São Paulo Fashion Week, maior evento de moda do Brasil, estabelece cota racial de 50% nos desfiles

Até o ano passado, a organização do São Paulo Fashion Week (SPFW), maior evento de moda do Brasil, realizado na capital paulista, recomendava às marcas participantes que incluíssem, pelo menos, 20% de modelos negros, afrodescendentes, asiáticos e indígenas nos desfiles.

Mas, a partir da próxima edição, de 4 a 8/11 – que será realizada virtualmente devido à pandemia, exibida em seu canal no YouTube e em projeções espalhadas pela cidade e celebrará 25 anos – todas as marcas deverão ter 50% do casting de desfiles, filmes e peças promocionais formado por modelos dessas raças e etnias.

A nova regra foi divulgada em documento enviado às empresas participantes e alerta que “caso a grife não atenda a essa determinação, a mesma não fará mais parte do line-up”.

Em resumo: automaticamente será excluída da programação da semana de moda de abril de 2021. E esclarece, também, sobre modelos afrodescendentes: “são aqueles com ascendente por consanguinidade até o segundo grau”.

Com essa medida, a SPFW pode vir a ser considerada como a primeira semana de moda do mundo a adotar exigências raciais próprias para a participação de marcas de moda, setor que tem protagonizado algumas polêmicas nesse quesito.

Do discurso à ação

Foto: Divulgação/Fotosite

Paulo Borges, diretor do evento, declarou à reportagem da Folha de São Paulo que “Não posso fazer leis, mas dentro do ambiente que fomentamos é possível haver regras, sim. Nas conversas que tivemos sobre mudanças no evento, uma das coisas que prometi foi que não era mais possível apenas recomendar. Chegamos no ponto de deixar de criar frases e passamos a partir para a ação”.

E continuou: “Não estamos aqui para julgar ninguém. Esses são processos colaborativos e não queremos forçar mudanças. Mas é claro que as marcas que não queiram compartilhar dessas discussões sairão do calendário por elas mesmas”.

Isto representa muito, claro, mas ainda há muito a avançar. As comunidades negra e indígena protestaram contra a falta de representatividade na passarela. Mas ainda é notória a falta de profissionais de outras raças e etnias “em cargos à sombra dos holofotes, como fotógrafos, stylists e equipes de imagem”.

Graca Cabral, diretora de novos projetos da SPFW, explicou à reportagem da Folha SP, que o “letramento da parte racializada” é o primeiro passo para que uma mudança maior seja possível e eles cheguem a redigir uma “carta de compromisso” de modo que a cota racial chegue também aos bastidores do evento. E vamos celebrando cada passo.

Crise e pandemia

A priori, parece que nenhuma marca habitué desistiu de participar desta edição devido à exigência da cota racial, mas ainda não é possível medir o real impacto dessa decisão.

No passado, era comum se ouvir que não havia disponibilidade de modelos negros, asiáticos ou indígenas nas agências especializadas. Mas faz um bom tempo que isso não é mais desculpa.

E a cota racial chega num momento bastante propício para ser aplicada. O formato virtual – com estética de videoclipe – não exige grande casting para apresentar a nova coleção.

Por outro lado, como a maioria das indústrias, a da moda passa por uma grande crise que foi intensificada pela pandemia. Nem todas as empresas estão capitalizadas para fazer tal investimento, independente das cotas.

E o formato virtual do evento, que em relação à quantidade de modelos, pode ser uma boa solução como comentei acima, também exige adaptações já que exige uma outra linguagem. Por isso, algumas marcas sempre presentes desistiram de participar desta edição.

Desigualdades e racismo

Com a pandemia, que reforçou as desigualdades, e os protestos que tomaram os Estados Unidos – com o assassinato de George Floyd – e se alastraram pelo mundo, a violência contra deliberada da polícia contra negros e moradores de favelas e periferias – que culminou com o assassinato de crianças e adolescentes – ficou ainda mais evidente.

Os povos indígenas também ganharam destaque nesse cenário devido à sua vulnerabilidade e ao tratamento racista da sociedade traduzido pelo aumento rápido de mortes e de infectados por coronavírus nas aldeias e fora delas. Nos hospitais, por exemplo, a Sesai – Secretaria de Saúde Indígena classificava os indígenas que moravam nas cidades como pardos e, assim, apareciam nas estatísticas de contaminados e mortos pela covid-19.

