A ação de reintegração de posse do terreno adquirido pela construtora Tenda no Jaraguá, em São Paulo, ao lado de seis aldeias do povo Guarani Mbya, estava marcada para ontem, 10/3, às 15h. E a apreensão era grande.
Essa ação foi definida por liminar emitida por juiz de primeiro grau do Fórum Regional da Lapa, atendendo ao pedido da Tenda, que comprou o terreno para construção sem licenciamento ambiental. Ela queria tirar do terreno os indígenas que o ocuparam em 30 de janeiro, logo após serem surpreendidos pela derrubada de mais de 500 árvores na área, algumas delas ameaçadas de extinção. Dias antes, representantes da construtora haviam garantido que nada seria feito, ali, contra a legislação. Aviltados, preocupados com seu futuro e o da mata, os Guarani Mbya acamparam ali e não saíram mais.
(Se quiser aprofundar seu entendimento sobre a ocupação, leia Guarani Mbya resistem à invasão de construtora ao lado de sua aldeia, em SP, e reivindicam criação de parque ecológico).
Ontem, bem cedinho, a Tropa de Choque chegou ao Jaraguá – com homens armados de escudos, capacetes e armas – e fechou a rua onde fica a entrada para o terreno ocupado. Retratos dessa movimentação se espalharam pelas redes sociais e era difícil imaginar que não haveria confronto.
Prevendo que essa polícia poderia agir com violência no local – como é corriqueiro em manifestações e protestos -, na segunda-feira, 9/3, o Conselho Nacional de Direitos Humanos emitiu recomendação para que a reintegração de posse fosse suspensa, evitando qualquer tipo de violação de direitos. Mas não foi o que aconteceu porque as polícias militar e ambiental se dispuseram a conversar. O clima era pacífico.
Entrar em conflito nunca foi a intenção dos indígenas. E eles ainda estavam muito bem apoiados por um grupo grande de não-indígenas, entre eles ativistas, políticos como Eduardo Suplicy, o vereador Gilberto Natalini e a codeputada Chirley Pankará da Bancada Ativista, e representantes de organizações como a OAB. Todos da paz.
A Polícia Militar e a Polícia Ambiental chegaram para efetivar a ação de reintegração de posse, e conversaram com os Guarani com muito respeito. Uma ativista presente fez um áudio – que circulou por grupos de apoio no Whatsapp – para contar como tudo aconteceu por lá e destacou que os policiais foram “muito cuidadosos porque havia muitas crianças e mulheres. Na tensão, as mulheres também negociam (como a líder Sonia Ara Mirim, na foto abaixo). E tudo correu com muita tranquilidade”. Um alento.
Diante de tal cenário, em dado momento a Polícia Militar pediu para a Tropa de Choque se retirar. Não havia necessidade de manter policiais armados para acompanhar negociação tão pacífica.
A Polícia Ambiental entrou para averiguar o terreno e pediu para que os indígenas o desocupassem. Eles aceitaram, com uma condição: continuarem acampados na entrada, em frente ao portão, em vigília, para evitar que a Tenda entre, antes da decisão do Ministério Público Federal, que analisa o caso desde a ocupação. E assim foi feito.
Numa negociação, as duas partes têm que ceder. Isso é importante para manter o diálogo e encontrar o melhor caminho para impasses. O líder Tiago Jekupê explica porque eles aceitaram deixar o terreno:
“A tragédia que hoje poderia acontecer, aqui, só favorece ao Covas e à Tenda. Os únicos interessados no conflito são a Tenda e a prefeitura de São Paulo. Nunca tivemos conflito com a polícia. Se determinou que a gente tem que sair, então a gente vai sair, de uma forma pacífica, sábia, mas vamos continuar nossa ocupação do lado de fora, continuar cuidando dessas árvores que estão aqui, para garantir que mais nenhuma seja tombada”.
Resistência pacífica
“A Tenda ingressou com uma ação de reintegração de posse porque adquiriu esse terreno sem licenciamento ambiental, de forma irregular e sem reconhecer que é uma área próxima a uma área demarcada indígena. Há necessidade de afirmar que há incompetência completa da Justiça Estadual nesse processo. Porque se trata de direito indígena e direito ambiental, não se trata de direito de propriedade exclusivamente”, destacou Gabriela Pires, advogada da Comissão Guarany Yvyrupa, representante legal do povo Guarani do sul e sudeste do país, à reportagem do Brasil de Fato.
