*Por Carolina Pinheiro
O primeiro aviso do dia é o sol – que se alonga firme entre veios de um gigantesco mar de montanhas. O amontoado de rocha, mata e água é tamanho que o horizonte parece não caber no olhar de quem percorre a corpulenta teia de estradas de terra onde porteiras fazem divisa com vales e campinas. A região abriga um verdadeiro berçário de nascentes. São tantas as cabeceiras que os cientistas definem o lugar como sendo uma imensa caixa d’água. A principal é a do São Francisco – o estimado rio da “integração nacional”. Na Serra da Canastra, sudoeste de Minas Gerais, a força da natureza é a expressão que integra um complexo mosaico de biodiversidade no qual residem diversas espécies da fauna e flora de Cerrado. Uma delas, o pato-mergulhão (Mergus octosetaceus) – que em 2018 foi reconhecida como Símbolo das Águas Brasileiras pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) – está entre as dez aves mais ameaçadas do planeta.
O biólogo de campo Wellington Viana, um dos especialistas que monitora o pato no local, afirma que restam pouco mais de duas centenas de indivíduos espalhados por pontos específicos do mapa. Segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), a população global está estimada em 250. “Cerca de 140 – a maior população do mundo – vivem no Parque Nacional da Serra da Canastra e arredores, sempre distribuídos por beiradas de rio, geralmente localizadas acima das cachoeiras”, diz.
No passado, o pato-mergulhão ocorria em diversas áreas de Cerrado e Mata Atlântica do Brasil, Argentina e Paraguai, mas atualmente reside apenas em três regiões do Brasil Central: Serra da Canastra/Alto Paranaíba, Chapada dos Veadeiros e Jalapão. O território de um casal requer um trecho mínimo de cinco quilômetros de rio. “Por ser considerada uma espécie carismática, o pato-mergulhão tem sido utilizado como bandeira de sensibilização para a conservação da água. Há várias ações promovidas ao lado da comunidade, as quais abordam temas relacionados à manutenção do ecossistema com foco nos recursos hídricos”, esclarece Viana.
A ave, que possui bico fino, de extremidade recurvada, mergulha em remansos e ao redor de corredeiras para pescar. Tal característica anatômica, bastante peculiar entre as espécies de pato, não lhe permite investidas em águas profundas na busca por alimento, razão pela qual fatores como a expansão da fronteira agrícola, a crescente poluição em cursos d’água, as mudanças causadas por projetos hidrelétricos e o assoreamento dos rios e lagos têm gerado forte pressão sobre áreas preservadas, colocando em risco a sobrevivência da espécie. Exigente, o pato-mergulhão escolhe habitats onde há oferta de mananciais absolutamente limpos, sem vestígio de poluentes ou qualquer tipo de substância capaz de impactar o ambiente. Por isso, serve com bioindicador de qualidade da água.
Véu da cachoeira Casca d’Anta, a primeira queda do rio São Francisco, na Serra da Canastra, região protegida por parque nacional que abriga quase dois terços da população global do pato-mergulhão (Foto: Fellipe Abreu)
Mapear para preservar
Para auxiliar na preservação e persistência da espécie, uma equipe de 14 cientistas de 12 diferentes instituições, incluindo universidades, órgãos públicos federais e estaduais, organizações privadas e não-governamentais, uniram-se para gerar um mapa com previsão das áreas mais adequadas para o pato-mergulhão, onde a espécie possui maior chance de sobrevivência em função das características do ambiente.
O estudo foi desenvolvido pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação das Aves Silvestres (Cemave)/ICMBio em parceria com o Grupo Especialista em Planejamento para Conservação da IUCN. Produzido dentro do Plano de Ação Nacional (PAN) para a Conservação do Pato-mergulhão, o trabalho foi liderado pelos biólogos Alex Bovo e Katia Ferraz, ambos integrantes do Laboratório de Ecologia, Manejo e Conservação da Fauna Silvestre da Esalq/USP.
Ao mapear as regiões nas quais o pato-mergulhão habita, os pesquisadores estabeleceram um paralelo entre os fatores de risco, com destaque para o plano de construção de empreendimentos hidrelétricos previstos para a área de ocorrência da espécie, e as ações possíveis para a conservação das populações remanescentes. Os números divulgados pelo PAN revelam que, no Brasil, há 455 usinas hidroelétricas em atividade e 1.577 em fase de estudo para construção nos próximos anos. No Cerrado, único bioma que ainda abriga populações de patos-mergulhões, 128 usinas já estão em operação e 625 são planejadas.
Alex Bovo esclarece que a Modelagem de Distribuição de Espécies é uma ferramenta para o planejamento majoritário da conservação. “O grupo de especialistas forneceu os dados da presença recente da ave e, através da ferramenta, foi possível apontar as áreas com maior adequabilidade ambiental para o pato”, ratifica.
Com o mapa em mãos, foi possível direcionar a busca de novas populações, investigar potenciais ameaças à espécie e auxiliar na definição de áreas para reintrodução. “Além disso, quantificamos o potencial impacto da construção de novas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), o uso do solo nas áreas apropriadas, e as áreas adequadas nas quais a espécie ocorre e que estão protegidas por unidades de conservação, tais como parques nacionais e estaduais”, diz Bovo.
