A cidade de Bonito, no Mato Grosso do Sul, é uma das belas e promissoras regiões para a prática e o desenvolvimento do ecoturismo. Nesse contexto, estão seus rios – cristalinos e transparentes -, que são fonte de rica biodiversidade e um dos maisimportantes atrativos turísticos do país.
Mas o vereador Irson Casanova (DEM) parece desconhecer essas belezas tão únicas, empenhado que está em condená-las e sem levar em conta que cerca de 80% da população vive do turismo, portanto, depende de suas águas preservadas.
Ele alega estar sendo movido pela preocupação com o risco de desabastecimento da cidade, como aconteceu no ano passado. “Em situação de emergência ou calamidade hídrica”, destaca.
Claro que a situação merece atenção, mas está sob controle, por ora, porque a Sanesul cavou três poços artesianos que provém água para o município, e conseguiu evitar uma nova crise.
Mas, focado em seu objetivo, em maio deste ano, Casanova apresentou projeto de lei que propunha a liberação da captação das águas de quatro importantes rios do município – Anhumas, Formoso (na foto, acima), Formosinho e Miranda – para consumo da população.
Moradores, ambientalistas, vereadores, entre outros defensores da preservação ambiental em Bonito, logo reagiram: criticaram o projeto, que não levava em conta os impactos negativos – alguns irreversíveis – e, ainda, a possibilidade de liberação da captação para a criação de açudes na região rural.
A pressão foi grande e o projeto não foi aprovado. Mas Casanova não sossegou e, no último sábado, 16/10, anunciou que seu PL 40/2021 havia sido incluído na pauta da sessão de votação da Câmara dos Vereadores, na segunda-feira (18), a partir das 19h30.
Ele resgatou seu projeto de lei e propôs a realização de um estudo técnico para viabilizar a captação de água ‘nos rios de Bonito’, sendo o Formoso o principal rio da região e o que mais teria impactos.
Provocou revolta instantânea e, também, uma grande mobilização que se estendeu até o dia da votação, promovida não só por moradores, guias, organizações e ambientalistas, mas também por coletivos que reúnem pessoas de interesses diversos, como o Unidos Serra da Bodoquena.
Todos engajados – ao vivo e nas redes sociais – para rebater o PL de Casanova.
O Comdema – Conselho Municipal de Meio Ambiente convocou reunião na segunda-feira, com a presença de vereadores, secretários de turismo e meio ambiente, e todos os interessados no assunto.
O objetivo era debater a proposta e conseguir tirar o PL da pauta daquele dia para que fosse possível consultar a população. Foi em vão. Casanova ‘bateu o pé’ – estava certo de que ia ganhar! – e a maioria dos vereadores presentes decidiu manter o projeto na sessão.
A impressão que ficou foi a de que os vereadores estavam a favor do projeto e que, então, as águas cristalinas do Rio Formoso e de outros rios de Bonito, a partir daquele dia, estariam irremediavelmente condenadas. Mas a sorte não estava do lado do autor do PL 40/2021, que foi derrubado por 7 votos a 3.
Com mais um detalhe: no final da sessão, a vereadora Luísa Aparecida Carvalho de Lima (MDB) “imediatamente protocolou um pedido, junto à Câmara, para que não fosse aceito um novo projeto, do mesmo vereador, de teor semelhante, até o final deste mandato, ou seja até o final do ano que vem”, contou Angela Kuczach, ambientalista e diretora executiva da Rede Nacional Pró–Unidades de Conservação.
“Isso é possível porque não se pode voltar com uma pauta mascarada num prazo determinado, porque o voto é soberano”, explica a ambientalista.
Mobilização popular
Como contei acima, tão logo a notícia sobre a votação correu pela cidade, a mobilização popular se alastrou.
Os moradores não haviam sido consultados sobre ele. Grave! Está na lei! Além disso, para os ativistas e especialistas, era notória a falta de critérios do projeto e de embasamento técnico do tipo de estudo que o vereador propunha, o que certamente geraria grandes impactos negativos na região.
Apesar da tensão dos últimos dias e da manutenção do projeto de lei na pauta de segunda – parecia certa a vitória de Casanova -, Angela, da Rede Pró-UC, declarou que, por um lado, até foi positivo o PL já ter sido votado.
