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Indígenas se retiram da Câmara de Conciliação do STF sobre o (inconstitucional) ‘marco temporal’ e reivindicam seu encerramento 

Indígenas se retiram da 'Câmara de Conciliação' do STF sobre 'marco temporal' e reivindicam seu encerramento 

Ontem (28), durante a segunda audiência da Câmara de Conciliação do Supremo Tribunal Federal (STF), que discute a Lei 14.701/2023, os integrantes da APIB -Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, revoltados, abandonaram a comissão. 

Vale lembrar que o texto dessa lei foi promulgado em dezembro de 2023, após o STF declarar (em setembro) que a tese do marco temporal é inconstitucional. Prontamente, em 28 de dezembro de 2023, a APIB entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade 7582 no STF.

Em conjunto com suas sete organizações regionais de base – COIAB, APOINME, Conselho do Povo Terena, Aty Guasu (Guarani Kaiowá), Comissão Guarani Yvyrupa, ARPINSUDESTE e ARPINSUL -, a APIB declara que “os povos indígenas não irão negociar o marco temporal e outras violações contra os direitos indígenas, já garantidos na Constituição Federal de 1988 e na Convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho”.

Diante da ameaça de abandono da Câmara, o juiz instrutor Diego Viegas disse que, caso a APIB decidisse sair da comissão, outros indígenas seriam convidados a integrá-la.

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Os indígenas não se deixaram intimidar. A saída do grupo (cinco representantes da APIB e 50 lideranças que acompanhavam a reunião) foi anunciada por Mariazinha Baré com base na leitura de um manifesto da organização que justifica a decisão (leia o texto integral no final deste post).

Indígenas se retiram da 'Câmara de Conciliação' do STF sobre 'marco temporal' e reivindicam seu encerramento 
Mariazinha Baré, coordenadora executiva da APIB, anuncia a saída
dos integrantes indígenas da comissão
Foto: Tukumã Pataxó/APIB

Falta de transparência

De acordo com o documento, os objetivos e as regras dos trabalhos, até agora, não foram explicitados de forma clara e transparente. “Não há nitidez sobre o que se estaria a conciliar, quais seriam os pontos em discussão e o que poderia ser concretamente alterado no sistema de proteção dos direitos indígenas, garantidos aos povos indígenas pelo Constituinte originário de 1988”.

Indígenas se retiram da 'Câmara de Conciliação' do STF sobre 'marco temporal' e reivindicam seu encerramento 
“Nenhuma gota a mais”, gritou um dos indígenas participantes da comissão, relembrando a campanha ‘Sangue Indígena: Nenhuma Gota a Mais’, lançada em 2019
Foto: Tukumã Pataxó/APIB

“Isso é um absurdo! A APIB representa os povos originários tanto para o movimento indígena quanto para o STF, que já reconheceu a legitimidade de representação da nossa articulação”, declarou Kleber Karipuna, coordenador executivo. 

E acrescentou: “A decisão de se retirar da comissão foi tomada após diversas consultas com organizações e lideranças das nossas sete regiões de base do movimento”.

Em coletiva de imprensa (foto de destaque), acompanhado por diversas lideranças na área externa do STF, Maurício Terena, coordenador do departamento jurídico da APIB, explicou: “Nós tentamos a todo momento e estávamos abertos ao diálogo. A APIB, por meio das petições na Corte, solicitou diversas vezes que nos fosse da igualdade de condições de participação na Câmara”. 

E complementou: “Os povos indígenas enfrentam violações contra seus territórios e direitos desde que este país é conhecido como Brasil. Confiamos no colegiado do Supremo e nos ministros que já se posicionaram contra [9×2], mas qualquer medida conciliatória desta câmara, sem a participação dos povos indígenas, será ilegítima!”.

‘Lei do Genocídio Indígena’ – como é chamada a lei votada às pressas pelo Congresso em dezembro -, transformou o marco temporal em lei, como também diversos crimes contra os povos indígenas, como a contestação de demarcações, além de permitir que invasões de Terras Indígenas possam ser consideradas de boa-fé

Por que abandonar a comissão? 

De acordo com a APIB, as organizações indígenas decidiram não participar mais da Câmara de Conciliação porque o Supremo não atendeu às condições de participação dos indígenas, além de ignorar os pedidos do movimento indígena nas ações que discutem a lei no STF.

Indígenas se retiram da 'Câmara de Conciliação' do STF sobre 'marco temporal' e reivindicam seu encerramento 
Segunda audiência da Câmara de Conciliação do STF
Foto: Tukumã Pataxó/APIB

Entre as solicitações feitas pela APIB estão a suspensão da Lei 14.701, o reconhecimento da inadequação da criação da Comissão de Conciliação para tratar de ações que abordam a proteção dos direitos indígenas e, também, a preservação da decisão do STF sobre o marco temporal.

É o que destaca este trecho do manifesto: “Neste cenário, a APIB não encontra ambiente para prosseguir na mesa de conciliação. Não há garantias de proteção suficiente, pressupostos sólidos de não retrocessos e, tampouco, garantia de um acordo que resguarde a autonomia da vontade dos povos indígenas. Nos colocamos à disposição para sentar à mesa em um ambiente em que os acordos possam ser cumpridos com respeito à livre determinação dos povos indígenas”.

