
Num dia lindo de junho, durante o 2º. Festival de Aves de Porto Seguro, cerca de trinta pessoas estavam reunidas na sede da RPPN Estacão Veracel, prontas para sair e observar as aves da região, muito rica em espécies. Elas participavam de uma atividade de observação de aves – Vem Passarinhar –, quando o ornitólogo Luciano Lima, coordenador do Observatório de Aves da reserva, chamou a atenção de todos para um canto metálico que vinha da mata, nunca observado na região. De olhos e ouvidos bem treinados, ao ouvir a ave, Luciano logo desconfiou de uma espécie, mas como não tinha certeza, acionou o playbackpara conferir e o animal respondeu.
E, assim, o grupo iniciou a atividade em grande estilo já que todos puderam ouvir, ver e fotografar uma ave rara na Bahia, o sabiá-ferreiro, que certamente estava em rota de migração, mas desviou de seu caminho. “Ele ficou um bom tempo vocalizando (na foto de destaque dá pra ver um desses momentos). E a experiência foi muito especial porque era a primeira passarinhada de muitos participantes”, conta Priscila Gomes, analista ambiental da reserva, autora das fotos que ilustram este post. “Iniciar a experiência de observação de aves com um registro tão raro no estado da Bahia, foi um presente”.
Conhecido também como ferreirinho, sabiá-cinza, sabiá-azulina e sabiá-campainha, o sabiá-ferreiro pode ser encontrado facilmente nos estados do sul e sudeste do Brasil, na Argentina no Paraguai. E costuma migrar nos meses de inverno para áreas centrais do Brasil, como os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso e também Minas Gerais, no sudeste, onde o clima é mais ameno, mas não muito quente, como na Bahia. “Há apenas relatos dessa espécie no estado, na Chapada Diamantina, que datam de 1997”, conta Luciano.
Não é possível dizer o motivo exato pelo qual o sabiá-ferreiro foi parar na RPPN Estação Veracel, se ele se perdeu, se desviou o caminho porque se sentiu atraído por algo em especial, mas, sem dúvida, a conservação e a riqueza da biodiversidade da reserva podem ser apontadas como fatores importantes para esse encontro.

“O registro do sábia-ferreiro demonstra a importância de se ter em atividade um observatório de aves em áreas importantes para a biodiversidade como esta. Tais observatórios são iniciativas focadas no monitoramento de longo prazo e na conservação de aves em áreas- chave, como regiões com grande riqueza de espécies e/ou ao longo de rotas migratórias”, explica o ornitólogo. “As pesquisas e monitoramentos feitos por observatórios fornecem informações preciosas para compreendermos melhor a riqueza da biodiversidade brasileira. Com mais um detalhe importante: existem mais de cem observatórios de aves em atividade em todo o mundo e o Observatório de Aves – RPPN Estação Veracelé um dos poucos em atividade no país e o único mantido por uma RPPN”.
“A reserva já conta com o registro de 269 espécies e acreditamos que esse número continuará subindo”, ressalta Priscila. “Neste último ano, 20 novas espécies foram adicionadas à lista, sendo a última, o sábia-ferreiro”. E ela acrescenta: “Aqui, existem inúmeras espécies ameaçadas e endêmicas, razão pela qual já recebemos mais de 200 observadores somente em 2019, a maioria do exterior. Entre as espécies que despertam maior interesse estão crejoá, tiriba-grande, urutau-de-asa-branca, balança-rabo-canela e harpia. No total, são mais de 25 espécies ameaçadas de extinção que figuram nas listas estadual, brasileira e global”.
Só pra se ter ideia da riqueza dessa região, conservada pela Veracel, aqui, no Conexão Planeta, nós já falamos de algumas espécies: a Harpia foi a primeira, identificada em junho de 2018. Em setembro, viajei para conhecer a reserva e pude ver o ninho e seu filhote, bem de longe, num voo de helicóptero. Mas, no dia seguinte, o fotógrafo Zig Koch, registrou de perto e escreveu um post lindo a respeito, tamanha a emoção que o registro lhe causou: O presente da floresta. Em dezembro, foi a vez do pica-pau-dourado-grande, em risco de extinção. Saindo do mundo das aves, em março deste ano, os especialistas e estudiosos da reserva identificaram cinco espécies de mamíferos ameaçadas de extinção: Irara, gato-do-mato-pequeno, mão pelada, tapiti e ouriço-caixeiro. Que paraíso!