“Se tivéssemos conseguido adiar a votação, ainda estaríamos brigando. Agora, ele perdeu, acabou! E eu entendo que a mobilização foi fundamental para chegarmos a esse resultado”.
A executiva destaca que ONGs e coletivos locais fizeram articulações importantes junto aos vereadores aliados, debateram o assunto e deixaram claro que não aceitavam um projeto sem a participação da população. “Isso fez muita diferença, inclusive com as pessoas que estavam na Câmara durante a votação”.
O coletivo Unidos Serra da Bodoquena, que reúne mais de 200 participantes, entre eles moradores da região, acadêmicos, ambientalistas, guias, políticos, empresários, jornalistas, todos interessados na preservação ambiental da cidade, propôs o debate e ajudou a ampliar a mobilização entre os moradores.
A Fundação Neotrópica do Brasil, que há mais de dois anos realiza o monitoramento dos rios de Bonito – levanta informações sobre o desmatamento em mata ciliar, em áreas de nascente, analisa o turvamento das águas etc -, fez um resumo com esses dados para rebater o projeto de Casanova e o protocolou na Câmara.
O Observatório Justiça e Conservação organizou uma live no Instagram (disponível neste link), que reuniu três especialistas: a gestora ambiental da Fundação Neotrópica, Fernanda Cano, o geólogo Paulo Cesar Boggiani (USP) e a espeleóloga Lívia Medeiros Cordeiro.
“Essa live foi muito interessante porque muita gente de Bonito participou, a cidade acompanhou”, destaca Angela.
Além disso, os integrantes do recém-criado movimento Bonito por Natureza – que reúne a Fundação Neotrópica, o Instituto Raquel Machado, Observatório Justiça e Conservação, a Rede Nacional Pró-UC e o Instituto SOS Pantanal – produziram nota técnica e de posicionamento e a protocolaram na Câmara Municipal.
“A mobilização popular foi uma ação coordenada, articulada e ágil em prol do Formoso. E eu entendo que isso foi fundamental porque político nenhum gosta de se expor ao público. Com tamanha visibilidade que o assunto ganhou, não ia ser mais interessante votar a favor do PL”, finaliza Angela.
Risco para a imagem da cidade
O biólogo José Sabino, professor da Universidade Anhanguera (Uniderp), de Mato Grosso do Sul, doutor em ecologia e coordenador do Projeto Peixes de Bonito (também autor do blog Sapiens e Outros Bichos, aqui, no Conexão Planeta) destaca que “estudos técnicos são importantes porque, por princípio, ajudam a ampliar o conhecimento da região. Mas a questão, neste caso, é a falta de abrangência”.
“Um estudo técnico sério tem que ser tecnicamente abrangente e ter uma boa validação da comunidade cientifica, não pode ser um estudo qualquer, que envolva apenas hidrologia. Tem que levar em conta a biodiversidade, os ciclos anuais, tem que olhar para as questões de risco de interferir em processos naturais como a piracema, por exemplo. O que dá o gatilho biológico pra que ocorra a piracema é o volume de água. Se você não tem vazão no rio os peixes não sobem e você pode comprometer a reprodução dessas espécies!”, alerta.
E Sabino ainda chama atenção para este trecho do texto do projeto de Casanova: “O estudo técnico e de impacto deverá ser conduzido por técnicos habilitados, de forma rigorosa, imparcial e transparente e abranger todo o processo de estudo até a viabilidade da utilização da água”.
“O texto já implica ‘a viabilidade da utilização da água’, em vez de dizer ‘viabilidade ou não da utilização da água’. Teria que ter uma ressalva”, analisa. E vai além:
“É possível fazer um estudo técnico? Sim! Mas o grande risco que existe, neste caso, é para a imagem de Bonito. Imagine o Rio Formoso, que é um rio cênico, que dele dependem sete mil empregos diretos da cadeia produtiva do turismo na região de Bonito. Pode? É correto? É ético? É adequado fazer isso? É ruim para a imagem do município. Há soluções mais simples do que tirar água dos rios”.