No mapa produzido pelos autores do estudo, os pontos pretos demarcam os lugares onde houve registro recente do pato-mergulhão; em vermelho, as áreas de adequabilidade ambiental, ou seja, aquelas que são mais propícias à sobrevivência da espécie
Pequenas hidrelétricas são grande risco ao pato-mergulhão
Em curto prazo, os efeitos diretos da ação humana sobre o habitat do pato-mergulhão são a mortalidade dos peixes, a redução da visibilidade da água e a erosão das margens de rios e lagos. O estudo detectou a previsão de 36 PCHs em zonas próximas aos locais onde a espécie habita, podendo impactar cerca de 504 km², o que equivale a 4,1% das áreas adequadas à ocorrência do pato. Considerando um raio de 20 km ao redor de localidades com registros recentes das populações, existem 20 projetos de PCHs para a Serra da Canastra/Alto Paranaíba, 14 para a Chapada dos Veadeiros e 2 para o Jalapão.
A bacia do Rio Araguari possui o maior número de indivíduos na Serra da Canastra, e as 11 PCHs planejadas para a região colocariam 18% da população global do pato-mergulhão em risco. Na norte de Goiás, a construção de novas PCHs poderia romper a conexão natural dos rios na região, comprometendo a manutenção da biodiversidade no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.
O ornitólogo Paulo Antas, coautor do projeto via Fundação Pró-Natureza (Funatura), ressalta a necessidade de se compatibilizar a geração de energia elétrica com PCHs e a proteção da espécie-símbolo das águas continentais do Brasil: “Temos a tecnologia para construir PCHs do modelo fio d´água, sem barramento, o que não afeta o rio. Há meios de integrar desenvolvimento e conservação da natureza”.
Antas também comenta sobre a redução alarmante das populações na região em que atua. Na Chapada dos Veadeiros, diz ele, os melhores números giram em torno de 45 indivíduos. No Jalapão, a contagem de agosto de 2019 resultou em 25 adultos e 8 filhotes/jovens. “Por ser rara e sinalizar locais em que o ambiente está saudável, o pato-mergulhão é uma espécie primordial para a manutenção da qualidade da vida silvestre e das populações humanas”, argumenta.
Em linhas gerais, os resultados da modelagem são preocupantes, pois mostram que há uma baixa quantidade de zonas ambientalmente propícias à ocorrência do pato-mergulhão. Além de áreas adjacentes às localidades onde a espécie ainda existe, foram identificadas três regiões potenciais: o Parque Nacional Grande Sertão Veredas e a Serra do Espinhaço, ambos em Minas Gerais, e Serra da Mantiqueira, situada na tríplice fronteira entre RJ, MG e SP.
O pato-mergulhão é uma espécie exigente: só vive em rios de águas rápidas e limpas, sem vestígio de poluição; por essa razão, é um bioindicador da qualidade da água (Foto: Adriano Gambarini)
“É importante reiterar que este estudo não manifesta rejeição à construção de PCHs”, pondera Bovo, “mas reforça a importância do licenciamento ambiental e da avaliação dos possíveis impactos ambientais para sejam minimizados ou mitigados. E ainda, quando necessário, que se lance mão de outras alternativas, sobretudo quando estamos lidando com espécies com números tão reduzidos na natureza.”.
A perda de habitat causada por barragens já foi reportada no Brasil, Argentina e Paraguai. Na Argentina, a construção da represa de Urugua-í pode ter sido a causa da extinção local da espécie. Embora o impacto de uma PCH seja muito menor do que o de uma hidroelétrica convencional, ele causa mudanças suficientes no fluxo de água para afetar uma espécie sensível.
“A alteração do ecossistema lótico (água corrente) para lêntico (água parada), após uma inundação para a construção de uma represa, elimina os requisitos ecológicos exigidos pelo pato-mergulhão – água rápida e clara”, alertam os especialistas no estudo. “Tais mudanças reduzem a disponibilidade de novas áreas para patos jovens em dispersão. Em um cenário com rios rápidos e limpos insuficientes, é improvável que esses indivíduos sejam capazes de estabelecer seus próprios territórios, o que pode aumentar o risco de extinção em uma escala local devido ao recrutamento reduzido da população.”,.
Por outro lado, a pesquisa traz um pouco de luz ao cenário atual. O grupo de cientistas acredita no investimento para a recuperação do pato-mergulhão. Gislaine Disconzi e Marcelo Barbosa, coautores do estudo via o projeto Pato-Mergulhão Chapada dos Veadeiros e o Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), respectivamente, destacam que os resultados alcançados também projetam a perspectiva de busca por novos indivíduos e populações da espécie. Na Serra da Canastra, conforme enfatizou o biólogo Wellington Viana, o trabalho visa à conscientização dos produtores rurais que, aos poucos, aprendem a manejar o meio.
São debatidas pautas como a preservação das nascentes e matas de galeria e ciliares localizadas dentro das propriedades. Com esta ação, as nascentes se mantêm e, consequentemente, o habitat do pato. “O esforço conjunto começa a surtir efeito”, diz Viana. “Há produtores que já entenderam o quão importante é cercar as nascentes. Em período de seca, por exemplo, os que não o fazem, notam que vizinhos que fazem conseguem manter as nascentes jorrando. O boca a boca acabou gerando reflexão. Alguns inclusive trabalham com o reflorestamento de áreas próximas às beiradas de rio”.
*Texto publicado originalmente em 29/07/21 no site do Mongabay Brasil
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Foto de abertura: Adriano Gambarini