A falta de representatividade nos desfiles de semanas de moda não é recente. Sempre existiu e foi alimentada, aqui e no exterior. Mas, num ano tão conturbado como 2020, com crise econômica intensificada pela pandemia, seria natural que reverberasse também neste cenário que tanto depende da estética e da beleza e ignora a realidade.

No meio deste ano, modelos negros e profissionais que trabalham nos bastidores denunciaram marcas e estilistas por maus-tratos e desdém. E esta não foi a primeira vez que denúncias foram feitas.

Tratado moral

Para levantar discussões sobre racismo na moda, no ano passado, a modelo Thayná Santos criou o coletivo Pretos na Moda (PNM) e uma conta no Instagram com Camila Simões e Natasha Soares.

Em live da qual Paulo Borges participou, em junho, Natasha Soares denunciou o racismo sistêmico nesse setor. “Existe muito a questão do ‘você é lindo, mas em silêncio’. A gente é chamado para administrar crises. Quando uma marca faz algo racista, ela contrata um negro”.

O resultado dessa mobilização foi a assinatura de um Tratado Moral entre Pretos na Moda, São Paulo Fashion Week e parceiros, que elas divulgaram em 31 de outubro em seu Instagram.

Nesse tratado, elaborado a partir de reuniões entre representantes do coletivo e da SPFW, as três amigas, Paulo Borges e produtores de moda e profissionais responsáveis pelo casting das marcas que desfilam no evento – entre eles, Paulo Martinez, Flávia Pommianosky, Felipe Veloso e Daniel Ueda – se comprometem a zelar pelos princípios nele expostos. São eles:

– Visão: a reformulação da moda nacional, de maneira que todos os corpos se sintam pertencentes ao espaço, funcao e posição;
– Missão: viabilizar a inclusão de profissionais racializados na industria da moda brasileira;
– Valores: ética, inclusão, igualdade e proporcionalidade.

O texto indica a cota racial de 50%, valores dos cachês – “servindo como bússola de melhorias que visa um mercado mais diverso+ -, prazos de pagamento, horários para provas de roupa, entre outros.

A ideia é que essas diretrizes transformem o setor num “mercado mais empático, inclusivo, justo e respeitoso”. O objetivo, explícito no texto do tratado é “favorecer as organizações e eventos multirraciais, a fim de eliminar barreiras entre as raças, e desencorajar a tendente visão racial”.

Em seu Instagram, Thainá, Camila e Natasha declaram: “O tratado será renovado e ajustado a cada temporada tendo em vista que o mercado precisa se renovar a cada temporada”. Por fim, destaca que o documento tem por base a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da qual o Brasil é signatário desde 1966.

Uma grande vitória!

Outro movimento surgiu pouco depois do PNM – o Moda Racista -, mas teve vida curta. Em sua conta no Instagram, apontava “supostos casos de racismo” praticados por estilistas famosos como Reinaldo Lourenço e Gloria Coelho e marcas como Ellus. A conta foi tirada do ar, ainda em junho, quando Reinaldo entrou com processo na justiça. Este ano, apenas Gloria participa da edição comemorativa da São Paulo Fashion Week.

Basta uma pesquisa na internet pra identificar reportagens – principalmente entre os anos 2009 e 2011 – que mostram como o tema foi bastante discutido naquela época, envolvendo a SPFW.

Muitas foram as reivindicações, inclusive para tentar convencer estilistas a boicotar o evento caso as cotas raciais não fossem obrigatórias. Os depoimentos de estilistas famosos são estarrecedores. Alguns reconheciam a necessidade de estabelecer essa exigência, mas argumentavam que a criatividade dos profissionais da moda não poderia ser prejudicada.

Hoje, quem declarar isso pode ser processado. Novos tempos, que bom!

Ainda existe um longo caminho contra o racismo, mas estes pequenos avanços precisam ser muito celebrados e divulgados, de forma incansável. Até o dia em que a igualdade seja tão natural que soe estranho falar destes tempos.

Foto: Divulgação / Agência Fotosite (Instagram)

Fonte: Folha de São Paulo, Pretos Na Moda, SPFW

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Mônica Nunes

Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.