Os cursos d’água rios localizados nas bacias hidrográficas dos rios Formoso, Prata e Peixe, nos limites de Bonito, são considerados rios cênicos, ou seja, protegidos por duas leis estaduais: n° 2.223, de 11de abril de 2001, e n°1.871, de 15 de julho de 1998.
O que Bonito quer para o futuro?
Na semana passada, antes do alvoroço causado pelo vereador Casanova, os integrantes e apoiadores do movimento Bonito por Natureza estavam envolvidos com a divulgação do 1º Encontro de Turismo e Conservação de Bonito, que acontecerá na próxima sexta-feira, 22/10, das 15h às 17h30h (horário de Brasília) – em Bonito, às 14h -, na Câmara Municipal, e será transmitido ao vivo pela página do Observatório Justiça e Conservação no Facebook.
Isso, de alguma forma, pode ter favorecido a mobilização contra o PL do vereador, já que eles estavam em comunicação permanente.
Este primeiro evento, é realizado pelo Instituto Raquel Machado, coletivo Unidos Serra da Bodoquena, Observatório de Justiça e Conservação, Fundação Neotrópica e SOS Pantanal, com o apoio do Onçafari, da Fundação SOS Mata Atlântica, da Rede Pró-UC, do Instituto Homem Pantaneiro e da Abrampa – Associacao Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente, e marca o lançamento oficial do movimento.
O objetivo é reunir autoridades locais (prefeito e secretários), vereadores, senadores da República – como Simone Tebet, que já confirmou presença -, representantes do governo estadual, empresários locais e especialistas para que dialoguem sobre o futuro da região e como a conservação da natureza pode colaborarcom a economia e a qualidade de vida na região.
Nada mais propício depois da vitória na Câmara Municipal, contra o PL do vereador Casanova e os interesses que ele pode representar. E também neste momento em que a agricultura – em especial a monocultura de soja – avança sobre a cidade com rapidez e de forma violenta, burlando leis, destruindo a vegetação, matando animais silvestres, turvando rios…. destruindo a vida.
Muito triste e preocupante ver isso acontecer numa cidade que, há cerca de 30 anos, criou um plano visionário de ecoturismo, amparado por políticas públicas, que transformou a cidade em capital do turismo de natureza no Brasil, como bem lembra Angela, da Rede Pró-UC.
Devido a esse pioneirismo, quando falamos de Bonito, naturalmente pensamos em ecoturismo. “Isso não acontece com cidades que possuem paisagens muito semelhantes, como Jardim e Bodoquena”, ressalta a ambientalista. Que são lugares fantásticos em atrativos turísticos também.
Mas, de uns anos pra cá, em geral, as administrações de Bonito têm permitido “o avanço desmedido da fronteira agrícola em cima das áreas naturais. Isso não acontece ao lado ou próximo, mas em cima dos banhados, que estão sendo drenados, os rios estão ficando turvos, não existe a prática de curva de nível, então o assoreamento é comum, deixando os rios lamacentos”, conta. “A destruição está acontecendo por todo o país, mas em Bonito é surreal”, define ela.
Como solução, tanto Angela como o biólogo José Sabino apontam o Zoneamento Ecológico Econômico, “uma ferramenta de governança ambiental que indicaria a vocação de cada área, com vistas à proteção e restringindo o uso do solo”, explica ele, que ainda destaca: “Esta é uma guerra política e também econômica muito forte, e o lado mais forte é o que está capitalizado”.
Para a ambientalista, “o zoneamento ajudaria a definir até onde vai uma atividade, para fazer valer a lei dos rios cênicos, a lei da mata ciliar, a lei da Mata Atlântica e criar uma série de amparos legais para preservar áreas naturais”.
Por isso, este é um dos temas da pauta do encontro de lançamento do movimento Bonito por Natureza, na próxima sexta-feira. Acompanhe a transmissão ao vivo pela página do Observatório da Justiça e Conservação no Facebook.
Que desse encontro saiam propostas e ações que ajudem a garantir a preservação desta cidade tão linda para que ela continue sendo considerada a capital brasileira do turismo de natureza. Aqui e no mundo.
Foto: José Sabino/Natureza em Foco
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