Era 22 de maio de 2020. A angústia da pandemia batia a porta de todos. A boa nova me veio pelo whatsapp. Peter Crawshaw, amigo de longa data, me fazia um convite: revisar seu livro de memórias, um projeto sobre o qual ele se debruçara durante anos.
Conversamos por muito tempo, pois as conversas com ele eram sempre assim: uma história emendada à outra, temperada com risadas e música. Era um misto de honra e de extrema responsabilidade aceitar o convite.
Peter não era “apenas” um amigo. Era uma referência, um desbravador, por trilhar sem guia um caminho ainda não percorrido, o da pesquisa científica com onças-pintadas no Brasil, na década de 1970.
Ele dizia ter sido obra do destino: no dia em que eu nasci ele se encontrava com o grande George Schaller no Pantanal para iniciar o estudo que seria a base para todos os estudos com onças feitos por aqui, e que mudaria o rumo da vida dele.
Nascido no estado de São Paulo, apesar do nome importado, Peter descobriu a natureza por meio da caça. Eram outros tempos…
Aos 12 anos trocou o relógio por uma espingarda pica-pau para caçar patos. Aos 14, mudou-se para Uruguaiana, na fronteira com a Argentina, onde o pai administrava uma estância de criação de gado. Ah, como ele amava estar no mato! Entendeu logo que viera ao mundo para trabalhar pela vida, e não pra ver prazer na morte.
Desde criança gostava de bichos e de música. Aprendeu a tocar violão cedo e nas noites com a família cantava canções antigas ou os sucesso da Jovem Guarda. Virou membro de uma banda que animava bailes do Rio Grande do Sul.
Até tentou parar de estudar e ganhar dinheiro aos 18, mas por insistência da mãe foi para o cursinho pré-vestibular. Entrou no curso de biologia. Sorte dos biomas brasileiros…
Na maior planície alagável do mundo, Peter aprendeu com Schaller, uma lenda mundial da conservação, e também com a natureza. Ouvia os sons dos macacos, acompanhava o voo dos pássaros, as floradas dos ipês, o ciclo de vida dos jacarés que tanto o encantaram.
Durante anos em que juntos pesquisaram o maior felino das Américas, em tempos em que não havia GPS, computador, veículos 4×4, nem armadilhas-fotográficas, viu filhotes chegarem ao mundo e onças serem mortas por pura crueldade.
Ele ficava destroçado. Mas, em vez de afundar-se no chão do desespero e da desistência, erguia os olhos pro céu e se guiava pelas estrelas, nas cavalgadas noturnas pelo Pantanal.
Passaram anos, cheias e estiagens. Quanta informação ele guardou em seus caderninhos, com desenhos e mapas para alimentar as lembranças. Estão lá os relatos do dia em que ele voou com uma onça-parda solta na cabine de um avião para tentar devolvê-la à natureza, a emoção de ver o Pantanal de cima, sobrevoando rios e vales com um ultraleve, detalhes de cada captura.
Um homem com uma história larga e um coração assim também. Imenso em sua generosidade, ele partilhou conhecimento com dezenas de outros pesquisadores, no Brasil e no exterior, e dividiu comigo um pouco de sua jornada na última entrevista que concedeu (assista no final deste post).
Preocupado com a situação do Pantanal após os incêndios devastadores do ano passado, ele viajou para lá. Quis ver com os próprios olhos o tamanho da destruição. E, mesmo assustado, ferido, não perdia a esperança de ver cada ecossistema preservado.
Me disse, ao voltar: “Não é só a onça, o jacaré. É o que eles representam. São esses animais símbolos de algo maior que a gente. É a vida na Terra e o que ainda tem de mais selvagem. O homem não é mais do que todos eles”.
Para Peter fazer ciência era natural, tão encantador quanto a vastidão encharcada do Pantanal ou a imponência das Cataratas do Iguaçu, onde também trabalhou.
Passou noites e noites em cima de árvores para localizar os felinos. Ele chegou a capturar onças com mais de 100 kgs, mas foi levado por um vírus minúsculo, invisível. Faleceu, engrossando as estatísticas das vítimas da Covid-19.
Deixa uma lacuna tão grande quanto sua capacidade de descobrir, seu prazer de ensinar, seu talento para fazer desse um mundo melhor.
Foto: Banco de Imagens Panthera (registro de 2011, na Fazenda Sao Bento, Corumbá, MS, durante captura de onça-pintada para monitoramento via GPS-colar de projeto liderado pela ONG Panthera)
Edição: Mônica Nunes
Leia também:
– Pioneiro na pesquisa e conservação da onça-pintada, Peter Crawshaw morre vítima da covid-19
– Isa e Fera aprenderam a ser selvagens
– Histórias da Terra (blog que Laís Duarte assina com o fotógrafo Adriano Gambarini aqui, no Conexão Planeta)
Pessoas assim que fazem a diferença e são necessárias.
Que seu legado seja bem praticado.
Esteja bem.