A Câmara de Conciliação: criação e primeira audiência  

Logo que o Congresso aprovou a ‘Lei do Genocídio Indígena’, a APIB propôs, em 28/12/ 2023 (pouco antes do ano terminar), a Ação Direta de Inconstitucionalidade 7582. E, baseada na sentença do STF sobre o marco temporal, esperava a suspensão da referida lei, em especial “dos artigos contrários ao que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal em setembro de 2023”. Mas, não!

Mesmo depois da recomendação de cinco órgãos da ONU para que o governo brasileiro rejeitasse a tese do marco temporal e desse continuidade ao processo de demarcação das terras indígenas, a ‘Lei do Genocídio Indígena’ continuou valendo. Mas não só! A resposta do STF foi ainda pior: em abril de 2024, surpreendeu a APIB com a proposta da Câmara de Conciliação, determinada pelo ministro Gilmar Mendes e que deve seguir até dezembro. 

Participam da comissão representantes do Senado, da Câmara dos Deputados, do Governo Federal, dois governadores e um representante da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) e da Frente Nacional dos Prefeitos (FNP).

Até o início da primeira audiência, em 5/8, nenhuma comunicação formal, mais detalhada, havia sido feita e entregue à APIB. Foi nessa reunião que os indígenas tomaram conhecimento de que “os acordos feitos deveriam ser realizados por aclamação, mas caso não houvesse consenso entre as partes, as decisões seriam tomadas pelo voto da maioria”. 

A questão é que o colegiado tem 24 integrantes (que já haviam se declarado a favor do marco temporal) e a APIB apenas seis, como indica o STF. Além disso, membros de outros setores e organizações podem participar apenas como observadores

Ou seja, há uma desvantagem numérica óbvia [para os indígenas], em qualquer deliberação da comissão. 

Foi nesta primeira audiência, também, que a APIB foi informada que, se optasse por sair do processo, a FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) poderiam obter a posição de comunidades em seu lugar. 

E foi ainda nessa ocasião que a APIB foi surpreendida pela eventual aprovação de uma PEC, “que consolidaria o marco temporal no texto constitucional”.

E, para completar as ameaças, Diego Viegas, juiz auxiliar indicado por Mendes para conduzir os trabalhos, afirmou que, neste caso, a comissão daria continuidade aos trabalhos, “sem problema algum”. O que ele fez questão de repetir na audiência de ontem.

E ainda há um registro de racismo na ata dessa reunião: lideranças indígenas presentes denunciaram experiências dessa magnitude vivenciadas na comissão.

“Se continuarmos nesse atropelamento, isso será marcado pela maior violência aos direitos dos povos indígenas do Brasil, como a violação ao direito à consulta, porque eu não posso falar na minha língua originária e não me interessa, com todo respeito, se o problema é da Funai ou do MPI”, declarou advogada indígena Kari Guajajara, na ocasião. 

“Queria hoje poder me expressar na minha língua originária, pois queria que os mais de 35 mil indígenas Guajajara pudessem me ouvir e entender o que está acontecendo aqui. Entender que nossa história está sendo atravessada novamente de uma maneira muito violenta”, disse à época a advogada indígena Kari Guajajara, representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

O Manifesto da APIB

A seguir, leia o texto do manifesto da APIB, na íntegra:

Excelentíssimos Senhores Ministros do Egrégio Supremo Tribunal Federal
Excelentíssimos Senhores Juízes Auxiliares
Excelentíssimas Autoridades Presentes
Povos indígenas de todo o Brasil 

Com os nossos respeitosos cumprimentos, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, entidade de representação nacional, vem se manifestar sobre a conciliação que está em curso neste egrégio Supremo Tribunal Federal. 

Antes de mais nada, é importante dizer que o Supremo Tribunal Federal tem sido um espaço importante de garantia dos direitos indígenas. Sua atuação durante a pandemia foi fundamental, diante de graves violações a direitos a que os povos indígenas estavam submetidos. 

Por reconhecer neste tribunal um espaço de concretização da Constituição, a APIB propôs, em 28 de dezembro de 2023, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 7582. A entidade esperava a suspensão da Lei no 14.701, principalmente dos artigos da lei contrários ao que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal em setembro de 2023. 

A Comunidade Internacional assiste com preocupação os ataques aos direitos dos povos indígenas brasileiros! 

Cinco órgãos de tratados da ONU já recomendaram que o Estado brasileiro rejeitasse a tese do Marco Temporal e continuasse o processo de demarcação dos nossos territórios tradicionais

No entanto, a lei permaneceu em vigor. E, em abril de 2024, a APIB foi surpreendida com uma proposta de conciliação entre as partes das ações que questionam a inconstitucionalidade da Lei e outros setores da sociedade que sequer são partes do processo. 

Não havia nitidez sobre o que se estaria a conciliar, quais seriam os pontos em discussão e o que poderia ser concretamente alterado no sistema de proteção dos direitos indígenas que foram garantidos aos povos indígenas pelo Constituinte originário de 1988. 

