Atualizado em 12/2/2021 para contar que padre Júlio e os moradores de rua começaram a ser vacinados!
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Com a pandemia, a população de rua cresceu assustadoramente pelas ruas de São Paulo. E, com ela também aumentou a popularidade do Padre Júlio Lancellotti, da Paroquia de São Miguel Arcanjo, no bairro do Belenzinho. Desde 1993, ele coordena a Pastoral do Povo de Rua da capital, onde acolhe moradores de rua, dependentes químicos e imigrantes em situação de rua ou vulnerabilidade social.
Conhecido – e muito querido – por sua dedicação e amor aos pobres há quase 40 anos, com o advento das redes sociais, ficou mais fácil acompanhá-lo – e amá-lo -, de qualquer lugar do país e do planeta.
Ele tem fãs e fiéis espalhados por esse mundão. O amor pelo padre Júlio aumentou também, com sua presença diária online, mas o ódio e as ameaças também: sim, tem gente que odeia as pessoas que vivem nas ruas e o trabalho humanitário que ele realiza.
Por isso, diariamente, em seu perfil no Instagram – que reúne mais de 440 mil seguidores -, podemos acompanhar o padre Júlio, os “irmãos de rua” (como ele carinhosamente os chama) e seus encontros marcados por palavras de apoio e de carinho, e pela doação de alimentos e roupas.
Também sabemos quando a paróquia precisa de ajuda pra prosseguir, seja em espécie ou em depósitos em conta (Paróquia de São Miguel Arcanjo – Banco Bradesco, agência 0299, conta corrente 034857-0, CNPJ: 63.089.825/0097-96), que, com o PIX, ficou ainda mais fácil de fazer, a partir de um real!
E, entre os diversos posts que sua equipe publica nessa rede social, padre Júlio também faz denúncias.
Cemitério de pedras
Na semana passada, em 1 de fevereiro, denunciou os “jardins de pedras” – ou “cemitérios de pedras“, talvez mais apropriado – sob os viadutos Dom Luciano Mendes de Almeida e Antônio de Paiva Monteiro, na Avenida Salim Farah Maluf, no Tatuapé, e a “poda assassina” de árvores sadias da região, ambas iniciativas da prefeitura.
A vitalidade de padre Júlio é marcante, mas, nesse dia, ele demonstrou muito cansaço e se ‘abriu’ num post no Instagram, como nunca havia feito, em imagem e texto: “Peço forca a TI, Jesus, para não sucumbir neste momento tão difícil da vida”.
Também sabemos que “a obra” é fruto de uma prática higienista conhecida como arquitetura hostil e adotada por diversas cidades no mundo para proibir que a população de rua ocupe o espaço público. Mas claro que essa prática hedionda não é privilégio do Brasil, nem da prefeitura de São Paulo, nem desta administração.
E qual foi o motivo da ação chocante? A prefeitura justificou “a obra” dizendo que foi orientada por um funcionário que já havia sido exonerado – sem revelar seu nome, nem o motivo. Mas – como comentou o jornalista Leonardo Sakamoto em sua coluna no UOL – sabemos que “o verdadeiro responsável não é anônimo: estava assistindo Palmeiras e Santos, numa aglomerada arquibancada do estádio do Maracanã, neste sábado de pandemia”.
Logo após a denúncia do religioso, a prefeitura enviou funcionários com marretas e um trator para a retirada das pedras. A poda não teve repercussão na imprensa, já as pedras, sim!
Padre Júlio foi também. Apareceu lá no início da “limpeza”. Em dado momento, pediu uma marreta emprestada a um dos funcionários para registrar “um ato simbólico” e descolou duas pedras.
Nada fácil porque elas estavam coladas no chão. Não sei de onde ele tira tanta energia. Foi emocionante!
Repare neste diálogo do Padre Júlio com um dos funcionários da prefeitura:
– Mas por que colocaram isto?
– O senhor lembra como era isso aqui, cheio de entulho?
– Mas por que puseram?
– Por causa do lixo.
– Não, é por causa dos irmãos de rua. A visão que a gente tem e essa visão que você tá tendo, me lembra o campo de concentração de Auschwitz! É o que me lembra: um campo de concentração! É uma estrutura muito violenta, muito agressiva. Basta olhar e já agride. Eles poderiam ter posto verde, poderiam ter posto arbusto. A forma como isso foi colocado é muito agressiva e muito violenta, é anti-popular, anti-povo, anti-pobre, anti-pessoas em situação de rua“‘.
Vale assistir ao vídeo produzido por Henrique Campos, fotógrafo, documentarista e idealizador de projetos sociais, que tem acompanhado o Padre Júlio em suas andanças.
Esse registro – também realizado em fotos – foi publicado no Instagram do padre e logo viralizou nas redes sociais e na TV, e também ganhou homenagens de cartunistas como Rodrigo Yokota (que transformou padre Júlio em superherói, com sua vestimenta característica (máscara, jaleco branco e avental amarelo com estampa de e com a marreta, abaixo), Cris Vector e Nando Mota (Desenhos do Nando).