Ela contou, ainda, que o Ministério Público de São Paulo pediu que a Fundação Nacional do Índio (Funai) fosse ouvida no processo, mas o pedido foi negado pela Justiça, que logo concedeu a reintegração. “Não fomos ouvidos até ela determinar essa reintegração e isso foi feito de forma urgente, ou seja, de forma liminar”.
Segundo a advogada, existem duas ações na Justiça Federal: uma, para que o caso seja reconhecido e analisado com base nos dois direitos – o indígena e o ambiental; e outra, para sentenciar o desmatamento ilegal da Mata Atlântica naquela região, com o corte das mais de 500 árvores. “Segundo o artigo 109 da Constituição Federal, compete aos juízes federais processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas”.
Gabriela Pires ainda fez questão de frisar que a ocupação é uma resistência pacífica por parte dos indígenas e não reivindica a posse do território, mas a sua proteção do ponto de vista ambiental. Eles querem um parque ecológico. “Estão aqui num ritual de luto pelo corte das árvores. Não é apenas uma questão de dizer que essa área delimitada milimetricamente é deles. É uma questão de ancestralidade, de espiritualidade e de proteção ambiental e social”.
Tiago corrobora essa declaração: “A gente não está discutindo a posse da terra mas, sim, as legislações que estão sendo burladas, que estão sendo desrespeitadas. A prefeitura de São Paulo não respeitou a Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], que nos garante a consulta prévia, livre e informada. Nós estamos aqui resistindo, somente com a nossa reza, com a nossa fé, nós não somos um povo de violência, dessa forma a gente continua resistindo aqui”.
Vale lembrar que a consulta prévia é assegurada aos povos indigenas não só pela Convenção da OIT, da qual o Brasil é signatário, mas também pelo Ibama.
As leis que protegem os indígenas ainda estabelecem que nenhuma obra pode ser feita a menos de 100 km de qualquer terra indígena, e o terreno onde a Tenda quer erguer a obra fica a apenas 8 km de distância. Já por esse fato, os responsáveis pelo empreendimento deveriam considerar os direitos indígenas no processo de licenciamento, como garante a Portaria Interministerial 60, de 2015. Mas ignoraram tudo.
Apoio urgente e diário
A área concedida à Tenda é um dos últimos remanescentes de Mata Atlântica da cidade de São Paulo, o que o prefeito Bruno Covas ignora ou faz de conta. A prefeitura autorizou a obra com base na declaração estapafúrdia da construtora de que o empreendimento que pretende erguer ali – 5 torres com cerca de 400 apartamentos e, no mínimo, 800 moradores -, não se caracteriza como de alto impacto ambiental.
Se for adiante, a obra poderá estrangular a aldeia Aldeia Tekuo Ytu, que fica colada ao terreno, e também impactar as outras cinco aldeias que integram a Terra Indígena Jaraguá.
Mesmo com a saída dos Guarani Mbya do terreno, a reintegração de posse não foi concluída. Agora, eles – em vigília – e a polícia ambiental aguardam a decisão do Ministério Público Federal para agir. Enquanto isso, os indígenas e seus apoiadores se movimentam para encontrar novas estratégias de atuação que possam ajudar a impedir que a Tenda avance em seu propósito.
Por isso, é importante que o apoio real (físico) e virtual aos Guarani Mbya prossiga e se fortaleça. Continuo torcendo por eles, por sua integridade física, moral, espiritual, pela proteção de suas aldeias. E para que o tão desejado parque ecológico seja possível. Será um presente para eles, e também para a região e para a cidade.
Quem quiser participar deste movimento, pode fazer contato com indígenas e apoiadores por intermédio das redes sociais: Facebook (Existe Guarani em SP) e Instagram: Luta Parque Jaraguá.
Fotos: Divulgação/Luta Parque Jaraguá e Caio Castor/A Ponte (retrato de Tiago Jakupê)