o pós-fogo no Pantanal

Um filhotinho de arara-azul traz alegria e esperança para biólogos que enfrentam o pós-fogo no Pantanal

Foi difícil acreditar que eu veria tudo aquilo de novo. Os campos verdes do Pantanal que eu tanto amo, estavam cobertos de cinza e o negro dos troncos carbonizados e ainda fumegando tinham o efeito de um soco no estômago. A minha cabeça à mil e eu tentando absorver mais uma catástrofe.

Era o início do mês de agosto e o fogo tinha sido recém apagado na Caiman, maior refúgio de vida silvestre do Pantanal sul. A fazenda, que fica no município de Miranda, no Mato Grosso do Sul, é pioneira no turismo de experiência e nas pesquisas de conservação, e mais uma vez foi atingida pelas chamas que vieram da vizinhança…

O fogo não conhece limites e nem cercas. Desta vez, um caminhão atolado na areia há quilômetros de distância gerou faíscas que provocaram um grande incêndio na região do Rio Negro. Em poucos dias as chamas se alastraram como em um rastilho de pólvora e queimaram mais de 300 mil hectares na região, chegando até a Caiman. A intensidade do fogo, o vento e a vegetação seca se tornaram uma combinação fatal para a devastação. Em dois dias mais de 80% da fazenda queimou. Uma tragédia.

A Caiman é o maior centro natural de reprodução de araras-azuis (Anodorhynchus hyacinthinus) do mundo. É onde fica a base de campo do Instituto Arara Azul, que há 34 anos pesquisa, monitora e cuida dessa espécie.  O mês de agosto é exatamente o início do período reprodutivo.

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 “O fogo de 2024 foi devastador. A gente perdeu árvores, ninho natural, caixas ninho, ainda vamos perder alguns daqui pra frente porque muitas árvores ficaram fragilizadas”, diz Fernanda Fontoura, bióloga do instituto.

Um filhotinho de arara-azul traz alegria e esperança para biólogos que enfrentam o pós-fogo no Pantanal
Neiva Guedes ao lado de uma palmeira queimada na Caiman, logo após os
incêndios do começo de agosto
Foto: Instituto Arara Azul

A arara-azul é uma ave especialista: ela se alimenta basicamente de cocos de acuri, uma palmeira pantaneira, e faz os seus ninhos principalmente em imensos manduvis, que levam mais de 80 anos para chegar ao ponto de nidificação e, infelizmente, estão cada vez mais raras nos campos do bioma.

Desde o início do projeto de proteção da espécie, a bióloga Neiva Guedes – fundadora e diretora do instituto -, sua equipe desenvolveram métodos de auxiliar as araras-azuis na reprodução. O principal deles é instalar caixas ninhos para ofertar cavidades para elas fazerem a postura, e manejo dos ocos naturais das árvores nativas. O trabalho envolve desde a cobertura da cavidade com serragem e lascas de madeira para diminuir a profundidade e manter o filhote em segurança até a instalação de tábuas nas entradas para diminuir a abertura e dificultar o acesso de predadores. São muitas ações que precedem o período reprodutivo para garantir sucesso no nascimento de novos filhotes.

O primeiro filhote de arara-azul após a passagem do fogo

Em 2024 o trabalho em campo foi grande. “Nós fizemos mais de 40 manejos em ninhos naturais e artificiais preparando a estação reprodutiva, mas tudo foi totalmente consumido pelo fogo“, lamenta Fernanda.

As perspectivas eram sombrias naquele final de agosto. Saímos do campo em cinzas e fomos monitorar um ninho antigo, instalado em uma piúva em uma área próxima à pista de pouso da Caiman, um dos poucos locais que não queimaram. Desde 2017, a caixa ninho serve de abrigo para o casal de araras se reproduzir. Desde então, já tinha sido lar de sete filhotes nascidos ali. A equipe sabia que antes do incêndio tinham dois ovos nela. Um foi predado. Mas ainda restava outro ovo no ninho.

O coração de todos estava bem acelerado, porque apesar de a árvore não ter sido queimada, a fumaça tóxica do incêndio penetra nos poros da casca do ovo e já houve caso de o filhote morrer em decorrência disso. Paramos o carro embaixo da piúva e o assistente de campo, Lucas Rocha, se preparou para subir.

Usando equipamento de escalada, ele começou a subir na árvore. Estávamos eu, Maria Eduarda Monteiro, médica veterinária, e Ana Cecília, outra bióloga do Instituto Arara Azul. Lucas chegou na caixa ninho e, com todo cuidado, posicionou a câmera pela abertura e gravou um vídeo. Para alegra, alívio e surpresa de todos, lá estava o filhotinho. Com poucos dias de nascido, quase sem penugem, deitado e respirando no meio da cama de palha preparada pelos pesquisadores.

Enquanto o monitoramento era feito, 19 araras azuis voavam vocalizando e pousando nos galhos da árvore em volta do ninho. Parecia mesmo que elas estavam protegendo um tesouro.

“Tem um filhotinho aqui, e ele está bem!”, foi a frase mais esperada que ouvimos. Lucas nos deu a boa nova cheio de alegria.

O anúncio de que o primeiro filhote de arara-azul nasceu saudável depois do incêndio gerou uma comoção em todos. Nós caímos no choro. O corpo tenso relaxou por um instante e pudemos festejar essa pequena vitória. Com a voz embargada e as lágrimas escorrendo pela face, Maria Eduarda desabafou aliviada. “Esse é o primeiro filhote da estação reprodutiva, primeiro filhote depois do fogo, é um filhote que traz muita esperança pra gente.”

