Por Bernardo de Araújo*
Foi Hope quem primeiro ousou se aproximar de Juvenal. Os dois se encontravam em lados opostos de uma disputa territorial desde que a família de Hope enrolou suas caudas em volta dos galhos daquela floresta urbana de 4 mil hectares no coração do Rio de Janeiro. A chegada de seu clã contestou o reinado de oito anos de Juvenal e seu grupo no Parque Nacional da Tijuca.
Bugios-ruivos (Alouatta guariba) são, para padrões primatas, habitantes pacíficos da Mata Atlântica — gentis comedores de folhas que também se alimentam ocasionalmente de frutas. Mas isso não os coloca acima de disputas por território. Cerca de duas semanas antes, Juvenal e outro macho tentaram atacar o líder do grupo de Hope, Max. Os bugios seguiram trocando roncos ameaçadores desde o incidente.
Naquele dia, porém, Hope parecia buscar a paz. Ela tocou Juvenal e — para o deleite dos pesquisadores que observavam a cena — ele aceitou o gesto. Os grupos de bugios pareceram, naquele momento, ter chegado a um entendimento.
O papel dos humanos nesse drama, no entanto, é mais extenso.
Há alguns anos atrás, bugios-ruivos eram considerados uma espécie vulnerável pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) — a agência brasileira responsável pela gestão de áreas protegidas e da biodiversidade — mas “pouco preocupante” de acordo com a Lista Vermelha da IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza). Tudo mudou quando, em dezembro de 2016, os números de bugios-ruivos começaram a despencar; eles se tornaram raros em muitas florestas e desapareceram completamente de outras. A espécie está agora entre os 25 primatas mais ameaçados do planeta.
A reintrodução de bugios — incluindo Juvenal, Hope e Max — conduzida pela organização Refauna no Parque Nacional da Tijuca é parte de um esforço monumental para resgatar a espécie. Gestores de fauna de todo o Brasil organizaram o primeiro programa de manejo populacional do país — uma iniciativa que conecta instalações de cativeiro com especialistas capazes de reintroduzi-los de volta nas florestas. É um projeto ambicioso que só foi possível graças à produção de uma vacina contra a doença que matou bugios aos milhares: a febre amarela.
De “caindo pelo ladrão” a quase extintos
Quando Zelinda Hirano, professora da Universidade de Blumenau, começou a trabalhar com bugios em 1991, eles não estavam em perigo.
“As pessoas aqui diziam que tinha bicho ‘caindo pelo ladrão’”, lembra ela. “Eles estavam por todas as áreas. Eu trabalhei numa área muito linda de floresta com 59 animais, e fiquei com eles por 32 anos. Então veio o surto de febre amarela. Morreram todos.”
Hirano é a criadora do Projeto Bugio no estado de Santa Catarina, mas não começou sua carreira como uma conservacionista. Vinda originalmente de São Paulo, ela trabalhava inicialmente com bioquímica médica. Depois de se casar, Hirano mudou-se para a pequena cidade de Indaial, onde vivia ouvindo esses roncos altos e guturais vindo das matas ao redor da cidade.
“Aí eu falava ‘gente, que bicho é esse?’ e ‘por que que grita tanto?’”, ela lembra.
Certa manhã, ela decidiu seguir esses sons estranhos até um morro próximo. O chamado a colocou frente a frente com uma “coisa vermelha fabulosa”, ela lembra. Embora apelidados de “bugios-ruivos”, sua coloração na verdade varia de marrom a vermelho escuro.
Poucos pesquisadores estudavam bugios-ruivos quando Hirano começou a trabalhar com eles. Naquela época, os maiores problemas da espécie eram a destruição do habitat, fragmentação e seu ocasional encontro com o mundo humano. Estando constantemente em bordas de floresta, bugios são vulneráveis a todo tipo de acidentes, como serem atingidos por veículos, eletrocutados em cabos e postes elétricos ou atacados por cães.
Em 2008, no entanto, uma ameaça mais séria surgiu no Rio Grande do Sul. A febre amarela é uma doença viral hemorrágica transmitida por mosquitos do gênero Aedes. Ela pode ser fatal para humanos, mas é absolutamente devastadora para muitos outros primatas. Especialmente para bugios.
A epizootia — como são chamadas as epidemias animais — de 2008-2009 matou milhares de bugios-ruivos. De acordo com um relatório do ICMBio, pesquisadores e autoridades catalogaram 1.183 bugios mortos, mas o surto provavelmente matou muito mais animais. Algumas populações, como na região de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, declinaram em 75%, e a espécie desapareceu completamente de metade dos fragmentos que habitava na floresta.
