Esta semana, Bolsonaro esteve em Nova York para abrir a 77ª Assembleia Geral da ONU (20 a 26/9), como é de praxe para o Brasil. Foi notícia, mais uma vez, devido às mentiras que contou e por ter transformado o plenário do encontro de líderes globais em palanque. Isso depois da vergonhosa passagem por Londres, onde participou do funeral da Rainha Elizabeth, e também fez comício.
Mas sua passagem pela cidade nada representou diante da presença de lideranças e artistas indígenas que ‘ocuparam’ as ruas, com projeções, marchas e protestos, e a sede da ONU, compartilhando ideias e experiências sobre preservação, clima, tecnologia, comunicação e educação (em reuniões que antecederam a abertura da Assembleia) e também em espaços na Semana Climática (20 a 25/9), apoiada pela ONU em parceria com o Climate Group.
O Futuro é Ancestral
Convidados pelo Instituto ALOK (criado pelo DJ e produtor famoso) e pela iniciativa Pacto Global (que reúne empresas em favor da Agenda 2030 da ONU), os primeiros indígenas a desembarcarem em NY foram os representantes dos povos Yawanawá, Huni Kuï, Guarani, Terena, Sateré Mawé, Kisedje e Pataxó.
Eles participaram do encontro O Futuro é Ancestral – também com o apoio do Greenpeace Brasil -, que reuniu comunicadores, influenciadores, pesquisadores, cientistas e filantropos e integrou uma série de reuniões que antecederam a abertura da Assembleia Geral.
O nome O Futuro é Ancestral batiza o projeto homônimo lançado por Alok no ano passado, em parceria com indígenas, que arrecada fundos destinados a ações para promover a cultura dos povos originários e propagar a urgência da defesa dos direitos desses povos de ocuparem múltiplos territórios na sociedade contemporânea.
Logo que os debates terminaram, no final da tarde, ALOK e os indígenas Yawanawa (grupo liderado por Rasu), Mapu Huni Kuï e Owerá MC (ex-Kunumi MC, dos Guarani) se reuniram para apresentar, no rooftop do edifício da ONU, um show lindo e comovente com três cantos que compõem o álbum que leva o nome do projeto e será lançado em 2023.
As músicas escolhidas para essa apresentação foram as mesmas gravadas em vídeo, no meio da Amazônia, em 2021, que foi exibido ao mundo durante o Festival Global Citizen (contei aqui)
(no final deste post, assista ao vídeo da reportagem da Globo sobre o show realizado na ONU e, em seguida, o vídeo em que Alok apresenta o show produzido para o festival Global Citizen).
As participações na ONU, os bastidores e o processo criativo que envolvem o projeto O Futuro é Ancestral, desde sua criação, estão sendo registrados pela produtora de entretenimento de impacto Maria Farinha Filmes, e farão parte de um documentário que revelará a potência do encontro entre ALOK e os indígenas.
A liderança indígena Célia Xakriabá também integra o projeto e assina o roteiro do documentário. Ela participou dos encontros na ONU porque está em campanha eleitoral –concorre a uma vaga na Câmara dos Deputados, no Congresso Nacional, por Minas Gerais -, mas se fez presente com uma frase de sua autoria – “Antes do Brasil da Coroa, existe o Brasil do Cocar” – que integra a música cantada por Owerá MC no álbum do DJ.
A voz da floresta
“Levar a sabedoria ancestral da floresta ao mundo faz parte não apenas dos meus objetivos artísticos, mas dos meus princípios como cidadão. Desde que tive contato com a cultura dos povos originários (em 2014), entendi a importância da preservação e disseminação de seus conhecimentos e de desconstruirmos conceitos, crenças e narrativas que contaminam a visão que adultos e jovens do meu país, e de todo o mundo, têm sobre os indígenas”, contou ALOK ao site da ONU, na ocasião.
“O futuro pode ser tecnológico e sustentável, mas, para isso, precisamos ouvir a voz da floresta e cocriar as soluções juntos com essas vozes”.
O projeto O Futuro é Ancestral vai de encontro a esse entendimento. Daí o convite para que os indígenas fossem ouvidos na ONU, não só em declarações durante debates com especialistas, cientistas e comunicadores de diversas partes do mundo, como através de seus cantos.
