Todo ano, pelo menos uma centena de banhistas e pescadores são vítimas de acidentes – extremamente dolorosos – com um peixe peçonhento conhecido como niquim, peixe-sapo ou peixe-pedra (Thalassophryne nettereri). Ele habita as águas rasas com fundo de cascalho ou lodo, entre o mar e a água doce de estuários ou lagoas costeiras, desde o Espírito Santo até o litoral amazônico.
O niquim costuma se enterrar, ficando muito bem camuflado, para infelicidade de quem pisar ou puser a mão ali em cima: por meio de quatro espinhos localizados no dorso e nas laterais, associados a glândulas, ele consegue injetar toxinas poderosas, causando dor, queimação, inchaço (edema), falta de irrigação sanguínea (isquemia) e morte dos tecidos orgânicos (necrose), em alguns casos levando à amputação.
Ao pesquisar essa peçonha, as doutoras em Imunologia, Mônica Lopes Ferreira e Carla Lima, conseguiram produzir um soro para tratar os acidentados. E também isolaram um peptídeo – chamado de TnP – com potencial para prevenir e tratar crises de asma e com ação nos casos de esclerose múltipla. A equipe das pesquisadoras trabalha desde 1996 com a peçonha do niquim, no Laboratório Especial de Toxinologia do Instituto Butantan, em São Paulo, com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
O desenvolvimento de um medicamento para a asma veio primeiro, em 2010. O peptídeo TnP tem ação anti-inflamatória, com a vantagem de não causar os mesmos efeitos colaterais dos corticoides, tradicionalmente usados contra a doença. “Todos os testes in vitro e in vivo com camundongos de aplicações para asma foram feitos no nosso laboratório (Instituto Butantan) em parceria com o Laboratório Cristália”, conta Mônica. “Entretanto no ano passado, a parceria foi encerrada e o laboratório não mais mostrou interesse em continuar com a pesquisa e com os testes clínicos”.
As imunologistas continuaram a trabalhar com o mesmo peptídeo e acabam de confirmar sua atividade também contra a esclerose múltipla, que é uma doença inflamatória autoimune neurológica. “A ideia de testar a ação contra esclerose múltipla tem relação com alguns resultados imunológicos que obtivemos quando estudávamos a ação do peptídeo em asma”, diz Mônica Lopes Ferreira. Além da atividade anti-inflamatória, o peptídeo também demonstrou função imunomoduladora, de modo a adiar o aparecimento dos sintomas da esclerose múltipla e melhorar os sinais clínicos da doença, como dificuldades motoras e sensitivas, decorrentes do comprometimento do sistema nervoso central.
A patente referente ao peptídeo foi depositada no Brasil e em diversos outros países em 2007. Já foi aprovada na Comunidade Europeia, Estados Unidos, Canadá, México, Japão, Coreia do Sul, Índia e China. No Brasil, ainda aguarda a análise do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Para avançar na “transformação” do peptídeo em um medicamento para a esclerose múltipla, é preciso obter a aprovação da patente e fechar parceria com uma indústria farmacêutica capaz de dar continuidade aos testes.
A parte mais difícil – descobrir serventia para a peçonha de um peixe brasileiro – as imunologistas do Instituto Butantan já fizeram. Agora, talvez seja o caso de ouvir as histórias dos 15 milhões de asmáticos e 35 mil pacientes afetados pela esclerose múltipla, só no Brasil, para responder a eles com uma esperança. Senão de cura, pelo menos de redução do sofrimento.
Ilustração: Valdy Lopes Jr
Foto: Mônica Lopes Ferreira