Mas foi no final de 2016 que outra epizootia de febre amarela se espalhou por toda a distribuição geográfica da espécie. Embora seja difícil avaliar a extensão total desse segundo surto — simplesmente não existiam dados suficientes sobre as populações de bugios antes dele —, os poucos lugares onde havia dados pintam um quadro sombrio. A reserva particular Feliciano Miguel Abdala, em Caratinga, Minas Gerais, por exemplo, estimou uma queda populacional de 86,6%.
“A mata, ela fica silenciosa”, diz Hirano. “O mais triste é a população de humanos chegar para você e dizer ‘nossa, não tem mais nenhum bicho.’” Segundo ela, a próxima avaliação do ICMBio classificará a espécie como “em perigo”.
Um plano coordenado
O dever do ICMBio vai além de fornecer avaliações de risco. A agência propõe diretrizes para a conservação de muitas espécies ameaçadas no Brasil, chamadas de Planos de Ação Nacional para a Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção (PANs). Os primatas da Mata Atlântica têm seu próprio PAN, e nele se encontrava o proverbial trunfo para a salvação dos bugios-ruivos.
Quando conservacionistas se reuniram para discutir a situação dos bugios, eles levantaram a ideia de implementar um programa nacional de manejo populacional.
“Essa é uma ação usada como último recurso”, diz Rafael Rossato, do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros (CPB). A possibilidade de um manejo populacional em larga escala faz parte do PAN, mas jamais havia sido feito antes.
O programa conectaria instalações de cativeiro em todo o país com especialistas capazes de realocar os animais para áreas onde as populações haviam desaparecido ou declinado.
Ainda assim, Rossato observa que este tipo de manejo “envolve uma série de riscos e tem chance de não dar certo”.
Para justificar tais riscos, uma espécie precisa enfrentar a perspectiva de um declínio severo ou extinção dentro de 30 anos. Em 2022, um painel de especialistas, incluindo representantes do ICMBio, constatou que os bugios-ruivos cumpriam esse requisito.
Lançado em 2023, o programa de manejo populacional do Alouatta guariba é o primeiro do tipo no Brasil. O programa é supervisionado por um comitê coordenado por Hirano e inclui representantes do CPB, gestores de fauna, veterinários, geneticistas e representantes de todos os oito estados brasileiros onde a espécie ocorre.
Os bugios-ruivos são uma espécie geneticamente diversa — eles costumavam a ser até divididos em duas subespécies. Para respeitar diferenças genéticas regionais, o programa dividiu a área de distribuição dos animais em cinco áreas de manejo distintas.
A área de manejo mais ao sul do país inclui também a única população de bugios-ruivos na Argentina, onde restam de 20 a 50 animais. O programa planeja translocar macacos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina para reforçar esta população.
Mas antes que conservacionistas pudessem tentar qualquer translocação, os animais tiveram que ser protegidos contra a febre amarela.
“Até recentemente tem sido identificada a circulação do vírus nos estados do Sul. Ele continua ali na mata, mas não tomou uma proporção de surto novamente, até porque isso depende de uma população vulnerável de animais, e isso demora a se restabelecer”, diz a Dra. Silvia Bahadian, veterinária do Centro de Primatologia do Rio de Janeiro (CPRJ).
Em 2018, Bahadian, junto com o Dr. Alcides Pissinatti do CPRJ e o Dr. Marcos Freire da Fundação Oswaldo Cruz, começaram a pesquisar uma maneira de adaptar a vacina contra a febre amarela — desenvolvida para uso humano — para os bugios-ruivos.
Em julho de 2022, Hirano coordenou um dos testes dessa adaptação em bugios vivos. Todos os 77 animais vacinados vivendo em cativeiro em Santa Catarina desenvolveram anticorpos contra o vírus.
Hoje, o protocolo do programa determina que todo bugio-ruivo deve ser vacinado antes de ser translocado.
No campo de batalha
Em setembro de 2015, antes do segundo surto de febre amarela, o Refauna já estava ocupado reintroduzindo bugios-ruivos no Parque Nacional da Tijuca — os primeiros bugios a tocar aquela floresta urbana em mais de um século. A organização já havia trazido cutias (Dasyprocta leporina) de volta ao parque, mas os primatas estavam se mostrando um desafio maior que os roedores que os precederam.
Alguns dos macacos tinham um passado de cativeiro ou semi-domesticado, e acabaram tendo que ser devolvidos ao cativeiro após buscarem contato constante com visitantes. Os pesquisadores também tiveram problemas com equipamentos de rastreamento, que falhavam ou, em um caso específico, feriram a perna de um animal, levando a uma intervenção veterinária custosa.
