Por Kátia Brasil*
A Fundação Casa América Catalunya, na Espanha, anunciou, na semana passada, 3/12, como vencedora da XIX edição do Prêmio Joan Alsina de Direitos Humanos, a plataforma de comunicadores indígenas brasileiros Mídia Índia, fundada em 2017 pelo jornalista e comunicador Erisvan Bone Guajajara, do Maranhão.
Devido às restrições impostas pela pandemia da Covid-19, a cerimônia de entrega da premiação deverá ser realizada, em formato virtual, ainda este mês.
O prêmio foi instituído pela Câmara Municipal de Barcelona em memória do padre catalão Joan Alsina, assassinado pela ditadura de Pinochet no Chile em 1973. A distinção internacional já foi recebida, em anos anteriores, pela Associação Araguaia com o bispo Dom Pedro Casaldàliga, do Brasil, pela Associação Abuelas de Plaza de Mayo, da Argentina, e pela ativista ambiental e indígena Berta Cáceres (In Memoriam), de Honduras, entre outras personalidades.
Ao conferir a homenagem à Mídia Índia, o júri destacou “sua valiosa contribuição à divulgação e ao conhecimento da realidade dos povos indígenas da Amazônia brasileira, em um momento em que se vê sua sobrevivência gravemente ameaçada por uma combinação de adversidades, que incluem a pandemia, as mudanças climáticas e agressões ambientais na forma de incêndios, destruição de florestas e a exploração frequentemente violenta e descontrolada de seus recursos naturais. Tudo isso em um cenário de grave retrocesso nas políticas de proteção aos direitos dessas comunidades”.
No Brasil, os indígenas somam uma população de mais de 900 mil pessoas, que representam 305 etnias que falam 274 línguas.
A mídia digital Mídia Índia é o primeiro veículo de comunicação produzido por jovens de várias etnias, que alcançou, em apenas três anos e meio, uma audiência de 108 mil seguidores na rede social Instagram e 53 mil no Facebook.
A plataforma está presente também no Twitter, com cerca de 7.500 seguidores, no YouTube, além de produzir a Rádio Mídia Índia, que transmite, por streaming, os eventos mais importantes das comunidades indígenas e organiza e promove oficinas de redação de textos, fotografia e vídeo, além de concursos e exposições fotográficas.
O fundador da Mídia Índia, Erisvan Bone Guajajara, 31 anos, nasceu na Aldeia Lagoa Quieta, na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão. Jornalista e comunicador, ele atua no fortalecimento da comunicação como ferramenta de luta na visibilidade dos povos indígenas. É ativista do movimento indígena, colaborador de comunicação da Rede de Juventude Indígena- REJUIND, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
Junto com outro jovem comunicador – Tipuici Manoki – trouxe a pauta da questão LGBTQIA+ para ser discutida e debatida dentro das discussões políticas do movimento indígena. Erisvan foi colaborador da agência Amazônia Real, no Maranhão, em 2019.
O jornalista disse em entrevista à reportagem que a Mídia Índia nasceu para dar voz e visibilidade aos povos tradicionais na luta e resistência, em um momento de ataques e perda de direitos, mas que a grande mídia brasileira ainda cobre “timidamente” as questões indígenas. “É necessário ocuparmos esses espaços, na visibilidade para nossa luta quanto no protagonismo dos indígenas ocupando essas grandes mídias”.
Erisvan contou que, atualmente, trabalham na plataforma mais de 100 comunicadores e destacou as participações do produtor musical Eric Terena e do fotógrafo e diretor de cinema Kamikia Kisedje na produção dos conteúdos.
O jornalista disse que ainda que os comunicadores da Mídia Índia cobrem desde festas culturais nas aldeias até questões relacionadas ao meio ambiente, como os incêndios florestais na Amazônia, invasões de garimpeiros e madeireiros nos territórios, assim como as campanhas pela luta da demarcação das terras como foi a Jornada Indígena, que aconteceu no início deste ano na Europa. Leia a entrevista exclusiva a seguir:
A criação da Mídia Índia, em 2017, foi um marco na comunicação de suas próprias narrativas?
A Mídia Índia é projeto de uma rede de comunicação descentralizada que produz e difunde conteúdos e pautas inerentes à questão indígena no Brasil, respeitando as especificidades de cada povo, a partir da lógica colaborativa de compartilhamento e de comunicação, conectando e empoderando os jovens indígenas de todo o país. Possibilita a troca de tecnologias, experiências e principalmente a representatividade indígena nos meios de comunicação com a difusão de suas lutas e como mais uma ferramenta de exigência de direitos.
Somos uma rede com mais de 100 colaboradores indígenas que atuam na captação de notícias para a nossa rede. Reunimos semanalmente para discutir as pautas da semana e ver o que será veiculado em nossas redes. Recebemos muitas informações em nossas redes dos nossos seguidores; são denúncias, notícias, fotos de algum acontecimento em determinado território. Daí buscamos a veracidade da notícia antes de ser divulgada.
Usamos mais o Instagram, onde temos maior número de seguidores, com 108 mil seguidores, mas estamos também no Facebook e Twitter. E vamos lançar oficialmente nosso site em janeiro com bastante novidades voltadas para os povos indígenas.
Quais são as principais demandas dos povos em uma mídia de causa?
