Mais uma reparação relacionada ao racismo no Brasil. Esta semana, o presidente Lula revogou a Ordem do Mérito Princesa Isabel e instituiu o Prêmio Luiz Gama de Direitos Humanos, homenageando um dos principais ativistas da luta pela abolição da escravidão no país.
A medida foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) na última segunda-feira, 3 de abril, e determina que o novo prêmio será dado, a cada dois anos, “a pessoas físicas ou jurídicas de direito privado cujos trabalhos ou ações mereçam destaque especial nas áreas de promoção e de defesa dos direitos humanos”.
A responsabilidade da concessão é do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, liderado pelo advogado e filósofo Silvio Almeida.
A medalha que homenageava a autora da Lei Áurea – que libertou escravos, mas não os acolheu na sociedade – foi lançada por Bolsonaro em dezembro de 2022, último mês de seu mandato, certamente como mais uma provocação.
Vale lembrar que, em 16 de janeiro de 2018, o governo Temer publicou, no Diário Oficial da União, a sanção da Lei 13.629, que declara Luiz Gama como Patrono da Abolição da Escravidão no Brasil.
Na mesma edição do DOU também foi publicada a sanção da Lei 13.628, que inscreve o advogado no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. O documento fica guardado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, na praça dos Três Poderes, em Brasília.
Quem foi Luiz Gama
Como muitos personagens e episódios relacionados à escravidão no Brasil, Luiz Gonzaga Pinto da Gama e seu legado são pouco conhecidos. Foi poeta, jornalista, advogado autodidata e maçom e ocupou lugar incomum, de pioneiro, numa época em que a desumanização dos negros era condição.
Nasceu em Salvador, em 21 de junho de 1830. Filho de mãe negra livre e pai branco, foi escravizado por 10 anos e permaneceu analfabeto até os 17. Morreu em São Paulo aos 52 anos.
Era filho da escrava liberta Luiza Mahin e de um fidalgo português cujo nome Gama nunca revelou. Também pudera: aos dez anos, foi vendido como escravo pelo próprio pai (que havia contraído dívidas em jogo) ao alferes Antonio Pereira Cardoso, proprietário de uma fazenda no município de Lorena, em São Paulo.
Aprendeu a ler e a escrever com um estudante que se hospedou na casa de Cardoso em 1847 e afeiçoou-se a ele.
Antes de completar 18 anos, obteve sua alforria e passou a frequentar, apenas como ouvinte, as aulas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, depois de ter sido impedido de estudar na instituição devido a protestos dos estudantes.
Com os conhecimentos jurídicos que adquiriu, lutou pela libertação de pessoas escravizadaspor meio da lei que extinguiu o tráfico negreiro. E, assim, conseguiu libertar, pelo menos, 500 escravos.
Em 1859, publicou o livro Primeiras Trovas Burlescas, coletânea de poemas satíricos nos quais um autor, que se assume negro, denuncia as contradições políticas, éticas e raciais da sociedade imperial. Isso, 12 anos depois de ter aprendido a ler. E também publicou artigos em jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Em 2015, 133 anos após sua morte, a Ordem dos Advogados do Brasil lhe concedeu o título de advogado.
Provocação
A Ordem do Mérito Princesa Isabel foi lançada pelo governo Bolsonaro com o intuito de homenagear pessoas e entidades que teriam prestado “notáveis serviços” relacionados à proteção e à promoção dos direitos humanos.
Mas, como sabemos, o ex-presidente nunca prezou, de fato, por esses direitos, tendo nomeado para o Ministério dos Direitos Humanos (e da Mulher), a conservadora e retrógrada Damares Alves. Sobre ela paira a desconfiança de que teria sequestrado uma garota indígena (adotada por ela) e de dirigir a ONG Atini, que, em 2018, era alvo de acusações de tráfico, sequestro e exploração sexual de crianças pelo Ministério Público e indigenistas.
A escolha da Princesa Isabel para nomear a honraria deve-se ao fato de ela ter assinado a Lei Áurea, que proibiu a escravidão. Mas é preciso desconhecer os detalhes dessa história para compreender que trata-se de um contrassenso visto que essa lei não protegeu os negros libertados, não os incluiu na sociedade, nem garantiu oportunidades socioeconômicas para que pudessem refazer suas vidas.
Eles não tiveram direito a documentos, nem a terras e, por isso, tiveram que se submeter a situações de exploração e a moradias insalubres e distantes das cidades, fatos que se perpetuam até hoje.
O Prêmio Luiz Gama de Direitos Humanos faz justiça a seu legado e, certamente, o fará também ao reconhecer a trajetória de brasileiros e brasileiras que lutam pela igualdade, sem trégua.
Fotos: Wikimedia Commons