“A gente acabou com uma população-fonte de só dois indivíduos, o casal reprodutor: Kala e Juvenal”, diz o Dr. Marcelo Rheingantz, diretor-executivo do Refauna e biólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Em 2016, Kala daria à luz e criaria seu primeiro bebê, um sinal de que, mesmo com problemas, os esforços do Refauna estavam dando resultados. Ainda assim, uma família de três está longe de ser uma semente confiável para uma população sustentável.
O plano do Refauna sempre foi reunir e liberar vários grupos de bugios. O surto de febre amarela em 2016, no entanto, forçou a iniciativa a pausar suas atividades.
Felizmente, Kala e Juvenal fizeram mais do que apenas sobreviver aos anos seguintes. Protegido pela mancha urbana do Rio de Janeiro, o parque da Tijuca escapou do surto, e o que começou como um casal e um bebê cresceu para um grupo de seis indivíduos.
Em 2023, os conservacionistas finalmente trouxeram mais bugios para o parque, incluindo Max e Hope, recém-vacinados após sua estadia no CPRJ. Eles foram inicialmente alocados em um recinto de aclimatação — um grande cercado de arame na floresta.
“Nós usamos o recinto para apresentar os animais ao ambiente da floresta”, diz Matheus Sette e Camara, coordenador da reintrodução dos bugios. “Eles precisavam ser apresentados aos cheiros, aos barulhos e aos outros animais — inclusive os outros bugios.”
Mesmo com experiência prévia, a segunda translocação se mostrou complicada. Desta vez, a equipe abandonou os equipamentos de rastreamento por rádio e se contentou em encontrar os bugios do jeito antigo: com paciência e binóculos.
O novo grupo também sofreu duas perdas antes de ser liberado na natureza. Um filhote morreu de pneumonia durante o período de aclimatação, e uma jovem fêmea foi devolvida ao CPRJ após ser ostracizada do grupo uma semana antes da abertura das portas do recinto.
Os conservacionistas finalmente liberaram os seis bugios restantes em janeiro. Um momento de celebração para todos os envolvidos no projeto — exceto para o grupo de Juvenal.
“Eles encontraram o grupo de Juvenal fora do recinto, e parece que foi uma surpresa para todos”, diz Camara. “Mas três dias depois, o Juvenal e outro macho voltaram. Eles vieram silenciosamente direcionados para bater no Max. O Max saiu correndo e as fêmeas se esconderam dentro do recinto de aclimatação, que ainda estava aberto na época.”
Os pesquisadores acompanharam esses embates por algumas semanas, até que o gesto pacífico de Hope pareceu marcar o fim das hostilidades. Ainda assim, outros riscos se fizeram presentes. Mel, outra fêmea, caiu de uma árvore e quebrou o braço. A equipe foi forçada a removê-la da floresta junto com seu filhote. Hoje, quatro animais compõem o segundo grupo de bugios-ruivos do Parque Nacional da Tijuca.
Apesar de todos os desafios, bugios vivem no parque há quase uma década, e a experiência ali ajudou a instruir novas iniciativas de translocação.
Em Florianópolis, capital de Santa Catarina, a Dra. Vanessa Kanaan — diretora-técnica do Instituto Espaço Silvestre, em Santa Catarina — está conduzindo outra reintrodução de bugios. Ela já liberou três grupos no Parque Estadual do Rio Vermelho e em breve translocará mais bugios para outro local: a Lagoa do Peri, ambos próximos de Florianópolis. Uma pequena população na Serra da Cantareira, na cidade de São Paulo, também está recebendo novos bugios.
Uma esperança para o futuro
“É muito recompensador ver um animal reintroduzido”, diz Bahadian, acrescentando que mesmo os melhores cativeiros “não chegam nem perto de oferecer aos bugios o que deveria ser sua vida normal, com árvores altas, grandes.”
Reintroduções — essa prática de conservação desafiadora que integra tantas habilidades diferentes — trazem esperança para mais do que apenas indivíduos animais. Ela também pode ajudar a restaurar ecossistemas inteiros.
“[O programa nacional de manejo é] uma oportunidade de unir a experiência de manejo em cativeiro — e a possibilidade de dar um destino aos animais resgatados — com a necessidade de restaurar populações selvagens que foram reduzidas ou extintas”, diz Rheingantz.
* Esta reportagem foi publicada originalmente no site da Mongabay Brasil em 25/7/2023
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Foto (destaque): Marcelo Rheingantz (Max, o líder do segundo grupo de bugios-ruivos do Parque Nacional da Tijuca)