Recebemos muitas informações de invasões de madeireiros, garimpeiros, ou outros casos isolados de pessoas que estão entrando nos territórios indígenas. São as mais frequentes, mas recebemos informações de festas tradicionais de determinado povo… são vídeos, fotos. Essas são informações diárias que recebemos, mas o nosso forte é a realização de campanhas. Parece que ela interessa mais os seguidores para causa indígena, estão sempre estamos produzindo material que mostre a realidade dos povos indígenas nos territórios, o que a grande mídia não mostra.
O fogo na Amazônia, como que os brigadistas indígenas juntamente aos guardiões estão arriscando sua própria vida para proteger a nossa mãe terra. Precisamos estar noticiando a luta dos indígenas de base, mostrar o protagonismo aqui que é total deles. Cobrimos muito as festas tradicionais de povos, sempre somos convidados quando tem alguma assembleia ou alguma festa, sempre uma liderança nos chama para ir cobrir.
Quantos comunicadores estão envolvidos na produção dos conteúdos? Quantos são homens e quantos são mulheres?
Somos uma rede que tem uma coordenação, que é formada por 10 pessoas, sendo 8 homens e 2 mulheres, e temos 100 colaboradores fixos que variam de gêneros e que estão sempre atuando conosco na produção de conteúdo. Estava em nosso cronograma para esse ano a realização de uma oficina voltada só para mulheres, mas devido a pandemia ela não foi possível fazer, mas ainda está em nosso plano para que possamos ter mais mulheres nessa linha de frente.
Como é a audiência nacional e internacional?
Temos muitos parceiros que atuam com a gente em redes aqui no Brasil. A nossa parceria tem aumentado muito o contato com outras redes alternativas que atuam nas bases usando a comunicação como ferramenta de luta.
São pessoas que se importam com a causa indígena, que se importam com a proteção do meio ambiente. Desde a jornada indígenas com as lideranças indígenas na Europa fizemos muitos contatos, com muitos parceiros, fortalecendo assim a nossa visibilidade também no exterior.
A grande imprensa dá pouco espaço aos povos indígenas. Tem algum sinal de mudança ou permanece a invisibilidade?
Atualmente, com o governo assumindo publicamente que é contra os povos indígenas e a população pressionando, as grandes mídias, timidamente, em alguns casos dão visibilidade. Mas é necessário ocuparmos esses espaços, na visibilidade para nossa luta quanto no protagonismo dos indígenas ocupando essas grandes mídias.
Há parcerias com outras mídias? Cite quais apoiam a MI?
Sim, temos parcerias que estamos sempre somando conosco, entre elas, com a comunicação da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), com Mídia Ninja, Copiô Parente, Visibilidade Indígena na, TiBIRA, Indígenas do Maranhão, Cita, e muitos outros coletivos que estão em parceria com a gente usando a comunicação como ferramenta de luta.
Como a Mídia Índia trabalha os valores da diversidade, equidade e igualdade?
Somos mais de 305 povos e mais de 274 línguas no país e ainda não conseguimos alcançar todos os povos. Mas a nossa meta é chegar neles.
No ano passado realizamos as oficinas nos territórios indígenas de diversos povos. Era para ter dado continuidade, mas devido a pandemia ela está acontecendo online. Mas a presença de povos diferentes é bem grande e assim vamos caminhando para ter mais contato e abranger todos os povos.
Que modelo de sustentação financeira foi escolhido pela Mídia Índia? E como os leitores apoiam o site?
Nosso trabalho acontece por meio de doações, realizamos freelancer e estamos concorrendo a editais na área.
Estamos num momento vulnerável com relação à segurança de jornalistas e comunicadores. A Mídia Índia enfrenta ataques? Como vocês estão respondendo essa questão?
Sim, enfrentamos muitos ataques, e ainda sofremos preconceito por estar usando a comunicação como ferramenta de luta. Fomos hackeados uma vez, mas conseguimos recuperar a nossa conta. Acreditamos que a força dos encantados caminha junto conosco. Acreditamos no trabalho que produzimos e acho que estamos no caminho certo, pois se a gente incomoda tanto é porque estamos fazendo alguma diferença em tempos de tantos retrocessos.
Qual é o significado de vencer um prêmio internacional como o XIX Prêmio Joan Alsina de Direitos Humanos concedido pela Fundação Casa América Catalunya, na Espanha?
Para nós, a Mídia Índia receber o prêmio é muito importante, pois nós povos indígenas estamos sendo violentados diariamente e não temos espaço nos grandes veículos de mídia do país para darmos voz a nossa luta denunciando as invasões em nossos territórios. Ter o reconhecimento do trabalho que estamos executando como comunicadores, tanto nos territórios quanto nos meios online, é a garantia de que estamos no caminho certo.
É importante citar que recebemos também que ganhamos o Prêmio de Melhor Filme da 2a. Mostra Nacional de Cinema Ambiental do Festival Internacional de Vitória (ES) com o filme “Ka’a zar ukyze wà – Os Donos da Floresta em Perigo, que tem como diretores, além de mim, Flay Guajajara e Edivan dos Santos Guajajara.
Acredito muito em dias melhores para os povos indígenas do Brasil e afirmo que o momento é de lutar e pedir a demarcação das terras indígenas. Também é hora dos povos originários “demarcar as telas” ocupando os espaços da mídia e levando a voz dos povos originários para o mundo, contando a nossa história como ela realmente deve ser contada.
É hora de nós mesmos sermos os protagonistas das nossas raízes!