A equipe celebrou e se abraçou no meio do campo. O filhote tinha nascido há no máximo dois dias. Neste momento de descoberta, um carro da Caiman passava na estrada com os funcionários que estavam fazendo a suplementação, distribuindo frutas e legumes nos campos queimados para ofertar alimentos aos animais. Maria Eduarda não se aguentou, fez sinal para eles pararem e saiu correndo até a estrada. Ela pulou a cerca e levou a câmera com o vídeo do pequeno sobrevivente para todos observarem.

Foi uma catarse coletiva, todos festejaram e choraram juntos ao ver aquele pequeno guerreiro. Era como se a natureza estivesse avisando que depois do desespero do incêndio e de tamanha devastação, algo de bom poderia estar por vir. Uma injeção de ânimo. O filhotinho se tornou o mascote para todos na fazenda.

Um filhotinho de arara-azul traz alegria e esperança para biólogos que enfrentam o pós-fogo no Pantanal
Filhotinho passa por primeiros exames
Foto: Cláudia Gaigher

Expectativa para o primeiro voo

Em setembro, eu voltei à Caiman. Fui acompanhar os trabalhos de mitigação e restauração pós-incêndios. Mais uma vez, acompanhei a equipe Arara Azul. Apesar de não ter mais fogo na fazenda, o ar estava impregnado de fuligem, e a fumaça de incêndios vizinhos ainda encobria o azul do céu.

Chegamos na piúva e mais uma vez a equipe escalou a árvore. Lá estava o filhote. Já coberto pela penugem escura, a primeira que nasce antes de começarem a surgir as penas azuis. O papo estava preenchido em 25%, demonstrando que os pais estavam conseguindo encontrar comida, cocôs de acuri, para alimentar o filhote.

O monitoramento é minucioso, a equipe mede bico, cauda, pesa o filhote, olha cada aspecto do animal e anota tudo para fazer o acompanhamento. Quietinha a ‘mini arara’ parecia saber que aquele povo que estava mexendo com ela era gente do bem, e toda aquela ‘consulta’ era necessária para a sua sobrevivência. Parecia consulta de bebê recém-nascido quando vai ao pediatra. O filhote de arara-azul estava com 41 dias, forte e saudável.

Um filhotinho de arara-azul traz alegria e esperança para biólogos que enfrentam o pós-fogo no Pantanal
Medição do bico do filhote para acompanhar seu desenvolvimento
Foto: Cláudia Gaigher

Mas a fragilidade dos filhotes exige acompanhamento frequente. Depois do fogo, a busca por alimento se torna uma verdadeira batalha diária. Como queimou praticamente tudo, os outros animais sobreviventes enfrentam uma grande disputa na busca por comida e a predação aumenta, principalmente de filhotes e ovos nos ninhos.

“Esta estação reprodutiva está sendo muito desafiadora, depois do incêndio que queimou grande parte das palmeiras de acuri, principal alimento das araras-azuis, destruiu ninhos, ovos, caixas, equipamentos, há uma nova ameaça, um gavião”, revela Neiva. “Suspeitamos que seja o gavião-pernilongo que tem tentado pegar os filhotes. Ele não tem tido sucesso, mas tem provocado estragos levando alguns filhotes a óbitos e em outros casos, o gavião esfola, quebra ossos dos filhotes dentro do ninho. Quando a nossa equipe chega a tempo temos salvado, mas tem sido desafiador.”

Diante desse novo imprevisto, a equipe de campo está testando novas técnicas de adaptação de caixas ninho, diminuindo a abertura para dificultar a entrada do predador, entre outras medidas. Contudo, não tem sido fácil, alguns filhotes não resistiram aos ataques.

Tanto que em novembro, quando retornei para mais uma visita na Caiman, a equipe me levou ao nosso primeiro filhote e mostrou o estrago. A perna direita estava com uma fratura. Há dias os biólogos estavam tratando o filhote. Enfaixando a perna, aplicando antibióticos, analgésicos, fazendo visitas diárias ou até, duas vezes ao dia, para garantir uma boa recuperação.  A fratura foi no osso do tarso metatarso e a preocupação de todos era com a recuperação dos movimentos na garra. Ao retirar as bandagens, dava pra ver que o inchaço na lesão continuava preocupante, mas logo foi feito mais um curativo. No teste de força, o filhote já estava bem melhor, conseguindo firmar a garra.

Tempos depois o filhote já começa a ficar com as penas azuis,
característica mais marcante da espécie
Foto: Cláudia Gaigher

A presença dos pesquisadores diariamente no campo faz toda a diferença. O primeiro filhote de arara-azul do pós-fogo, com os cuidados da equipe, tem grandes chances de se salvar. Já estava com 84 dias de nascido, pesando 1 kg e 200 gramas e quase totalmente emplumado. Agora é esperar a chegada do novo ano, quando o filhotão deve voar.

O sorriso no rosto da bióloga Ana Cecília ao ver o filhote, agora já
com penas, bem e saudável
Foto: Cláudia Gaigher

Essa história de um sobrevivente dos incêndios pantaneiros nos mostra que depois que as chamas são apagadas o trabalho dos pesquisadores continua e até se intensifica. Tem sido necessário um gigantesco esforço para garantir a reprodução das araras-azuis. Sem a equipe de pesquisa no campo, esse filhote possivelmente não teria resistido.

 
 
 
 
 
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Foto de abertura: Cláudia Gaigher

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