Protesto das Flores
Em 3 de fevereiro, padre Júlio transformou a vitória sobre as pedras num ato pacífico de resistência: em seu Instagram, convidou “todos que puderem e sem aglomeração”, a deixarem flores no local, no sábado, 6/2, às 15h.
O ato logo ganhou o nome de Protesto das Flores, e foi lindo!
Muita gente participou levando buquês e vasos de flores para o espaço. E o padre espalhou rosas, margaridas, flores do campo, entre outras, pelo chão. E também ofertou-as aos que moram ali.
Junto com o padre e todos que aceitaram seu convite também esteve o artivista Mundano – sobre o qual já escrevi diversas vezes, aqui, no Conexão Planeta.
Em uma das pilastras do viaduto, ele grafitou um cacto e a frase “menos pedras, mais flores“, com seu estilo inconfundível. “Um plantador de cactos e de resistência”, como Mundano se autodefine em seu Instagram.
Assista ao vídeo que ele gravou na ocasião.
Os protestos de padre Júlio – antes mesmo desse ato – inspiraram seguidores que moram em outras cidades a divulgar e protestar contra “obras higienistas” realizadas pelas prefeituras de diversas cidades do Brasil e de outros países.
Enquanto o dia do Protesto das Flores não chegava, alguns registros foram compartilhados no perfil do religioso. E assim continua. Os exemplos são muitos, infelizmente.
Como bem definiu o padre em uma das entrevistas que deu para uma emissora de TV sobre o cemitério de pedras debaixo do viaduto: “É uma politica necrófila, higienista e desumana”.
Amado e premiado
Todos os dias, temo pela vida do Padre Júlio. Não só pela sua exposição ao coronavírus, como às ameaças que sofre. Que Deus esteja sempre com ele! O que conforta é saber que tem muita gente, de todos os cantos do país – e do planeta – que o apoia, reza e torce por ele.
Em dezembro do ano passado, o religioso ganhou o 7º Prêmio de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, oferecido pela prefeitura, ao receber número recorde de indicações: 15.598 de um total de 16.643.
O troféu é um pesado disco de aço, com quase meio metro de diâmetro, elaborado pela artista plástica Tomie Ohtake. Na ocasião, ele declarou:
“Recebo com simplicidade, humildade, em nome de todos os moradores de rua, afirmando a dignidade da vida de todos, e repudiando toda forma de violência, de crueldade, de omissão em relação à essa população. Eu agradeço a todos que fizeram essa indicação. E, em nome de todos, especialmente dos moradores de rua, eu recebo esse troféu, que vou fazer andar dentro da carroça dos catadores e junto das malocas dos moradores de rua”.
Em janeiro deste ano, ele ganhou mais um prêmio, desta vez da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) na categoria Urbanidade. Agradeceu em seu Instagram.
No mesmo mês, foi indicado para a categoria Concórdia do prêmio Princesa de Astúrias, considerado uma espécie de Nobel espanhol por dois professores da USP: Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação do governo Dilma Rousseff e titular de Ética e Filosofia Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e por Flávio Wolf Aguiar, professor aposentado de literatura brasileira na mesma faculdade. Ao site G1, Renato declarou:
“O padre Júlio Lancellotti faz um trabalho incrível com a população de rua, com as pessoas mais pobres de SP. Eu o conheci há 20 e poucos anos, quando ele estava empenhado em conseguir recursos para que adolescentes em conflito com a lei pudessem ter acesso a equipes interdisciplinares, para fazer com que eles deixassem qualquer vínculo com o crime e, após o período de liberdade assistida, pudessem recomeçar a vida. Creio que é uma pessoa que faz um trabalho muito importante para a sociedade. E está empenhado em conseguir um futuro para pessoas que a sociedade atual, com sua crueldade, não lhes dá”.
Vacinado!!!
A idade avançada – 75 anos – somada à exposição diária a que se submete durante muitas horas de trabalho, atendendo o “povo de rua”, colocaram o padre Júlio em situação de total vulnerabilidade nesta pandemia. Devido ao risco que corre, ele poderia muito bem ser equiparado a um profissional de saúde que atua na linha de frente.
Quando a campanha de vacinação contra COVID-19 foi iniciada em São Paulo – com os profissionais de saúde -, seu primeiro pensamento se voltou para os moradores de rua.
Durante uma conversa telefônica registrada para seu Instagram, em 26 de janeiro, ele revelou que estava feliz porque eles haviam sido incluídos na campanha e ainda comentou sobre quem “furou fila” nas campanhas: “não foi morador de rua, foi a ‘gente de bem’!”, frisou.