“Num momento em que a ONU está debatendo vários assuntos muito importantes em relação às mudanças climáticas e ao aquecimento global, é muito necessário a presença deles aqui, já que eles são verdadeiros guardiões das florestas”, explicou ALOK.
“Muitas vezes a gente fala de preservação, mas não compreende muito a natureza. A gente já se desconectou dela há muito tempo. Uma forma legal de se conectar com a floresta é ouvir o que ela tem a dizer. Uma forma boa de fazer isso é através dos cantos indígenas. É por isso que a gente está aqui, para fazer as pessoas sentirem“.
Fundo Ancestrais do Futuro
Logo após o debate, o Instituto ALOK e o Pacto Global assinaram parceria para a promoção e criação do Fundo Ancestrais do Futuro, que será destinado à produção de audiovisual, música, games e Web3 protagonizada por indígenas, e também apoiará projetos baseados no uso de tecnologia para o bem-estar dos povos da floresta e a preservação da biodiversidade.
Para tanto, as duas instituições convidam empresas e organizações do terceiro setor – além de indivíduos -, a contribuírem para a criação de uma plataforma com o objetivo de unir esforços para o fortalecimento da identidade indígena na sociedade, ampliando o repertório sobre essas culturas e estabelecendo uma nova compreensão sobre a sua importância para o futuro do planeta.
As doações online podem ser feitas aqui.
Para Devam Bhaskar, diretor do Instituto ALOK, “desconstruir a visão colonizadora sobre os povos indígenas está na base das urgências relacionadas ao respeito aos direitos humanos e à preservação e regeneração da natureza”.
E Owerá MC destaca: “Desde 1500, com a chegada dos portugueses, há um preconceito enorme contra a gente, com os povos indígenas. Falam que o indígena, quando usa o rap, perdeu a sua cultura. E, quando a gente mostra a nossa cultura, falam que o indígena é selvagem. Mas a gente vai continuar seguindo, mostrando nossa cultura, nossa arte e nossa tecnologia, que também é a nossa cultura!”.
Neste link, assista a trecho da apresentação do fundo durante o encontro O Futuro é Ancestral.
O papel dos indígenas na justiça climática
Com o intuito de denunciar, para os líderes globais, os ataques à vida e aos territórios dos povos indígenas pelo governo brasileiro e promover a importância da demarcação das terras indígenas no combate às mudanças climáticas, a APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil reuniu um grupo de lideranças da Amazônia e do Nordeste para participar da Semana Climática, em Nova York.
São eles: Dinamam Tuxá (coordenador executivo da APIB), Txai Suruí (Associação Kanindé), Samela Sateré Mawé (comunicadora da APIB), Cristiane Pankararu (representante da Anmiga, rede de mulheres indígenas), Toya Manchineri (coordenador executivo da COIAB), Valéria Payé (diretora executiva do Fundo Podáali) e João Victor Pankararu (representante da juventude indígena).
Para Dinamam, o papel dos povos originários na justiça climática não é reconhecido e convertido na garantia de direitos e proteção dessas áreas:
“A crise climática já não é mais uma possibilidade. Ela está ocorrendo neste momento e uma das principais soluções para termos justiça climática para toda a humanidade é a demarcação das terras indígenas. Só assim garantimos a permanência destas comunidades em seus territórios e, consequentemente, a conservação das florestas”.
Em parceria com organizações aliadas norte-americanas, a delegação participou de eventos como o People’s Forum, no qual apresentou dossiê (produzido com o apoio da Amazon Watch), que mostra como grandes empresas compram ouro proveniente de garimpo ilegal de terras indígenas da Amazônia brasileira.
Junto com membros da Aliança Global de Comunidades Territoriais, a APIB também se reuniu com governos e doadores privados que, há quase um ano, durante a COP26, em Glasgow, na Escócia, prometeram doar 1,7 bilhão de dólares para povos indígenas até 2025.
Vale lembrar que, à COP26, a APIB levou a maior delegação indígena brasileira e que, nessa ocasião, deixou claro, em todos os encontros dos quais participou, que não haverá futuro sem a garantia dos direitos dos povos indígenas. Esta é a mensagem que também defende em Nova York.
