A indústria da moda se encontrou, mais uma vez, na maior e mais importante semana de moda do país: a São Paulo Fashion Week (SPFW). Depois de provocar reflexões sobre a a falta de diversidade nas passarelas em 2020, e adotar cota racial de 50% em seus desfiles, o evento – em sua 54ª edição (a primeira aconteceu em 1995) realizada de 16 a 20 de novembro – fez provocações sobre consumo consciente e sustentabilidade, que permaneceram literalmente penduradas em todo o espaço por onde circularam participantes e visitantes.
Os desfiles foram realizados em galpões no bairro da Moóca, na zona leste da capital paulista, em antigas fábricas tomadas por grafites coloridos e decoradas com instalações feitas de roupas usadas. Um convite para debater a economia circular.
Contradição?
Pode parecer um tiro no pé. O produtor que vive de vender roupa nova topar participar do mais importante evento de moda do país, que este ano dá destaque para a roupa usada e tecidos que não têm mais função no processo tradicional. Mas foi exatamente esse o movimento que a direção da São Paulo Fashion Week fez.
“A moda é feita e consumida por pessoas. Juntos temos a oportunidade de repensar e redesenhar nossos processos e hábitos e encontrar soluções com criatividade e inovação, gerando benefícios para toda a sociedade”, declarou Paulo Borges, fundador e diretor criativo do evento.
Nos bastidores, por onde transitava quem queria ver e ser visto, varais exibiam dezenas de peças descartadas pelos antigos donos. A ideia foi da professora Francisca Dantas Mendes, associada da USP – Universidade de São Paulo (na foto que abre este post).
“Roupas doadas são vendidas em outra feira em São Paulo, de segunda mão, e é preciso olhar e repensar o consumo, o descarte”, destaca a especialista.
No local, uma instalação composta por dois montes de roupas que foram para o “lixo” chamava a atenção. Tinha até um vestido de noiva! São cenas assim que a professora de modelagem encontra na companhia de seus alunos em visita a aterros sanitários.
Os números são assustadores. “Nos últimos 5 anos, geramos uma montanha de 60 mil toneladas desse tipo de resíduo aqui, na cidade, o que equivale a um deserto do Atacama de restos de roupas nos nossos aterros”, alerta Francisca.
(a especialista certamente fez menção ao famoso deserto localizado no norte do Chile, devido ao “cemitério” gigante de roupas usadas descoberto na região no início deste ano).
Em 2017, a docente criou o Residômetro para medir a quantidade desse “lixo” gerado na capital paulista. Ela também coordena o Núcleo de Apoio à Pesquisa SustexModa, constituído e homologado pela Pró-Reitoria de Pesquisa da USP.
Por dia, são 55 toneladas de material descartado da indústria têxtil – entre roupas usadas e restos de confecções, na capital paulista! “Isso é matéria-prima que gera renda e alimenta uma economia paralela muito importante”, conta.
Francisca também desenvolve soluções alternativas de olho na natureza e no futuro. Com o material a que tem acesso, desenvolve diversos projetos com populações vulneráveis.
Futuro à vista
Durante a SPFW, a professora não estou a animação, quando recebeu uma notícia ainda a ser oficializada: a Secretaria de Direitos Humanos da prefeitura de São Paulo liberou um terreno de 8 mil m2 para implantar a Central do Transbordo Têxtil, um sonho antigo.
“Entram roupas e resíduos de corte, tecidos e rejeitos que transformamos em vários projetos, e no fim, quando não tiver mais o que fazer, a sobra vai para usina e será transformada em energia elétrica”, explica.
O local é só o primeiro passo para a ideia sair do papel. “Precisamos de uma verba de R$ 20 milhões de reais para viabilizar a usina e já estamos atrás de patrocínio”, completa Francisca.
Seria uma forma de o ciclo finalmente se fechar, de forma sustentável. Que vire moda!
A seguir, assista ao documentário Montanha Têxtil – O fardo oculto dos resíduos de moda (indicado pela SustexModa, em seu site) para compreender melhor a complexidade e o impacto dessa realidade que se espalha por algumas das regiões mais vulneráveis do mundo.
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Edição: Mônica Nunes
Foto (destaque): reprodução Instagram (Francisca Dantas Mendes, da SustexModa)