Agora, acompanhe pequena entrevista com o ornitólogo Luciano Lima sobre o sabiá-ferreiro, que revela ainda mais curiosidades sobre esta espécie e o comportamento das aves migratórias:
Você identificou o gênero e a idade do sabiá-ferreiro? Pelo que pesquisei, parece um macho…
Sim, trata-se de um macho jovem, com menos de um ano de vida, executando sua primeira migração. Foi possível estimar a idade com base em algumas penas das asas, que mantêm características de quando a ave ainda estava no ninho. Isso quer dizer que, após ter deixado o ninho, ela ainda não efetuou uma muda de penas completa, o que acontece nessa espécie apenas após o primeiro ano de vida.
A ave estava sozinha? A espécie costuma voar/migrar em bando?
Sim, o indivíduo foi registrado sozinho. Essa espécie não costuma migrar em bandos.
A conservação da RPPN Estação Veracel foi o que certamente atraiu o sabiá-ferreiro, mas voar fora de sua rota não é um mau sinal também, por causa do desvio de rota? Ela pode ter se perdido?
A verdade é que, como acontece com a grande maioria das aves migratórias brasileiras, não sabemos praticamente nada sobre a rota migratória do sabiá-ferreiro. Embora sejam raríssimos os registros da espécie na região Nordeste, não podemos afirmar que a ave está perdida, tendo em vista a nossa falta de conhecimento sobre a migração da espécie.
Cada registro fora da sua área reprodutiva, no Sul do país, é como se fosse a peça de um quebra-cabeça qu,e aos poucos, vai sendo montado e nos permite visualizar melhor a migração da espécie.
De qualquer forma, independente da espécie, é relativamente comum que algumas aves se percam durante a migração, indo parar em regiões onde não seriam esperadas. Isso acontece com mais frequência entre indivíduos jovens. Esses indivíduos “perdidos” são chamados pelos ornitólogos de “vagantes”.
A maior parte das aves migratórias pequenas, as que geralmente chamamos de “passarinhos”, migram durante a noite. Assim que escurece, eles alçam voo e se deslocam até o dia começar a clarear, quando pousam em algum lugar pelo caminho, que elas julguem seguro. Geralmente, não passam mais de um dia nesses locais de parada rápida, a não ser que sejam pontos estratégicos para o reabastecimento, pouco antes de cruzar grandes obstáculos como montanhas e trechos de oceano.
O sabiá-ferreiro foi encontrado no início de junho. Você ou a equipe da Estação Veracel o viram novamente? Ou será que sua paisagem por aí foi rápida?
Não registramos novamente a espécie na reserva. É possível que, já no dia seguinte, ela tenha continuado viagem rumo ao Norte em direção ao seu destino final. As informações na literatura cientifica apontam que o sabiá-ferreiro inverna em áreas de transição entre o Cerrado e a Amazônia. Existe tão pouca informação disponível sobre a espécie que essa é uma hipótese que precisa ser melhor estudada para ser comprovada.
A primeira migração é um dos maiores desafios na vida de uma ave. Imagine você, com cerca de quatro meses de vida, fazer sozinho uma viagem de milhares de quilômetros e chegar em um lugar que nunca esteve antes! É exatamente isso que acontece com as aves.
São muitos os desafios antes e durante a migração. É preciso se preparar muito bem e acumular “combustível” antes e durante da viagem, além de estar atento a predadores. Esse indivíduo em particular parecia muito saudável. Estava vocalizando bastante e torcemos para que ele consiga vencer esse primeiro grande desafio de sua vida.

Fotos: Priscila Salles Gomes / RPPN Estação Veracel