À comunidade internacional, a articulação reivindica a criação de um mecanismo de financiamento direto para os povos indígenas – para apoiar a conservação da biodiversidade em suas terras -, sem a intermediação de/ governos.
As lideranças da organização acreditam que a pressão nos encontros e manifestações em Nova York podem resultar na definição de medidas práticas nas conferências da ONU que ainda serão realizadas este ano: a COP27 do Clima (7 a 18/11), em Sharm el Sheik, no Egito, e a COP15 da Biodiversidade (5 a 17/12), em Montreal, no Canadá.
Nas ruas, contra o governo Bolsonaro
Enquanto o presidente Bolsonaro discursava (e mentia) na abertura da Assembleia Geral, em 20/9, as lideranças indígenas da APIB caminharam pelas ruas de NY, em marcha até o Consulado do Brasil, próximo da sede da ONU.
Acompanhadas por indígenas de outros países (que integram a aliança acima citada) e por integrantes de movimentos e ONGs internacionais, gritaram, em inglês: “Bolsonaro, quanto você ganha para deixar nossas florestas queimarem?”.
No plenário da ONU, Bolsonaro declarou que é fundamental cuidar do meio ambiente, mas sem “esquecer das pessoas”, e emendou: “A região amazônica abriga mais de 20 milhões de habitantes, entre eles indígenas e ribeirinhos, cuja subsistência depende de algum aproveitamento econômico da floresta”.
Durante o protesto, Samela destacou: “Bolsonaro veio para mentir na ONU, para dizer que o Brasil está cuidando das suas florestas, então nós fomos até o consulado para desmenti-lo e denunciar o genocídio e a destruição ambiental que estamos vivendo”.
Em frente ao consulado, os indígenas criticaram os assassinatos dos parentes, que aumentam a cada dia, os conflitos em terras indígenas, a explosão do desmatamento e das queimadas, todos resultantes da política anti-indígena do governo, que desmontou a Funai e os órgãos de fiscalização.
Marcha e encontro por leis antidesmatamento
Na sexta-feira, 23/9, as lideranças da APIB que participaram da Semana Climática realizaram duas ações importantes: se encontraram com a senadora Liz Krueger, responsável pela Lei de Compras Livres de Desmatamento e marcharam pelas ruas de Nova York (foto acima) para denunciar, “as consequências do comércio internacional de produtos oriundos da exploração de territórios indígenas, da intrusão de estranhos nas comunidades e do desmatamento”.
O projeto de lei defendido por Krueger foi apresentado ao Senado em março de 2021 e está em tramitação. Caso seja aprovado, modificará a Lei de Finanças do Estado, acrescentando novas disposições que bloqueiam importações de produtos ligados à destruição das florestas.
Dinamam Tuxá, Cristiane Pankararu e Valéria Payé (foto acima, com Liz) destacaram a importância de o texto do projeto levar em conta a proteção de todos os biomas brasileiros, “considerando a grande pressão sentida nos territórios indígenas devido a proximidade com grandes plantações e pastagens“.
A marcha – liderada por Txai Suruí e João Victor Pankararu (foto abaixo) – deu visibilidade à reivindicação dos povos indigenas pela criação de leis anti-desmatamento, a exemplo da legislação que está em pauta na União Europeia.
“Queremos que as empresas exportadoras de commodities tenham sua produção regulada internacionalmente, através do comércio, para que seja obrigatório o respeito aos direitos dos povos indígenas e a preservação de todos os biomas brasileiros, bloqueando importações com risco florestal”.
Luta por direitos marcam projeções audiovisuais
A projeção de frases de impacto nos prédios de Nova York chama a atenção dos transeuntes para o genocídio indígena, os assassinatos de indigenistas e ativistas ambientais como Bruno Pereira e Dom Phillips, a importância dos povos indígenas para a regulação do clima e a luta por direitos e pela demarcação de terras (fotos abaixo) e integra as ações planejadas pela APIB em NY.
Depois das imagens de autoria de Kamikia Kisedje, assista ao vídeo do show de ALOK com os indigenas, na sede da ONU, e ao vídeo dos bastidores e do show gravado na Amazônia para o festival Global Citizen, em maio de 2021, quando o projeto foi lançado.
Fotos (destaque): Kamikia Kisedje/Apib e Instituto Alok/divulgação