Um chamado durante a noite mobilizou toda a equipe do Instituto Tamanduá. O incêndio no refúgio ecológico Caiman já tinha sido apagado, mas as equipes da fazenda estavam em campo em uma busca ativa por animais queimados. No dia 22 de agosto do ano passado, mais de 15 após a passagem do fogo, um dos funcionários avistou um tamanduá–bandeira, encolhido próximo à uma área de vegetação mais fechada. Ao perceber que o bicho estava com queimaduras pelo corpo, acionou a coordenadora do instituto, a médica veterinária Flávia Miranda, que imediatamente montou um grupo de resgate e partiu para a região, que fica no Pantanal sul no município de Miranda em Mato Grosso do Sul.
O resgate foi feito à noite mesmo. A veterinária Maíra Prestes preparou o dardo com anestésico e se embrenhou no mato para silenciosamente se aproximar do animal ferido. “A captura dele foi por volta das 11 da noite, foram 3 horas e meia até chegar lá. Chegamos na borda da mata e foi complexo pelo horário, sem luz, tinha uma lâmina de água e a gente andava na vegetação e afundava.
Luizinho, como acabou sendo batizado o tamanduá, estava bem estressado, estava com muita dor nas patas. A gente chegou e ele estava lambendo as patas. Quando percebeu a aproximação, se defendeu, bem bravo. Estava bem estressado”, relembra Maíra.
Ainda na Caiman o animal recebeu os primeiros atendimentos. As patas tiveram queimaduras de segundo e terceiro graus, a base da cauda estava com os pelos chamuscados, o que indica que provavelmente ele andou pelas brasas quentes. “Nas feridas as larvas de moscas estavam entrando na região das falanges e das unhas já infeccionadas. Nós fizemos a limpeza e medicamos a cada 36 horas ou 48 horas, dependendo da umidade do dia. A gente fazia uma pequena sedação e a limpeza das feridas. Ele não tinha exposição óssea, mas as patas estavam muito queimadas”, diz Maíra.
Muito desidratado e fraco, da Caiman, Luizinho foi levado para a base de campo do Instituto Tamanduá na Fazenda Aguapé, localizada em Aquidauana. Ali ficam os recintos de reabilitação do Projeto Órfãos do Fogo, criado em 2020 para cuidar de tamanduás vítimas de incêndios e atropelamentos no Pantanal.
Tratamento e recuperação
Eu visitei o projeto várias vezes nos meses de setembro, novembro e dezembro. Sempre pedia para ver o Luizinho. Logo que chegou, ainda usando as botinhas de curativo nas patas queimadas, ele não gostava muito da aproximação de pessoas.
Lembro que numa tarde de forte calor, cheguei perto da tela de proteção do recinto e pude ver o Luizinho deitado na posição característica dos tamanduás-bandeira, quando ele se cobre com a cauda e fica praticamente camuflado. Com um jeitão de ‘poucos amigos’, ao nos perceber ele logo se cobriu e levantou o focinho tentando farejar quem eram aqueles ‘mamíferos’ se aproximando dele. Decidimos deixá-lo em paz e acompanhar de longe o seu processo de recuperação.
Luizinho, um jovem macho, é um tamanduá de vida livre, não está habituado à presença de pessoas e os cuidados no cativeiro foram redobrados para evitar aumentar o estresse do animal. A começar pela comida. Os tamanduás se alimentam de cupins e formigas, mas sem condições de andar pelos campos, ele recebia uma mistura de farinha de insetos e ração.
Já o tratamento das feridas de queimaduras era bem desafiador. As médicas veterinárias aplicavam antibióticos, pomadas cicatrizantes, medicação para amenizar a dor e hidratavam com soro. O Luizinho estava muito estressado e o controle de estresse durante o tratamento foi um dos maiores desafios, porque se o animal se irrita muito, além de se machucar dentro do recinto, poderia não se alimentar e vir a óbito.
O tamanduá precisou ficar “internado” no recinto de recuperação, um pouco menor e próximo à sede do projeto, até que as patas cicatrizaram e depois foi transferido para um ambiente maior, de imersão, para ficar mais livre e longe das pessoas. Essa transferência foi fundamental para que Luizinho se acalmasse. Até os cuidados foram feitos à distância. Usando um dardo, Flávia Miranda aplicou antibiótico sem precisar sedá-lo e manuseá-lo.
Viagem de volta para a liberdade
Nos incêndios de 2024, sete tamanduás-bandeira foram resgatados pelo Instituto Tamanduá no Pantanal sul, mas apenas o Luizinho sobreviveu.
Quatro meses após o resgate, a equipe instalou nele uma mochila com rádio. É uma ação que exige sedação, e por isso, um cuidado redobrado. O animal foi anestesiado e em pouco mais de 20 minutos já estava com a mochila. Esse equipamento foi desenvolvido mais de quinze anos atrás pela Flávia, em parceria com uma empresa norte-americana que produz rádios de monitoramento de fauna. Na época eles testaram diversos modelos até chegar no atual, já usado em animais de outros projetos.
A mochila não incomoda e nem atrapalha a mobilidade do tamanduá-bandeira. O equipamento emite sinais de GPS captados por satélite que permitem o rastreamento e monitoramento. Luizinho ficará com ele por dois anos.
2025 começou trazendo esperança. Luizinho está com as patas completamente recuperadas, ganhou peso e já recebeu a sua mochila com rádio.
Chegou a hora de ganhar a liberdade. Mais uma vez a equipe do Instituto Tamanduá montou uma operação de transferência do animal da base na Aguapé até a Caiman, onde ele foi resgatado. São aproximadamente três horas de viagem pela BR-262, atravessando o Pantanal, seguindo do município de Aquidauana até Miranda, depois mais 35 km de estrada de terra até chegar ao refúgio ecológico.
Os pesquisadores saíram ao amanhecer para evitar o sol forte e o calor, que são muito desgastantes.
Além de ser um sobrevivente, Luizinho também foi escolhido para ser o genoma de referência para todos os tamanduás-bandeira no mundo. Amostras de sangue dele foram coletadas e em parceria com o Instituto Leibniz de Berlim, na Alemanha, e lá será feito o seu mapeamento genético.
“Ele vai ser o tamanduá símbolo do mundo inteiro, referência em genoma para a espécie. Hoje a genética está muito avançada e temos usado essa ferramenta para a conservação. A análise de todos os genes desse animal servirá de referência para toda a espécie em vida livre. Temos tamanduás em toda a América Latina e o Luizinho foi o escolhido para ser a referência mundial”, revela Flávia.
A recorrência dos incêndios e o desmatamento estão reduzindo o hábitat e impactando a sobrevivência dos tamanduás. A recuperação de cada indivíduo é importante para garantir a existência de uma população saudável em vida livre.
Luizinho ganhou a liberdade no mesmo local onde foi resgatado. Voltou pra casa. Ver o animal recuperado e saudável sair lentamente da caixa de transporte, farejar o ambiente e reconhecer seu lugar na natureza é um misto de alívio e gratidão. Foi uma luta que envolveu diferentes instituições para cuidar desse sobrevivente.
Na Caiman, onde o Instituto Tamanduá está começando um trabalho de levantamento de fauna, monitoramento e cuidados com os tamanduás-bandeira, Luizinho encontrou a segurança para recomeçar. Um belo presente para iniciar o ano de 2025.
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Foto de abertura: Devian Zutter / Instituto Tamanduá