Por outro lado, muitas pessoas usaram as redes sociais para fazer um apelo ao governador João Dória para que o religioso fosse incluído no grupo dos prioritários na campanha de vacinação.
Não houve resposta, mas talvez tenha faltado empenho – inclusive da imprensa – para reverberar tais apelos, como aconteceu com o “cemitério de pedras”. Seria justíssimo o padre Júlio já ter sido vacinado, o que finalmente aconteceu!
Hoje, 12 de fevereiro, o religioso e os moradores de rua, começaram a ser vacinados. Que alívio!
Higienismo paulistano
O prefeito Bruno Covas segue a mesma política higienista do governador João Dória, dando continuidade ao que aprendeu com seu antecessor e mentor. Mas essa prática discriminatória e desumana não começou com seu antecessor e mentor, nem vai terminar com ele.
Em 2005, o prefeito José Serra ergueu estruturas que ficaram conhecidas como “rampas antimendigo“: a primeira foi num trecho que liga a Avenida Paulista à Avenida Doutor Arnaldo, abaixo da Avenida Consolação.
Quando prefeito, Gilberto Kassab (2010) deu continuidade à maldade de Serra construindo uma rampa como essa no viaduto João Julião da Costa Aguiar, em Moema, bairro de elite na zona sul da cidade.
Em 2014, a gestão de Fernando Haddad instalou paralelepípedos ao redor dos pilares entre as estações Tietê e Carandiru do metrô de SP, onde moradores de rua costumavam dormir. Na época, a assessoria de imprensa da prefeitura comunicou que a intenção era evitar que fossem acesas fogueiras que poderiam abalar a estrutura da construção.
Seu sucessor, João Dória, conseguiu se superar: em sua gestão, funcionários lavaram a Praça da Sé com jatos de água, molhando pessoas que dormiam ali, além de seus pertences e cobertores (que, em outros momentos, foram confiscados). Isso aconteceu na madrugada mais fria do ano.
Também constam da administração de Dória a destruição de casas na Cracolândia, com o auxílio de tratores, que estavam ocupadas por pessoas sem-teto. A ação resultou em feridos.
O pior de tudo é que essa política higienista que domina e/ou permeia os governos encontra eco em cidadãos paulistanos que declaradamente abominam a presença dos pobres nas ruas. Em vez de ajudar, os refutam, desprezam e denunciam.
Como disse o padre Júlio e vou repetir aqui: trata-se de uma “política necrófila, higienista e desumana”. Além de um desperdício de dinheiro público também!.
Pois é… Quanto terá custado colocar as pedras e depois as tirar do “meio do caminho” dos moradores de rua? Além de excluir, a prefeitura de Bruno Covas desperdiça dinheiro.
Crochê, bordado, verbo e poesia
Como contei aqui, Padre Júlio Lancellotti é muito presenteado, constantemente: com ilustrações, fotos, indicação a prêmios, reportagens, mensagens singelas…
Dia desses, nos comentários de um post do padre no Instagram, um moço fez com ele o mesmo que Caetano com Djavan: o homenageou dizendo que lançava, ali, o verbo “lancelloterezar” como “sinônimo de amar mais ao próximo!”. Certamente não vai pegar pela complexidade da palavra, mas foi uma linda forma de dizer que ele é muito inspirador.
Um perfil que apresenta e comercializa trabalhos em crochê o homenageou com um singelo boneco (foto acima) (foto acima), acompanhado de sua bengala e da marreta que tomou emprestado de um funcionário da prefeitura para seu “ato simbólico” contra obra tão infame. O religioso também já foi representado em bordados, como este.
Para finalizar este post e homenagear padre Júlio, escolho a arte da palavra: reproduzo a poesia que o jornalista Julinho Bittencourt (site Fórum) dedicou ao padre, em forma de cordel. Muito singelo e arretado!
Há um padre lá na Mooca
No coração da cidade
Que olha todos e evoca
O evangelho, a bondade
Àqueles que ninguém sabe
Àqueles que ninguém vê
Que ninguém mais se assombra
O padre lembra a você
Há um padre lá no centro
Que cuida dos que estão fora
Que encara a vida de dentro
Quando a morte apavora
O padre que abre a porta
Diante do nunca visto
Abre com seu peito aberto
E o evangelho de Cristo
O padre sofre atentado
Xingamento e agressão
E quanto mais abusado
Mais o padre ergue a mão
E diante da dor doída
O padre avisa contrito:
“Não se humaniza essa vida
Sem a luta e o conflito”
O padre limpa a ferida
Abraça o corpo e sorri
Cede o prato de comida
Beija os pés da travesti
Quem tem o chão como cama
E como teto a lua
O Padre Júlio proclama
Como seu irmão de rua
E antes que a vida acabe
E que o diabo dê o bote
Há um Padre lá na Mooca
O Padre Júlio Lancelloti”.
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Foto (destaque): Victor Angelo Caldini (@vi_angelo)/Reproducao do Instagram