Pela letra da Constituição da República de 1988, as terras indígenas foram gravadas comoinalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis. Assim, qualquer negociação sobre direitos fundamentais já seria, a princípio, inadmissível.

Ainda assim, a APIB, sentou-se à mesa, com disposição política e vontade de reabrir os flancos de negociação, muito embora a não declaração de inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023 seja uma sinalização nociva, a indicar incoerência e sujeição a pressões indevidas. 

Durante a primeira audiência de conciliação, a entidade encontrou um ambiente aflitivo, sendo informada que a lei não seria suspensa, não obstante toda violência que ela tem gerado nos territórios. 

A APIB foi informada também que na ausência de consenso as decisões seriam tomadas por maioria. Dessa forma, a instância da conciliação poderá ser transformada em uma assembleia, sem ter a legitimidade necessária para decidir sobre direitos fundamentais. Entendemos que a tutela dos direitos fundamentais das minorias é função do Supremo, da qual ele não pode abdicar. 

Além disso, a APIB também foi confrontada com visões ultrapassadas e inadequadassobre a garantia dos direitos indígenas. Na conciliação, foi aventada a possibilidade de ter a vontade dos indígenas colhida pela Funai, órgão de estado que não tem essa competência. 

A Constituição de 1988, em seu artigo 232, acabou com a política de tutela! 

Outros apontamentos realizados durante a primeira audiência de conciliação foram violentos e opressivos. A eventual aprovação de uma PEC que consolidaria o marco temporal no texto constitucional soou como uma ameaça, viciando o ambiente de liberdade que deve ser criado em uma mesa de conciliação. 

O juízo condutor da audiência de conciliação chegou a perguntar se os indígenas teriam representação parlamentar suficiente para impedir a votação de um projeto de emenda constitucional violadora de seus direitos fundamentais. Os povos indígenas, após séculos de extermínio, são minoria. E por isso contam com o tribunal! 

Os povos indígenas estão sob guarda de cláusulas pétreas da Constituição, cuja defesa e guarda é função do Supremo Tribunal Federal! 

Diante de condições inaceitáveis – e até humilhantes – impostas aos povos indígenas na audiência de conciliação, o juiz conciliador disse que uma saída dos povos indígenas os tornaria responsáveis pela “espiral de conflitos”. Isso é de uma violência atroz

Os indígenas resistem secularmente e lutam pelo direito de existir em uma realidade em que são vítimas da violência. Desde a colonização, até os dias atuais, os mortos, feridos e submetidos aos conflitos violentos são os indígenas. Os que ainda precisam lutar pela garantia territorial e por direitos, desde há muito válidos, mas ineficazes, são os indígenas. 

É inadmissível que os povos do Brasil, que têm a maior contribuição para a conservação das florestas, dos biomas, da biodiversidade e que são aqueles que mais têm capacidade de fazer frente à emergência climática e ao desenvolvimento sustentável do país, sejam submetidos a um processo de conciliação fora da lei, com esse nível de pressão, chantagem e preconceito

Nós, povos indígenas, já fomos submetidos a tentativas de aculturação forçada, integração forçada, desterritorialização forçada. Não iremos nos submeter a mais uma violência do Estado Brasileiro, com a possibilidade de uma conciliação forçada

Infelizmente, a conciliação está sendo conduzida com premissas equivocadas, desinformadas e pouco aberta a um verdadeiro diálogo intercultural. 

Neste cenário, a APIB não encontra ambiente para prosseguir na mesa de conciliação. Não há garantias de proteção suficiente, pressupostos sólidos de não retrocessos e, tampouco, garantia de um acordo que resguarde a autonomia da vontade dos povos indígenas. 

Nos colocamos à disposição para sentar à mesa em um ambiente em que os acordos possam ser cumpridos com respeito à livre determinação dos povos indígenas.

Nos resguardamos o direito de nos manifestar nos autos e tratar sobre os nossos direitos diretamente com o Juízo competente para decidir sobre os processos de competência do STF: o eminente relator e o Plenário do STF. Temos confiança que o Supremo Tribunal Federal não fugirá de sua missão constitucional

Ainda estamos vivos e não desistiremos de nossas terras, do usufruto exclusivo das riquezas dos rios, lagos e solos, do direito de não sermos removidos de nossos territórios e do direito de termos nossos modelos próprios de desenvolvimento. Não permitiremos mais que o projeto do neocolonizadores nos atravesse e nos arrase. 

Lutamos pelo direito à diversidade que inclua radicalmente todos os setores da sociedade brasileira e contamos com o apoio da sociedade para a proteção de nossas vidas e de nossas florestas. O Brasil pega fogo e são os indígenas que têm as respostas e a chave para combater a emergência climática

A APIB se retira da conciliação”. 

Aqui está o link para o texto original do manifesto.

A seguir, assista às declarações de Maurício Terena, advogado da APIB, e de Kretã Kaingang, coordenador da APIB pela ARPINSUL, logo após os participantes indígenas da reunião.

 
 
 
 
 
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Foto: Takumã Pataxó/APIB

Com informações da APIB, do Instituto Socioambiental e do STF

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